As Olimpíadas Musicais de Paris

Com “L’Olimpiade, de VIvaldi, o Théâtre des Champs-Elysées entrou no clima dos Jogos Olímpicos.

L’Olimpiade (1734)
Ópera em 3 atos
Música: Antonio Vivaldi (1678-1741)
Libreto: Pietro Metastasio (1698-1782)
Théâtre des Champs-Elysées, 20 de junho de 2024
Direção musical: Jean-Christophe Spinos
Direção cênica: Emmanuel Daumas
Cenografia: Alban Ho Van
Figurinos: Marie La Rocca
Iluminação: Bruno Marsol
Coreografia: Raphaëlle Delaunay
Licida: Jakub Józef Orliński, contratenor
Megacle: Marina Viotti, mezzosoprano
Aristea: Caterina Piva, mezzosoprano
Argene: Delphine Galou, mezzosoprano
Aminta: Ana Maria Labin, soprano
Clistene: Luigi De Donato, baixo
Alcandro: Christian Senn, barítono
Ensemble Matheus

Ainda faltava um mês para o início dos Jogos Olímpicos, mas Paris já havia entrado no clima: a cidade estava lotada, as ruas pulsavam até tarde da noite, aproveitando cada raio do sol de verão; proliferavam-se os mais variados eventos, deixando a cidade mais alegre – e mais caótica. Felizmente, a ópera não ficou alheia a esse ambiente olímpico: Michel Franck, diretor geral do Théâtre des Champs-Elysées, e o maestro Jean-Christophe Spinosi, diretor do Ensemble Matheus, resolveram levar L’Olimpiade, de Antonio Vivaldi (1678-1741), ao palco do TCE.

Com libreto de Pietro Metastasio (1698-1782) – um dos ícones da opera seria –, a ópera estreou em Veneza em fevereiro de 1734. O libreto é considerado um dos melhores de Metastasio: foi musicado cerca de oitenta vezes, e a primeira dessas óperas estreou em Viena, com música de Antonio Caldara, apenas um ano antes da criação da ópera de Vivaldi. A trama, que se passa na Grécia Antiga – bem ao gosto dos venezianos, autoproclamados herdeiros de Tróia –, não trata diretamente dos jogos olímpicos, mas os coloca como pano de fundo.

Embora a simplicidade seja um dos princípios da opera seria, o enredo parte de um argumento nada simples. Clistene, rei de Sícion, na Grécia, mandou matar o seu filho pois um oráculo havia dito que ele poderia vir a matá-lo. Como sempre acontece nesses casos, a criança, em vez de morta, é levada para outras terras – Creta, onde é criado sob o nome de Licida e como filho do rei. Licida se apaixona por Argene, mas o rei se opõe ao casamento. Argene foge para perto de Olímpia, em Élide, onde vive como pastora. Licida também vai a Élide, mas para assistir aos Jogos Olímpicos. Ao chegar, fica sabendo que o rei Clistene estava oferecendo a mão de sua filha, Aristea, ao vencedor. Licida, que não sabe que Aristea é sua irmã gêmea, apaixona-se por ela imediatamente. Para vencer os jogos, Licida pede que o seu amigo ateniense Megacle, um campeão olímpico a quem outrora ele já havia salvado a vida, participe da competição sob o seu nome. Megacle aceita, mas o problema é que Megacle e Aristea são apaixonados um pelo outro, e só não se casaram porque o rei não permitiu que a filha desposasse um ateniense. Depois de algum drama, da vitória de Megacle disfarçado de Licida e de uma tentativa de suicídio frustrada de Megacle, a farsa é desmascarada, a real identidade de Licida é descoberta, e tudo acaba bem.

Para Reinhard Strohm em “The Operas of Antonio Vivaldi” – o mais completo livro sobre a vasta produção operística do compositor – “Os quatro jovens (…) são levados por suas paixões míopes e por sua bondade inata, bem como por sua capacidade de serem fiéis e verdadeiros e por sua incapacidade de serem sempre assim, a um final que não é apenas feliz, mas também revela uma verdade sobre eles. Nesse sentido, o objetivo do drama é filosófico. Uma moral secundária da peça é a social: os erros dos pais – chauvinismo e preconceito – são revelados como tendo sido o único obstáculo real à felicidade”.

E começam os jogos!

Emmanuel Daumas, que assina a direção cênica, soube, de forma inteligente e bem-humorada, aproveitar o clima olímpico e colocar o esporte em primeiro plano. O cenário de Alban Ho Van utilizou diversos elementos que aludem às olimpíadas do nosso tempo e à Grécia Antiga, lembrando-nos de toda a tradição que os Jogos Olímpicos carregam, enquanto os figurinos de Marie La Rocca e, sobretudo, a ousada coreografia de Raphaëlle Delaunay transformaram os cantores, que contracenaram com acrobatas e dançarinos, em verdadeiros atletas contemporâneos. Merece destaque a iluminação de Bruno Marsol, que se fez notar em vários momentos: colocou os atletas em aquecimento na contraluz durante a abertura; criou um ambiente propício para a feiticeira inventada por Daumas fazer as suas oferendas; outro ambiente intimista no belo dueto entre Megacle e Aristea, e assim por diante.

Daumas e Spinosi partiram da vivacidade da música de Vivaldi para colocar o canto em seu lugar de esporte de alta performance. Essa foi a boa ideia. Outra ideia interessante foi uma sutil modificação no final. Ao contrário do libreto de Metastasio, a encenação de Daumas sugere que Megacle morreu: saiu voando, com asas de anjo, e foi tentar salvar Licida. Desse modo, o último recitativo foi suprimido: em vez de Clistene perguntar ao povo se devia ou não sacrificar Licida – que, nessas alturas, todos já sabiam que era, na verdade, seu filho Filinto –, é Megacle, ou o espírito de Megacle, que introduz o coro Viva il figlio delinquente, que absolve Licida.

A meu ver, no entanto, o maior mérito da direção de Daumas residiu nos recitativos. Foram feitos com entonação, sem a monotonia que deixa o ouvinte à espera da próxima ária. Essa encenação dinâmica, com teatralidade e musicalidade, onde teatro, canto e esporte se misturam, foi bastante eficiente para criar um espetáculo agradável e prender a atenção do público na obra barroca.

Jakub Józef Orliński (Licida)

Nem todas as ideias foram tão felizes, contudo. Aminta, o preceptor de Licida, um papel para soprano travestido, foi transformado em uma espécie de feiticeira. Sua primeira ária, a bela Fidarsi della speme, em que, quase num amargo lamento, adverte Licida sobre o erro a que é conduzido quem confia demais na esperança, foi desfigurada, transformada no cacarejar da galinha que estava sendo sacrificada enquanto Aminta cantava. Em seguida, antes do coro pastoral Oh care selve, foi introduzido um ritmo que parecia oriundo da Sagração da Primavera – que estreou no mesmo TCE –, um ambiente musical totalmente estranho a todo o restante da ópera. Esses exageros não chegaram a comprometer o espetáculo, mas revelaram um vale-tudo para fazer o público se divertir com uma ópera barroca, para ver com uma opera seria pode não ser tão séria e nem tão chata.

Durante a abertura, uma cativante sinfonia em três movimentos, vemos os atletas em pleno aquecimento – dentre eles, Licida, interpretado com espírito olímpico pelo contratenor Jakub Józef Orliński. Orliński canta a sua primeira ária, a rápida Quel destrier che all’albergo è vicino, como um acrobata, chegando, inclusive, a se equilibrar em cima de um cavalo de ginástica durante o da capo. O contratenor entregou uma bela interpretação da ária Mentre dormi, no final do primeiro ato, quando convivem, sob o espírito pastoral, uma canção de ninar para Megacle e o egocentrismo de Licida, para quem tudo deve girar em torno do seu próprio amor por Aristea – até mesmo os sonhos de Megacle. O que prevaleceu na apresentação de Orliński, no entanto, não foi a inventividade musical, mas certa monotonia no canto, quebrada pela sua atuação como ginasta, pela perfeita adequação das suas condições físicas ao papel.

Marina Viotti (Megacle) e Caterina Piva (Aristea) durante o dueto

Orliński dividiu o protagonismo com o Megacle de Marina Viotti, bem mais atenta aos detalhes e às variações musicais. Dentre as exigências físicas a que Viotti foi exposta, nada se compara com a de sua ária final, Lo seguitai felice – justamente a que tem mais coloraturas –, quando teve que cantar o da capo suspensa por um par de asas. Mesmo sem poder apoiar os pés, Viotti conseguiu manter a qualidade do seu canto.

A grande revelação da noite foi, para mim, a mezzosoprano italiana Caterina Piva, intérprete de Aristea. Além de ótima atriz – a melhor atriz em cena –, Piva utilizou com habilidade todo o vasto colorido da sua voz a serviço da interpretação e de um inventivo fraseado. Sua ária Sta piangendo la tortorella, com as acrobacias de Quentin Signori ao fundo, foi uma das sensações da noite. O melhor momento, porém, foi o engenhoso e delicioso dueto Ne’ giorni tuoi felice, entre Aristea e Megacle, quando Aristea, que nada sabia sobre a farsa, não entende Megacle e manda que ele fale, enquanto ele pede que ela se cale. As vozes de Piva e Viotti se combinaram lindamente, mas sem deixar de se distinguir em momento algum. Foi a pérola musical da noite.

Caterina Piva (Aristea) e o acrobata Quentin Signori

Já o ponto fraco ficou com a Argene de Delphine Galou. Ao abraçar um papel que, aparentemente, não favorecia a sua tessitura, a voz de Galou soou opaca e se projetou com dificuldade.

Com boa agilidade, Ana Maria Labin foi uma ótima Aminta – e teria sido melhor ainda se tivessem permitido que ela cantasse Fidarsi della speme “comme il faut”! A nota triste é que Labin entrou na produção em substituição a Jodie Devos, que morreu, aos 35 anos, vítima de câncer, apenas quatro dias antes. Por esse motivo, Michel Franck fez uma emocionante homenagem a Devos e lhe dedicou a récita.

No início, Luigi De Donato pareceu desconfortável, sobretudo nos recitativos de Clistene. Sua interpretação, no entanto, foi crescendo consideravelmente ao longo da noite. Como Alcandro, Christian Senn destacou-se, sobretudo, em sua ária Sciagurato, in faccia a morte, na qual foi acompanhado apenas pelo violoncelista, que subiu ao palco. Mais uma vez a música foi alterada, mas de uma forma tão bonita, que só nos resta perdoar.

Dirigido por Jean-Christophe Spinosi, o Ensemble Matheus cometeu lá os seus excessos, como já foi exposto acima, mas, de um modo geral, o resultado foi uma apresentação dinâmica, com muita musicalidade e ótima sonoridade.

Luigi De Donato (Clistene) e Marina Viotti (Megacle)

Fotos: Vincent Pontet / TCE.

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