A alma de uma ‘Traviata’

Ópera de Giuseppe Verdi encerrou em grande estilo a temporada lírica 2023 do Theatro Municipal do Rio de Janeiro: foi uma produção que uniu uma encenação impecável e canto do mais alto nível – com direito a duas excelentes sopranos se alternando como Violetta.

La Traviata (1853)
Ópera em três atos
Música: Giuseppe Verdi (1813-1901)
Libreto: Francesco Maria Piave (1810-1876)
Theatro Municipal do Rio de Janeiro, 24 e 25 de novembro de 2023
Direção musical: Luiz Fernando Malheiro
Direção cênica: André Heller-Lopes
Cenografia: Renato Theobaldo
Figurino: Marcelo Marques
Iluminação: Gonzalo Córdova
Coreografia e Direção de Movimento: Bruno Fernandes e Mateus Dutra
Design Gráfico: Carla Marins
Violetta Valéry: Ludmilla Bauerfeldt e Laura Pisani, sopranos
Alfredo Germont: Matheus Pompeu e Ricardo Gaio, tenores
Giorgio Germont: Licio Bruno, baixo-barítono, e Vinicius Atique, barítono
Flora: Carla Rizzi, mezzosoprano
Annina: Noeli Mello, mezzosoprano
Gastone, Visconde de Létorières: Geilson Santos, tenor
Barão Douphol: Flavio Mello, barítono
Marquês d’Obigny: Ciro d’Araújo, barítono
Dr. Grenvil: Leonardo Thieze, baixo
Giuseppe: Jessé Bueno, tenor
Comissionário/Criado: Patrick Oliveira, baixo
Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro
Coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

A sociedade e a cortesã

Alphonsine Plessis, Marie Duplessis, Marguerite Gautier, Violetta Valéry: quatro nomes, uma única cortesã. O primeiro nome ela ganhou ao nascer, em 1824; o segundo, mais sonoro, foi o que adotou; o terceiro, ganhou de Alexandre Dumas fils, um de seus célebres amantes, no romance La Dame aux Camélias, publicado em 1848, no ano seguinte à sua prematura morte; o quarto, talvez o mais popular, é como é chamada em La Traviata, que estreou no teatro La Fenice em 1853.

No percurso que a levou à ópera de Verdi e Piave, passando primeiro pelo romance e depois pela peça de teatro de Dumas fils, a cortesã manteve a sua saúde frágil e o seu status de demi-mondaine, de femme entretenue, mas ganhou um bocado em idealização, tornou-se alguém diferente “das outras”, quase pura, uma condição, à época (e talvez ainda hoje), essencial para que ela pudesse despertar a empatia do leitor e do público de teatro e ópera.

Parte importante da alta sociedade parisiense, sobretudo entre meados do século XIX e o início do século XX – época em que a burguesia tradicional se viu em confronto com uma nova sociedade, mais liberal –, a demi-mondaine era uma mulher cujo luxo era sustentado por seus nobres amantes – e, para esses amantes, associar-se a esse meio de prostituição era uma demonstração de riqueza e de status. Hábil em seu métier, ditava a moda, frequentava os teatros, a ópera e os meios artísticos. “Ninguém negará que (…) essas mulheres são verdadeiras prostitutas; esse é o trabalho delas; elas propagam doenças graves e enfermidades precoces mais que os outros; destroem a riqueza e a saúde e podem ser consideradas como os seres mais perigosos da sociedade”, escreveu, ainda no início do século XIX, o médico higienista francês Parent-Duchâtelet.

No que pese toda a idealização da personagem-título feita por Dumas fils e por Piave, a ópera La Traviata traz um desafio e um ineditismo ao retratar a sociedade da época, com todo o seu glamour e toda a sua hipocrisia. Não à toa, para que a ópera pudesse estrear, Verdi precisou situar a ação no início do século anterior.

Uma produção memorável!

Hoje em dia, La Traviata é o típico título de repertório. Com raras e honrosas exceções, as atuais produções oscilam entre extremos: ou tiram a trama de seu contexto para trazê-la aos nossos dias, ou são meramente ilustrativas, com uma teatralidade que se resume aos sentimentos expressos durante a ópera, e oferecem pouca reflexão e nenhum incômodo ao público – que já viu Violetta tossir e morrer inúmeras vezes. Desse modo, cada vez que vou a uma Traviata, me pergunto o que verei de novo – se é que verei algo de novo.

Rica em teatralidade, a produção de André Heller-Lopes conseguiu uma proeza: manter Violetta devidamente em sua Paris – ou, como ela própria cantou, no “populoso deserto chamado Paris” – e, ao mesmo tempo, escancarar uma problemática atual: uma sociedade conservadora, que se diz religiosa, mas que riscou qualquer noção de compaixão do seu catecismo. Na Paris levada ao grandioso palco carioca, estão presentes o luxo da moda da época (por meio dos impecáveis figurinos concebidos por Marcelo Marques a partir de quadros impressionistas) e, no belo, impactante e funcional cenário de Renato Theobaldo, do qual a excelente iluminação de Gonzalo Córdova foi importante aliada, a sociedade do espetáculo, com os refletores no chão, e a imponente estação de trem – uma marca daquela época, quando o trem encurtou as distâncias e possibilitou um maior intercâmbio cultural e comercial.

Laura Pisani (Violetta), durante o prelúdio de La Traviata

Logo no prelúdio, enquanto os violinos derramam toda a fragilidade e a feminilidade de Violetta, ela surge como que posando para um pintor: inclinada, com as costas da mão na testa, com o seu vestido vermelho, ao mesmo tempo espalhado e refletido pelo chão. No cenário, painéis formam uma estação ferroviária: uma gare toda fechada, com grades que aprisionam, com uma geometria grandiosa e estonteante. Foi nesse cenário que dançarinos que brotaram de algum quadro de Degas passaram a bailar pela festa de Violetta. No fim do primeiro ato, quando todos já haviam partido e Violetta está sozinha em sua primeira grande cena, vendo-se diante da escolha entre o amor sincero de Alfredo – um sentimento que, até então, não havia experimentado – e a sua vida livre, festiva e glamurosa, Annina, com gestos delicados, começa a despi-la de todo o luxo, de todos os ornamentos.

No segundo ato, Violetta usa um vestido claro, amarelado, delicado, despojado. Os painéis que formam a estação de trem ainda estão ao fundo, mas, ao centro, surge uma cortina ora azulada, ora esverdeada, com alguns galhos de planta pendentes, quebrando a aridez da gare parisiense e indicando que eles estão no campo. No centro, uma mesa com toalha branca, frutas e alguns outros objetos dispostos à lá Cézanne. As frutas, o alimento, uma garrafa, um cálice aparentemente de cobre, alguns papeis e livros. Estariam lá os planos que, no romance de Dumas fils, Marguerite e Armand haviam feito para poderem se sustentar e viver juntos? Estaria lá Manon Lescaut, precursora de La Dame aux Camélias e que Armand havia dado a Marguerite?

Ludmilla Bauerfeldt (Violetta) na mesa à lá Cézanne, no segundo ato

O confronto com Giorgio Germont, o pai de Alfredo, é o clímax e o ponto de inflexão da ópera. Em Dumas fils, ele é descrito como um homem justo, sensato e terno com Marguerite. Nas cartas que Marguerite escreveu quando estava morrendo – portanto, nos poucos momentos em que ela tem voz no romance – elogiou M. Duval (o Germont do romance), em uma das passagens mais indigestas do livro. Isso revela que Duval é apenas um fruto dessa sociedade cruel, que não permite a mobilidade social, não dá uma segunda chance e não precisa conhecer uma pessoa, sobretudo uma mulher, para julgá-la e condená-la.

Germont chega como um mensageiro de Deus (“È Dio che ispira, o giovine / Tai detti a un genitor”) para salvar seu filho da mulher pecadora – que, segundo Parent-Duchâtelet, pertence ao grupo dos “seres mais perigosos da sociedade” – e para impedir que a família do noivo de sua filha, pura como um anjo (o oposto de Violetta), desmanche o noivado. Na produção de Heller-Lopes, Germont segura uma Bíblia com uma cruz dourada estampada na capa. É com essa Bíblia que, quando Violetta o enfrenta (“Ah, no giammai! No mai!”), acompanhando o fortíssimo da orquestra, Germont lhe bate no rosto, fazendo com que ela dê um giro, se vire para o público e, prostrada, ajoelhada no chão, cante o seu “Non sapete quale affetto / Vivo, immenso m’arda in petto?” Uma cena muito bem marcada, ritmada, na qual evidenciaram-se a violência moral e o golpe fatal sofrido por Violetta, o que arrancou alguns “Ah!” do público.

O confronto entre Germont e Violetta começa com um áspero recitativo, mas termina com um dueto em terças. Violetta aceita se sacrificar, imolar-se pela família Germont. Primeiro, Violetta bebe do cálice de cobre que estava sobre a mesa, e, dali a pouco, é a vez de Germont – e ele, de forma rude, limpa a boca na manga do paletó.

Outro momento em que o cuidado com a teatralidade chamou a atenção foi quando, antes do célebre “Amami, Alfredo”, ao cantar “Sarò là, tra quei fior / presso a te sempre” – indicando, evidentemente, que morreria e ficaria entre as flores –, Violetta tem nas mãos um buquê que havia pegado da mesa e o deixa cair, espalhando as flores pelo chão.

Na segunda parte do segundo ato, na festa de Flora, são as dançarinas de Toulouse-Lautrec que ganham vida. No chão, a imagem de uma grande roleta – é Violetta que está em jogo, ela é o eixo da roleta. Desafiando o senso comum, enquanto o coro das ciganas canta, dançam homens; enquanto canta o coro dos toureiros, são as mulheres que dançam.

Violetta (Laura Pisani) no centro da roleta, no momento em que Alfredo (Ricardo Gaio) atira o dinheiro nela

È tardi!

Se até agora tudo foi de grande beleza, fortemente teatral, pensado nos mínimos detalhes, foi o terceiro ato que tornou essa Traviata ainda mais especial, mais intensa: tempo e espaço foram desafiados, a única lógica era a solidão opressiva na qual Violetta – ou, no romance, Marguerite – morreu. Na ópera, ao terminar de ler a carta, Violetta exclama: “È tardi!”; na obra de Dumas fils, Marguerite morreu não apenas sem o conforto trazido pelo reencontro com Armand, mas sem ter recebido uma única carta dele. Escreveu-lhe todos os dias enquanto teve forças, depois passou a ditar as cartas, mas Armand estava longe, apenas M. Duval enviou alguma ajuda financeira através de um mensageiro. Quando Armand retornou a Paris, Marguerite já estava morta. Para poder revê-la, solicitou uma mudança de túmulo a fim de conseguir exumar o corpo, já em decomposição. É uma das primeiras cenas do romance. Para ajudar o público a entender o que veria, as legendas do teatro projetaram parte desse capítulo durante o prelúdio.

Violetta (Laura Pisani) e Annina (Noeli Mello)

No palco, as grades estavam fechadas. Violetta – ou o espírito de Violetta, com os cabelos soltos e vestindo a esvoaçante mortalha branca descrita por Dumas fils – estava atrás das grades. Na frente, um banco onde ficava o túmulo de Violetta, velas e as flores, aquelas dentre as quais ela falou a Alfredo que estaria. Annina, enlutada, estava na frente das grades, ela parecia não ver nem ouvir Violetta, dialogava com uma memória, parecia reviver a os momentos finais da vida da cortesã. Quando Annina sai para buscar as cartas no correio (ou rememora esse momento), passa pela grade, abrindo-a e permitindo a saída de Violetta – como a exumação retirou Marguerite de sua tumba. E de perto do túmulo, sobre o chão espelhado, sozinha, ela vaga, com seu robe esvoaçante, lê a carta, e canta o Addio del passato. É lá que, já morta, ela reencontra Alfredo. Quando chega Giorgio Germont para, finalmente, abraçá-la como a uma filha – algo que ele não fez no segundo ato, quando ela lhe pediu –, Alfredo o enfrenta: o Alfredo de Heller-Lopes, ao contrário do de Piave e do Armand de Dumas, parece ter amadurecido. No fim da ópera, o fantasma de Violetta volta para detrás das grades.

Ludmilla Bauerfeldt (Violetta) no terceiro ato

Visivelmente bem dirigido, o elenco respondeu muito bem à minuciosa teatralidade proposta por Heller-Lopes e, de um modo geral, apresentou um desempenho vocal mais que satisfatório – com especial destaque para as duas excelentes sopranos, literalmente de nível internacional, que deram vida ao papel-título.

Canto de alto nível com duas excelentes Violettas

Foi bastante eficiente o numeroso time de comprimários: a Flora de Carla Rizzi, a Annina de Noeli Mello, o Gastone de Geilson Santos, o Barão de Flavio Mello, o Marquês de Ciro d’Araújo, o Dr. Grenvil de Leonardo Thieze, o Giuseppe de Jessé Bueno e Patrick Oliveira como Comissionário e Criado.

Vinicius Atique (Germont) e Laura Pisani (Violetta) no segundo ato

No papel de Giorgio Germont, alternaram-se Vinicius Atique (24/11) e Licio Bruno (25/11). Foram dois Germonts com nuances, expressividade e boa técnica, mas completamente diferentes, de temperamentos totalmente diversos – e a direção, sensível a essas diferenças, não procurou igualá-los. O Germont de Atique foi o típico pregador duro e frio, contido. Já Bruno, mais inflamado, carregava a Bíblia não como um pastor, mas como um devoto. Se a voz de Atique parece por vezes um pouco leve para o papel (o que não impediu que ele fizesse um bom Germont), a de Bruno, descontados alguns momentos em que, nos agudos, o vibrato se acentuou em demasia, tem o temperamento ideal para Germont.

Com Alfredo a situação foi diferente. No dia 25, o papel ficou com Matheus Pompeu, um excelente tenor brasileiro que está começando uma bela carreira e frequentando palcos como o Palau de les Arts Reina Sofia, em Valência. Se algumas (poucas) vezes pesou nos agudos, pouco importa: Pompeu fez um Alfredo seguro, expressivo, apaixonado, atento aos detalhes; a sua bela e educada voz se projetou majestosamente pelo teatro carioca; e ele contracenou muito bem com sua Violetta. Já Ricardo Gaio, o Alfredo do dia 24, tem um timbre bonito, claro, mas seu desempenho foi irregular, com problemas, inclusive, de afinação. Ao que tudo indica, é um cantor promissor, o que não é pouco em um mundo carente de tenores, mas ainda não está pronto para assumir um papel maior em um teatro com a importância do Municipal do Rio.    

Matheus Pompeu (Alfredo) no terceiro ato de La Traviata

Chegamos, finalmente, às duas Violettas, às duas artistas que se transformaram e derramaram as suas dores durante as mais de duas horas de ópera: Ludmilla Bauerfeldt e Laura Pisani. Foi em torno delas que tudo girou – foram elas, em cada récita, o eixo da roleta. Duas artistas diferentes, com históricos diferentes, qualidades diferentes, e que nitidamente buscam coisas diferentes. Ambas, no entanto, se igualam no alto nível de canto e de dramaticidade. Ao leitor curioso, já informo logo: as duas fizeram, e muito bem, o mi bemol agudo no final do primeiro ato.

Violetta (Laura Pisani) mirando a sua própria foto em seu túmulo

Dia 24 foi a única récita aberta ao público em que a soprano argentina Laura Pisani emprestou a sua elegância, sua sofisticação e a perfeição do seu canto à heroína verdiana. Com técnica sólida, legato invejável, fraseado impecável, todas as notas precisas e uma bela presença, Pisani entregou uma Violetta introspectiva, profunda e conferiu dignidade ao personagem do começo ao fim. Quando Pisani está no palco, é quase impossível desviar os olhos ou os ouvidos dela. Sou capaz de apostar que a sua carreira vai decolar e, em breve, ela será um dos grandes nomes da cena lírica mundial. Sua voz, embora não seja grande, projeta-se muito bem, de modo que lamentei que ela não tenha ousado mais em alguns pianíssimos, talvez por receio de não ser ouvida, talvez por estar habituada à acústica cruel do Teatro Colón, de Buenos Aires, onde costuma se apresentar.

Titular do papel, Ludmilla Bauerfeldt deu vida, amor e morte à Violetta nos dias 17, 19, 23 e 25 de novembro. Estava à vontade em sua estreia como Violetta e revelou-se uma autêntica prima donna italiana, expressiva, atenta a cada palavra. Ela não parece buscar a perfeição: de sua técnica brotou um canto livre e verdadeiro; sua presença cênica preencheu todo o enorme palco do Municipal do Rio; sua bela e volumosa voz contém uma paleta de cores que ela soube manejar muito bem; a amplitude de sua dinâmica foi extensa; a delicadeza de sua Violetta foi comovente; com sua dramaticidade, conseguiu estabelecer uma relação de cumplicidade com o público.

Ludmilla Bauerfeldt (Violetta) no primeiro ato: Ah, fors’è lui

No primeiro ato, chamou a atenção o Ah, fors’è lui de Bauerfeldt. Na primeira parte, Violetta reflete sobre esse novo sentimento que estava experimentando, de ser amada amando – como disse Marguerite a Armand no romance de Dumas fils, “Você me ama por mim e não por você, enquanto os outros sempre me amaram apenas por eles mesmos”. Na segunda parte, que felizmente não foi cortada no teatro carioca, Violetta se lembra de quando era uma menina e sonhava com um futuro amor. Foi essa atmosfera de um sonho inocente sendo realizado que Bauerfeldt soube transmitir com grande beleza e sensibilidade.

No segundo ato, foi incandescente o confronto entre a Violetta de Bauerfeldt e o Germont de Bruno. Nessa cena, um momento pelo qual, confesso, tenho verdadeira obsessão, é quando, vencida por Germont, Violetta canta que ele pode dizer à jovem filha, inocente e pura, que há uma vítima que sacrificará por ela o seu único bem precioso na vida e morrerá (Dite alla giovine…). Na introdução a esse trecho, nenhuma das duas Violettas me presenteou com o tão desejado “Ah!” sentido, pianissíssimo, sustentado, quase um soluço; nenhuma das duas se derreteu naquela fermata, mas Bauerfeldt fez um belo portamento e um Dite alla giovine em pianíssimo, com tamanha entrega, que me fez perdoar o tímido “Ah!”.

Renata Scotto dizia que o “Amami, Alfredo, quant’io t’amo” é o máximo da paixão possível por um ser humano; é, para ela, a frase mais importante que Verdi escreveu por conta da emissão, da paixão, da emoção. Foi um dos grandes momentos de Bauerfeldt, que chegou com precisão aos agudos em fortíssimo, sem comer consoante, sem que a dicção se embaralhasse, e com toda a emoção que as grandes artistas sabem transmitir.  

Ludmilla Bauerfeldt (Violetta) no terceiro ato

No terceiro ato, a interpretação de Bauerfeldt foi tão espiritual quanto lhe propunha a produção de Heller-Lopes. Sua Violetta teve dramaticidade, mas com leveza, delicadeza, sem exageros – afinal de contas, quem estava ali era o espírito de Violetta. Como resultado, fomos brindados com um memorável Addio del passato, que levou o público ao delírio, com direito a gritos de bis.

Merecem menção honrosa o Coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e os bailarinos contratados para a produção, sobretudo pelas duas belíssimas danças da segunda parte do segundo ato, que contaram com a coreografia e direção de movimento de Bruno Fernandes e Mateus Dutra – outro momento que levou o público ao delírio.

Coro e ballet no segundo ato

Coube ao maestro Luiz Fernando Malheiro a direção musical dessa bela Traviata. Experiente em ópera, o maestro permitiu que os cantores tivessem liberdade e segurança, nada estava rígido e o espetáculo fluiu. Foi acertada e muito bem-vinda a opção por fazer La Traviata na íntegra, sem cortes, com todas as “cabalette” e repetições – que, na verdade, não são repetições, uma vez que o texto muda. A regência de Malheiro, contudo, encontrou uma limitação: a qualidade da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Problemas de afinação foram constantes em todos os naipes (não apenas nos sempre criticados metais), e a falta de comprometimento dos músicos ficou evidente quando parte deles se retirou antes mesmo de o maestro levantar a orquestra para receber os (não) merecidos aplausos no final da ópera.

O sonho e a realidade

Olhando para a programação 2023 do Municipal do Rio, a impressão que tenho é que, entre acertos e erros, o teatro está tentando se reerguer, vencer o descaso com que o governo do Estado trata a cultura, vencer a falta de apoio e de verba, e apresentar espetáculos de qualidade. Apesar de algumas misturas de elenco um tanto estranhas, com cantores do coro ou em início de carreira fazendo papeis que ainda são exigentes demais para eles, o Municipal do Rio tem demonstrado saber aproveitar os melhores talentos da cena lírica brasileira. Em julho, estive no Rio para ver a ópera Carmen. Embora as direções musical e cênica tenham sido problemáticas e, nitidamente, a verba curta, voltei satisfeita com a intepretação da mezzosoprano Luisa Francesconi, que viveu o papel-título com inteligência e profundidade (e uma inesquecível interpretação da ária das cartas!). Agora, com essa La Traviata, o TMRJ colocou em cena Ludmilla Bauerfeldt, a única cantora brasileira formada na Academia do Teatro alla Scala e que já protagonizou duas óperas por lá – foi Norina em Don Pasquale, de Donizetti, e Giulia em La Scala di Seta, de Rossini. Nada mais acertado que lhe entregar o emblemático papel de Violetta.

Agora que o TMRJ dispõe de uma bela e funcional produção de La Traviata, espera-se que o título volte ao palco com alguma frequência, que seja esse o primeiro passo para que o teatro construa um repertório de qualidade.

Com esse belo encerramento de temporada, daria até para sonhar com um futuro melhor para o Rio de Janeiro e o seu belo teatro, mas, como ocorreu na ópera com Violetta, a realidade não demorou a estragar o sonho, com a notícia de que solistas foram assaltados após as récitas. Que a administração do teatro consiga lutar contra essa triste realidade oferecendo cada vez mais arte. O TMRJ merece e precisa de apoio.

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Fotos: Daniel Ebendinger/TMRJ.

3 comentários

  1. Crítica maravilhosa. Como apreciadora das manifestações artísticas, venho aproveitando as programações populares do TM para ampliar meu repertório de conhecimento em óperas e balés. Este ano pude assistir às operas Carmen e La Traviata com grande alegria. No entanto, a realidade da cidade do RJ nos coloca de volta ao embrutecimento e ao abandono do estado a sua população. Ao sair do teatro, fomos assaltadas, com violência, na entrada da estação do metrô. Nenhum policiamento em torno, nenhum segurança na entrada da estação e o cidadão fica largado à própria sorte. Segurança também é cultura!

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