Com A Danação de Fausto, OSESP faz sua segunda ópera em forma de concerto da temporada.
La Damnation de Faust (A Danação de Fausto), 1846 Legenda dramática em quatro partes |
Música: Hector Berlioz Libreto: Hector Berlioz e Almire Gandannière |
Sala São Paulo, 11 de maio de 2023 |
Direção musical: Thierry Fischer |
Marguerite: Karina Demurova, mezzosoprano Fausto: Valentyn Ditiuk, tenor Mefistófeles: Roderick Williams, barítono Brander: Erick Souza, barítono |
Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP) |
Quando foi divulgada, no fim do ano passado, a temporada 2023 da OSESP, foi com grande prazer que vi que La Damnation de Faust, de Hector Berlioz, estava entre os títulos. Em primeiro lugar, porque desde que o maestro John Neschling deixou a direção da orquestra, em 2009, a ópera em forma de concerto foi abandonada – houve algumas óperas, mas poucas, deixou-se de fazer uma ópera por ano, como antes – mas neste ano, além da Danação, tivemos O Castelo do Barba Azul, de Bartók. Em segundo lugar, porque da outra vez que a OSESP apresentou a obra, em 2014, sob a regência de Sir Richard Armstrong e com Michael Spyres no papel-título, foi um evento memorável. Chamaram a atenção, na época e de novo agora, a riqueza da partitura, a beleza dos solos e das partes corais.
A Danação subiu ao palco da Sala São Paulo em uma semana marcada por certa agitação em torno de uma produção da ópera Il Guarany, de Carlos Gomes, que estava entrando em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo. Embora isso tenha feito com que o concerto perdesse um pouco o protagonismo, não deixou de ser uma feliz coincidência, e deu-lhe até mais relevância. O Guarany que estreou no Municipal foi mais uma encenação de uma obra do século XIX à luz da mentalidade atual, coisa que os diretores de ópera fazem desde o pós-guerra, às vezes com grande êxito e inteligência – e, nesse caso, confesso que adoro! –, às vezes distanciando-se totalmente do espírito da obra. Os organizadores do evento, no entanto, trataram o fato como algo inédito, revolucionário, e até um rompimento com a tradição lírica. Isso, claro, gerou uma discussão em torno da legitimidade de se alterar uma obra acabada sem a presença do compositor, há muito morto. Não vou entrar nessa discussão, só estou me referindo a ela porque Berlioz inicia o prefácio da partitura da Danação justamente se defendendo da acusação de que teria “mutilado um monumento”:
“O título dessa obra já indica que ela não é baseada na ideia principal do ‘Fausto’ de Goethe, porque, no ilustre poema, Fausto é salvo. O autor de ‘A Danação de Fausto’ apenas tomou emprestado de Goethe um certo número de cenas que poderiam entrar no plano que ele havia traçado, cenas que exerciam uma sedução irresistível sobre seu espírito. Mas se ele tivesse permanecido fiel ao pensamento de Goethe, teria ainda incorrido na censura, que várias pessoas já lhe dirigiram (algumas com amargura), de ter mutilado um monumento”.
Berlioz também lembra que ele não era o primeiro (e não seria o último) a levar uma obra “sagrada” da literatura ao universo musical: Mozart, Gluck, Rossini e tantos outros já o haviam feito. E criaram, por sua vez, obras igualmente “sagradas”.
Nesse sentido, é bom lembrar que Berlioz não tocou na obra de Goethe: não a reeditou, não a alterou, não fez acusações contra o autor, não julgou a obra com critérios anacrônicos: apenas inspirou-se nela para criar a sua própria obra, uma obra nova. Mais que isso, sua Danação usa outra linguagem, outro meio: o drama musical. E ele aponta isso no prefácio: “sabemos que é absolutamente impraticável musicar um poema (…), que não tenha sido escrito para ser cantado, sem fazer uma série de modificações”. Berlioz, sim, fez uma leitura nova, criou uma obra importante e que entrou para a história.
Goethe publicou a primeira parte de seu Fausto em 1808. Em 1823, a tradução para o francês, feita por Gérard de Nerval, já era o livro de cabeceira de Berlioz. Fascinado, o compositor não tardou a transformá-la em música. Assim nasceram as Oito Cenas de Fausto, obra de juventude que viria a dar origem, quase vinte anos mais tarde, com o compositor já maduro, à Danação de Fausto.
Ópera? Oratório? Como ocorreu com o Fausto de Goethe, onde prosa e poesia se misturam, a Danação não se enquadra em nenhum gênero dramático de seu tempo. Berlioz a denominou “ópera de concerto”, depois “ópera-lenda”, depois “lenda dramática”. Tanto o Fausto de Goethe quanto o de Berlioz não se prestam bem à representação cênica.
Não é apenas nessa liberdade de gênero que a obra de Berlioz se aproxima da de Goethe. Madame de Staël, no vigésimo terceiro capítulo de seu célebre D’Allemagne (1810), escrito na época em que existia apenas o primeiro Fausto (no qual Berlioz se baseou), ao comentar o final da obra, observa que ela é bruscamente interrompida. “A intenção do autor é sem dúvida que Marguerite morra, e que Deus a perdoe; que a vida de Fausto seja salva, mas que a sua alma se perca”. Diferentemente do que Berlioz escreveu no prefácio, portanto, a danação já está em Goethe.
Também os personagens de Berlioz trazem boa parte do espírito que ganharam em Goethe. “O diabo é o herói da peça”, escreveu Mme de Staël. Para ela, Goethe o concebeu como “o vilão por excelência”. Como bem observa, o irônico e irreverente diabo “engana o espírito (…) quando faz com que se interesse seriamente por qualquer coisa. (…) O personagem de Mefistófeles supõe um conhecimento inesgotável da sociedade, da natureza e do belo”.
Se em 2014 todos os holofotes se direcionaram para o Fausto de Michal Spyres, em 2023 Mefistófeles apareceu como “o herói da peça”: o barítono inglês Roderick Williams, que no sábado anterior havia cantado na cerimônia de coroação do rei Charles III. Como em Goethe, em Berlioz Mefistófeles tem o papel mais interessante, mais criativo. Parece ser o único personagem vivo, realista, consciente, capaz de manipular os espíritos. E Williams soube encarnar esse personagem. A naturalidade do seu timbre, a sua ironia, sua articulação bem trabalhada, sua dicção clara, seu francês correto e compreensível, fizeram dele o destaque do… ensaio geral! O problema foi que o longo ensaio matinal ocorreu no mesmo dia da estreia, e, à noite, mal se ouvia o barítono, cuja voz já estava cansada. É verdade que ele não tem grande volume, foi frequentemente encoberto pelo coro e estava visivelmente incomodado com o volume dos metais em sua ária das flores. Isso tudo já ocorreu no ensaio, mas se agravou muito à noite. Os diretores da OSESP precisam entender que esse complexo instrumento chamado “voz humana” não funciona como um piano ou um violino, não basta dar uma afinada antes do concerto, é um instrumento vivo, precisa de cuidados específicos.
O papel de Brander é pequeno, mas é dele a canção sobre o rato, um dos saborosos hits da obra. A OSESP tomou a acertada decisão de chamar para o papel um membro do seu coro: o barítono Erick Souza. Dono de voz poderosa e boa musicalidade, sua boa dicção seria um mérito, não tivesse ela evidenciado as deficiências do seu francês, mas esse é o tipo da coisa que se resolve com a prática e com um bom pianista correpetidor – carreira que, infelizmente, não existe no Brasil.
Também não é muito grande o papel de Marguerite: ela só chega na terceira parte. Em compensação, a sua participação é intensa: duas árias, às quais Berlioz conferiu um bom poder dramático, e um dueto. Como apontou Mme de Staël, Marguerite é “singularmente simples de mente e de alma. Ela é piedosa, mesmo sendo culpada”. Sua história “aperta dolorosamente o coração. Seu estado vulgar, sua mentalidade limitada, tudo o que a sujeita ao infortúnio, sem que ela possa resistir, inspira ainda mais piedade por ela”.
A jovem e promissora mezzosoprano russa Karina Demurova tem uma bela voz e parece estar atenta à necessidade de alguma interpretação. Isso ficou claro já na canção do rei de Tule. Só que a interpretação só funciona de fato quando a personagem está bem trabalhada pela intérprete, quando tudo está resolvido e bem estudado musicalmente. Lamentavelmente, não foi o caso de Demurova. As qualidades da sua voz, bem como o seu esboço de interpretação se perderam em função de uma visível insegurança técnica e musical. Isso comprometeu especialmente o seu romance D’amour l’ardente flamme, um dos momentos mais inspirados e esperados da obra. Demurova é uma intérprete ainda imatura, aquém da qualidade que se espera dos solistas da OSESP.
“Fausto reúne em seu personagem todas as fraquezas da humanidade: desejo de conhecimento e fadiga do trabalho; necessidade de sucesso, saciedade de prazer. É um modelo perfeito do ser mutável e volúvel, cujos sentimentos são ainda mais efêmeros do que a vida curta de que se queixa. Fausto tem mais ambição do que força; e essa agitação interior o revolta contra a natureza e o faz recorrer a todo o tipo de sortilégios para escapar às duras, mas necessárias, condições impostas ao homem mortal”. Mme de Staël bem poderia estar se referindo ao Fausto de Berlioz. É bem verdade que o jovem tenor ucraniano Valentyn Ditiuk não conseguiu transmitir a agitação, as mudanças e as nuances do seu personagem. Essa deficiência de interpretação, no entanto, ficou pequena em vista da beleza do seu timbre, da sua voz volumosa, bem colocada, com graves e agudos consistentes, e de uma bela dose de lirismo. Fez, em resumo, um ótimo Fausto. Soube poupar-se no ensaio e foi ele o grande destaque vocal da noite. Um tenor que tem tudo para fazer uma ótima carreira.
Preparado por William Coelho, o coro foi formado pelo Coro da OSESP e pelo Coro Acadêmico da OSESP. Para nós, frequentadores da Sala São Paulo, que nos acostumamos a ouvir uma sonoridade perfeita vinda do coro, foi um pouco decepcionante. Foi como se Mefistófeles, com seu cinismo, nos mostrasse que aquela pedra preciosa, resultante do trabalho impecável da saudosa Naomi Munakata e da importância dada ao grupo na primeira década dos anos dois mil, vítima da falta de interesse em dar continuidade a bons projetos, não estava mais tão bem polida, estava retornando ao seu estado bruto. Aparentemente, não houve um trabalho para diferenciar as diversas situações pelas quais o coro passa ao longo da obra. Um exemplo é o Amém em fuga: trata-se de uma ironia, uma brincadeira, de um canto de bêbados orando pela morte de um rato, e soou como o “amém” de uma missa. Mas o mais sério é que em vários momentos durante a obra o texto ficou embolado, e o fraseado deixou a desejar. Espero que os gestores da OSESP olhem com mais atenção e carinho para esse coro que tem feito parte, de forma tão marcante, da cena musical paulistana.
Foi muito especial a participação do Coro Infantil da OSESP, preparado por Erika Muniz. Com uma sonoridade uniforme, limpa, esse coro de vozes brancas reuniu crianças atentas, compenetradas, e deu um toque especial à récita.
Sob a regência de Thierry Fischer, seu maestro titular, apesar de algum desequilíbrio na sonoridade dos metais e de alguns desencontros nos momentos de pizzicato, a OSESP saiu-se muito bem – até surpreendentemente bem para uma ópera em concerto com tão pouco ensaio. Foi da orquestra que veio o grande brilho da noite: das madeiras e seus solos, tão relevantes na caracterização de Marguerite e em suas árias; das cordas, com um belo efeito no jogo entre primeiros e segundos violinos. Enfim, a OSESP transmitiu a riqueza e a sutileza da partitura de Berlioz.
Se nem tudo foi perfeito, isso não significa que não tenha sido um concerto especial. Ao contrário: saí da sala com vontade de voltar no dia seguinte para ouvir, de novo, essa música irresistível. Como é bom ouvir uma ópera, mesmo em concerto, em solo brasileiro, com uma orquestra do nível da OSESP!
Que venham mais óperas em forma de concerto, mesmo que sejam peças compostas para o palco, como tantas que a OSESP já apresentou no passado. Em primeiro lugar, porque a ópera em forma de concerto permite que o público fique focado na parte musical e tenha um contato diferente com a obra, com uma maior apreciação da instrumentação, do papel da orquestra. Além disso, a ópera faz parte da programação das grandes e importantes orquestras sinfônicas do mundo. A Filarmônica de Berlim é um exemplo de orquestra que, anualmente, apresenta uma ópera em forma de concerto em sua sala, e encenada fora dela. O cantor é uma categoria de solista que também merece espaço dentro da programação da OSESP, e a ópera, sobretudo aquela mais interessante musicalmente, também merece voltar para a temporada. Claro que, nesse caso, para um bom resultado, seriam necessários ensaios mais espaçados e em maior número, como acontecia antes – quando a OSESP ia apresentar uma ópera, não havia concertos na semana anterior, que era reservada para os ensaios.
Fotos: obtidas nas redes sociais da OSESP.
Cofundadora do site Notas Musicais, também colabora com a revista eletrônica mexicana Pro Ópera e com o site italiano L’Ape Musicale. Fez parte do júri das edições 2020 e 2022 a 2024 do Concurso Brasileiro de Canto ‘Maria Callas’ e é membro do conselho de Amigos da Cia. Ópera São Paulo. Em 2017, fez a tradução, para o português, do libreto da ópera Tres Sombreros de Copa, de Ricardo Llorca, para a estreia mundial da obra, em São Paulo. Estudou canto durante vários anos e tem se dedicado ao estudo da história da ópera e do canto lírico.
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