A obra foi apresentada em conjunto com Isolda/Tristão, de Clarice Assad, que também será analisada, em breve, por Danielle Carvalho.
Ainadamar (2003) |
Música: Osvaldo Golijov Libreto: David Henry Hwang Ópera em 3 atos. |
Theatro Municipal de São Paulo, 15 de setembro de 2023 |
Direção musical: Alessandro Sangiorgi Direção cênica: Ronaldo Zero |
Cenografia: Nicolás Boni Figurino: Olintho Malaquias Iluminação: Wagner Antônio Visagismo: Tiça Camargo Coreografia: Fábio Rodriguez |
Margarita Xirgu: Marisú Pavón, soprano Nuria: Lina Mendes, soprano Lorca: Denise de Freitas, mezzosoprano Ruiz Alonso: Flavio Rodrigues, cantor de flamenco Niña 1: Raquel Paulin, soprano Niña 2: Monique Rodrigues, soprano José Tripaldi: Daniel Lee, barítono Toureiro: Miguel Geraldi, tenor Professor: Rubens Medina, tenor Mariana Pineda: Miranda Alfonso, bailarina Niño: Gabriel Avellar, ator |
Orquestra Sinfônica Municipal Coro Lírico Municipal Corpo de Baile |
Em 19 de agosto de 1936, albores da Guerra Civil Espanhola, Federico García Lorca é morto pela Falange franquista. Os motivos restam questionáveis: o fato de Lorca ser poeta de extrema popularidade e invulgar influência; a sua homossexualidade. O regime de Francisco Franco emerge quando a monarquia espanhola é substituída por um regime republicano de tendência socialista. O esforço progressista é rapidamente minado com o início da Guerra Civil Espanhola, que cobre o país com “uma torrente de sangue quente” – como profere Margarita Xirgu, a atriz-mártir de Ainadamar, ópera do argentino Osvaldo Golijov com libreto do norte-americano David Henry Hwang que o Theatro Municipal de São Paulo reencena de 16 a 23 de setembro de 2023, depois de estreá-la no Brasil na temporada de 2015.
Chamá-la de obra-prima de ópera talvez seja falsear a realidade, uma vez que esta obra enlaça o gênero operístico ao teatro e, por receber amplificação mecânica do som, a espetáculos como o musical (sobretudo a vertente contemporânea, de ressaltado potencial crítico) e, como bem aponta o seu programa de sala, ao cabaré. E neste entrelugar ela consegue se realizar magistralmente.
Ainadamar divide-se não em três atos, mas em três “imagens”. Imagens profundamente sentimentais, captadas pela objetiva da fantasia de Margarita Xirgu, musa de Lorca, instantes antes da morte da atriz. A obra resolve colocar em debate o lugar do próprio teatro, esse limite tênue que ele estabelece entre a ficção e a realidade – a ficção da cena (mesmo com laivos de realidade) e a realidade da plateia que assiste. Assim, Lorca, que perece na segunda imagem, surge redivivo na terceira, convidando Margarita Xirgu a atravessar com ele o limiar do reino dos mortos. Ao caminharem rumo ao fundo do palco, para fora da cena, ambos provocam o público a imaginar como seria este mundo, transformando os espectadores em personagens ativos da história.
Os belos figurinos de Olintho Malaquias, em parte oriundos da primeira encenação paulistana da obra, remetem de forma realista aos momentos históricos nos quais a ação se passa. A imaginação, todavia, preside o espetáculo, que dá de ombros ao realismo. Ao fundo do palco nu, um tablado retangular horizontal oferece-se como um novo palco, espaço onde aparece Federico Lorca sempre que as retinas de Margarita Xirgu o convocam. Sobre este palco vertical, ilumina-os a enorme lua dos românticos. No centro dele, ora surge uma pequena mesa redonda de bar, e apoiado nela o poeta convida a atriz para desempenhar o papel-título na peça Mariana Pineda, que ele acabara de escrever; ora surge Luiz Alonso, representado por um cantor flamenco que, à guisa de coro trágico, clamará ao povo “Ai meu Deus! Entreguem-no! Acabem com isso!”; ora, enfim, monta-se a prisão que acolherá o poeta em seus instantes finais, onde ele, em vias de ser alvejado pela Falange, clama a Deus para que o perdoe. De cada lado do palco do Theatro Municipal, as fileiras portas rubras por onde entram os personagens são permeadas com imagens de manuscritos de Lorca.
A obra tem um ressaltado contorno político. Lorca intitula Margarita de “rainha proletária do teatro espanhol”. Ainadamar principia a colocar os dois em relação quando o poeta convida a atriz a representar Mariana Pineda, uma personagem de contornos reais, já que é baseada na personagem histórica de Mariana de Pineda Muñoz, jovem liberal morta em 1831 por se contrapor ao regime absolutista de Fernando VII. A divisa de Mariana torna-se também a de Margarita: “Liberdade, Igualdade, Lei”. A bandeira vermelha, amarela e roxa da Segunda República espanhola, que ocupa do teto ao chão do Theatro Municipal, ao fundo do palco, duplica-se naquela na qual Margarita Xirgu envolve-se e, depois, envolverá a jovem Nuria, sua aprendiz nos campos da Arte e da Política, deixando para ela o seu legado.
A obra acena para pontos de inflexão da história. Quando Lorca dá o papel de Mariana a Margarita, em meados da década de 1920, Hitler já caminhava em passos largos rumo à transformação do nazismo na máquina de destruição em massa que se tornaria no início dos anos de 1940. Lorca perece em meados de 1930 devido ao fascismo franquista, simpatizante do nazismo. Mariana perece em 1969, poucos anos antes de a ditadura assumir o poder no Uruguai, para onde ela se mudara para fugir da repressão espanhola. Se não houvesse se entregado ao seu amado Lorca e à morte benfazeja, Margarita veria novamente, como vê em Ainadamar, que a República sonhada por ela era um sonho. Pouco depois de Golijov e Hwang realizarem esse sobrevoo na história da Europa e da América Latina (a obra é de 2003), a extrema-direita se alçaria ao poder no velho e no novo mundos, com os seus discursos de vieses fascistas, contrários às minorias sociais, à arte, à cultura, à vida. A luta pela defesa dos ideais que sustentam Mariana, Lorca e Margarita deve ser constante, tanto que, em Ainadamar, Nuria tem como missão passar os ensinamentos de Mariana ao coro de jovens que a circunda, e assim sucessivamente.
Não obstante, o Lorca de Ainadamar dirá à passional militante Margarita Xirgu: “esta obra não é política”. O Lorca lembrado por Margarita é, a um só tempo, menino e homem: menino (o gracioso e talentoso Gabriel Avellar) que corre pelo palco do Theatro Municipal; homem que rememora apaixonadamente os encontros que tivera na infância com a estátua de Mariana Pineda, cujos lábios de pedra tornavam-se rubros e lhe davam beijos doces que o adormeciam todas as noites.
Tanto o aspecto político quanto o lirismo presentes na obra emergem com força na encenação de Ronaldo Zero e nos cenários de Nicolás Boni. Mariana Pineda, personagem sem voz na ópera, é personificada no palco por uma dançarina de flamenco (a ótima Miranda Alfonso), que atravessa a ação com uma fúria apenas aplacada no momento em que ela abraça Lorca, já nos estertores da obra, pouco antes de os destinos de ambos se unirem. É uma escolha cênica acertada, pois faz emergir a força daquela mulher que fascinara o poeta ao longo de sua vida, e que, por conseguinte, fascina Margarita Xirgu.
Embora o espaço do palco nu seja caro a esta encenação – já que o palco teatral é o ponto de partida de todas as histórias –, ele é atravessado por um conjunto de imagens de grande força visual criadas por jogos de luzes. Ainadamar, “a fonte das lágrimas”, assim denominada por ter sido o patíbulo de Lorca (transformado pela obra em uma espécie de Jesus Cristo, pois percorreu a sua via-crúcis em meio a dois homens, um professor e um toureiro), é uma projeção de flashes de luzes num fundo azul celeste, no qual se banha o coro das jovens. E Lorca será, ao fim da segunda imagem da obra, atravessado por balas feitas de luzes vindas do fundo do palco, que ultrapassam a cena e chegam à plateia, colocando em contato os espaços da ficção e da realidade.
O som da saraivada de balas é reproduzido eletronicamente, à maneira dos sons incidentais utilizados no teatro. Assim também o são os sons da água da fonte e dos cascos de cavalos que são emblemas da Falange. A obra tem um ressaltado tom de teatro político, recuperando os contornos do encontro entre Lorca e Mariana. Também é inserido eletronicamente um trecho de um hediondo discurso histórico proferido por oficiais falangistas em 1936 (informação que retirei do bom programa desta montagem): “Exterminaremos as sementes da revolução até dos úteros das mães…”. A sua música é tecida a partir de uma sonoridade que remete do flamenco à música judaica (o ótimo texto de Camila Fresca presente no programa do espetáculo recupera essas influências de forma detalhada). Essa heterogeneidade, que distancia a obra dos demais espetáculos do gênero operístico encenados na cidade, foi abordada com firmeza por Alessandro Sangiorgi, a quem coube a direção musical e a regência. A Orquestra Sinfônica Municipal respondeu-o com brio, realizando um trabalho de bastante consistência.
A polifonia é entremeada pelos versos alusivos à morte de Mariana Pineda pelo regime de Fernando VII, escritos por Federico Lorca, que o coro de jovens canta ao longo do espetáculo, à maneira de estribilho, de forma cada vez mais lúgubre. Tal polifonia algo distante do gênero operístico e o uso de amplificação acústica fazem com que a parcela mais conservadora do público devoto do gênero torça o nariz para Ainadamar. Não sei se este texto será publicado a tempo de convencê-lo a não o fazer, e tampouco tenho pretensões a este respeito, mas é necessário que se ressalte a grande qualidade deste espetáculo interpretado (sobretudo) por mulheres bravas, que dominam os papéis que representam do ponto de vista vocal e cênico, prova enorme de respeito pelos âmbitos da música, do teatro e, porque não dizer, dos ideais que esta obra encampa, já que falamos de um elenco quase que totalmente feminino a decantar a liberdade e a igualdade em um mundo em que as mulheres ainda são preteridas em detrimento dos homens.
Embora o papel de Lorca tenha sido escrito originalmente para uma mezzosoprano, ocasionalmente ele é desempenhado por contratenores. Apesar de o Theatro Municipal ter feito esta opção na encenação de 2015 (quando o cantou Luigi Schifano), desta vez respeitou-se a distribuição pensada originalmente para a obra. O papel de Lorca coube à excelente e experiente mezzo Denise de Freitas, quiçá a cantora lírica em atividade no Brasil que mais cantou en travesti. Já Margarita Xirgu foi interpretada pela soprano que lhe deu vida na primeira montagem da obra na cidade, que tem grande experiência neste papel e o canta com uma excelência análoga, Marisú Pavón.
Entre o poeta e a sua musa está Nuria, a jovem que provoca as lembranças da atriz-professora, desempenhada, nesta montagem, pela soprano Lina Mendes. Atriz consolidada no teatro musical e de carreira ascendente no lírico, Lina desempenha uma Nuria cuja suavidade ao tratar com Margarita desdobra-se em firmeza no desfecho da obra, quando ela assume o legado da mestra.
Ao cabo da ópera, quando Lorca está prestes a levar Margarita consigo, o acerto da escolha de um trio feminino é ressaltado pelo grande lirismo e pela beleza com que as três timbram ao cantarem em uníssono. O desejo de liberdade preside a cena. Uma liberdade “ferida e sangrando esperança”, conforme diz Margarita nos estertores da obra, a ressaltar que a vitória apenas emerge da dor e da luta, e que a sua semente pode demorar gerações até germinar e dar frutos.
Uma esperança que sangra. Se a encenação opta por poucos elementos cênicos, o libreto de Ainadamar (dos mais belos que a ópera contemporânea já pariu) tem uma imagética potente. É vermelho de sangue e de amor: dos lábios de Mariana, por quem se apaixonou o menino Lorca; do sangue que ele vê “correr pelas ruas”, em meio ao qual canta “coroado de espinhos”, à maneira de um Jesus Cristo tropical, no qual a religiosidade mistura-se à lascívia.
Esta poesia que dá peso às ambiguidades, cuja força equipara-se à poética de Lorca, é compreendida de forma profunda pelas cantoras às quais cabem os papéis principais da ópera, Marisú Pavón e Denise de Freitas.
Pavón encorpa de forma dilacerante o papel da atriz cujas paixões pelo ofício, por Lorca e pelos ideais que ele encampa se misturam. A personagem de Margarita envereda por um carrossel de emoções, alternando abruptamente do drama mais lancinante ao humor agridoce. Para atravessá-lo, a obra demanda uma amplitude vocal que Marisú sustenta de forma segura. Sua qualidade vocal soma-se à dramática: cada verso que ela canta tem uma intenção bem pontuada. Vinda de narrar a Núria flashes dos horrores da Guerra Civil Espanhola, ela rememora, ao ser instada pela aluna, o primeiro encontro que tivera com Lorca. O clima se alterna bruscamente, e a Margarita dilacerada dá lugar à mulher ligeiramente embriagada e coquete que se entrega à sua arte, ao seu poeta – aliás, é preciso que se destaque aqui a química entre as intérpretes de ambos os papéis, cujas trocas são eletrizantes mesmo quando as duas estão em cantos opostos do palco.
Já Denise de Freitas cria um Lorca em que se misturam os arroubos líricos e a ironia cáustica. Depois de atravessar a cena como uma aragem fresca em meio ao mar de tristezas que Margarita evoca, e de dançar com ela enquanto evoca o sonho impossível de “abrir seu crânio ao sol” em meio aos anjos nus de Cuba (imagem potente, que alude à libertação violenta das amarras sociais e sexuais), Lorca diz peremptoriamente a Margarita: “Não vou”, “canto o canto dos que se calam, dos que morrem, fico aqui”. Denise de Freitas está entregue à personagem tanto do ponto de vista dramático quanto vocal. Se vocalmente realiza um trabalho impressionante, em que a sua conhecida potência serve um timbre grave como eu jamais tinha visto/ouvido anteriormente, cenicamente encarna Lorca com fúria e doçura, de passos firmes e olhos marejados. Artistas ocasionalmente têm a ventura e o carma de serem, como cavalos, médiuns cujas mentes são possuídas pelos espíritos dos mortos, tornando-se um canal entre aqueles que já partiram e este plano. Lorca revive em Denise.
O elenco do espetáculo completa-se com um time sólido de comprimários. A Daniel Lee, que tem um admirável timbre de barítono, cabe o papel do padre que toma a última confissão de Lorca. Os companheiros de patíbulo do poeta são interpretados pelos tenores Miguel Geraldi e Rubens Medina. As duas “Niñas”, que encabeçam o coro das jovens aprendizes de Margarita, são interpretadas pelas sopranos Raquel Paulin e Monique Rodrigues, e ambas desempenham as suas partes com justeza vocal e entrega dramática, a exemplo das vozes femininas do Coro Lírico Municipal.
Esta obra ao mesmo tempo dolorosa e bela é uma ode ao oficio do ator e ao espaço do teatro; espaço no qual se realiza esta arte que amamos, a ópera – mesmo este exemplar enviesado de ópera moderna, que, ao reescrever o gênero, inscreve-o nos corações de novos públicos.
Ao ser representada sobretudo por mulheres admiráveis, Ainadamar recupera o histórico papel político do teatro, e ao entrelaçar o público à encenação, convida-o à ação. No fim do dilacerante Noite e Neblina, de Alain Resnais (1955), o narrador ressalta que é preciso rememorarem-se os horrores do holocausto para que algo do tipo nunca mais ocorra. “Quem de nós vigiará para advertir sobre a chegada de novos algozes?”, o documentário questiona. Ao sondar a historicidade de regimes de teor fascista, Ainadamar nos provoca, por meio de sua poesia transcendental, a agir, no plano da reflexão e da ação, contra a emergência deste mal que ainda nos ameaça – daí o acerto do Theatro Municipal de São Paulo de reencená-la.
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Fotos: Rafael Salvador / TMSP.
Pós-doutora em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP; graduada, mestre e doutora em Letras pela UNICAMP. Tem artigos e livros publicados nos âmbitos da literatura, do cinema e do teatro, seus três campos de interesse, procurando refletir sobre a sua interrelação.
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