As trevas da guerra à luz das duas “Iphigénies” de Gluck

Iphigénie en Aulide” e “Iphigénie en Tauride” abriram a edição 2024 do “Festival d’Aix-en-Provence”.
Iphigénie en Aulide (1774)
Ópera (tragédie-opéra) em três atos
Música: Christoph Willibald Gluck (1714-1787)
Libreto: Marie François-Louis Grand le Bland du Roullet (1716-1786)
Iphigénie en Tauride (1779)
Ópera (tragédie mise en musique) em quatro atos
Música: Christoph Willibald Gluck (1714-1787)
Libreto: Nicolas François Guillard (1752-1814)
Grand Théâtre de Provence, 05 de julho de 2024
Direção musical: Emmanuelle Haïm
Direção cênica: Dmitri Tcherniakov
Cenografia: Dmitri Tcherniakov
Figurino: Elena Zaytseva
Iluminação: Gleb Filshtinsky
Iphigénie en Aulide:
Iphigénie: Corinne Winters, soprano
Agamemnon: Russell Braun, barítono
Clytemnestre: Véronique Gens, mezzosoprano
Achille: Alasdair Kent, tenor
Calchas: Nicolas Cavallier, baixo-barítono
Diane: Soula Parassidis, soprano
Patrocle: Lukáš Zeman, barítono
Arcas: Tomasz Kumięga, barítono
Iphigénie en Tauride:
Iphigénie: Corinne Winters, soprano
Oreste: Florian Sempey, barítono
Pylade: Stanislas de Barbeyrac, tenor
Thoas: Alexandre Duhamel, barítono
Diane: Soula Parassidis, soprano
Un Ministre / un Scythe: Tomasz Kumięga*, barítono
Une Prêtresse: Laura Jarrell, soprano
Orquestra e coro: Le Concert d’Astrée

Em meio às divisões causadas pelas guerras que se proliferam mundo afora – isso sem falar no radicalismo estimulado pelas redes sociais –, nada mais apropriado para abrir um festival do que retomar a universalidade e a racionalidade características do Iluminismo. Foi com um par de óperas fortemente associado ao Iluminismo – Iphigénie en Aulide e Iphigénie en Tauride, de Christoph Willibald Gluck (1714-1787) – que teve início a edição de julho de 2024 do Festival d’Aix-en-Provence. O presente artigo – o primeiro de uma série de cinco textos sobre óperas francesas que vi recentemente na França – propõe algumas reflexões a respeito das duas obras e do espetáculo apresentado em julho no Grand Théâtre de Provence, cujo vídeo está disponível na Arte.

Ifigênia, os antigos e os modernos

Cinco anos separam Iphigénie en Aulide (1774), a primeira ópera composta por Gluck em Paris e que estreou há exatos 250 anos, de Iphigénie en Turide (1779). Embora a compreensão do desenrolar da trama da segunda Iphigénie dependa do conhecimento dos eventos ocorridos na primeira, as duas obras não têm um encadeamento lógico, não formam um díptico. Ao contrário: o final feliz da primeira ópera, com Diana liberando Ifigênia da imolação e permitindo que ela se case com Aquiles, é quase incompatível com o fato de ela ter ido parar sozinha em Táuris, onde se tornou a sacerdotisa que, por uma ironia do destino, executa estrangeiros que por lá apareçam. Como observou, no programa de sala, Dmitri Tcherniakov, o diretor cênico da produção que estreou em Aix, “na primeira ópera, Ifigênia era uma vítima, e na segunda, nós a vemos como um carrasco”.

Entre os séculos XVI e XVIII, temas provenientes da Grécia e da Roma antigas dominavam a produção artística europeia. Na França, no campo da literatura, a querela dos antigos e dos modernos dava o tom da disputa entre autores que defendiam a retomada de temas clássicos (como era o caso de Racine) e aqueles favoráveis a uma literatura moderna. Em seu artigo Opera’s ‘Return to Antiquity’: Adaptation, gender and the illusion of authenticity in Gluck’s Iphigénie en Aulide”, Rachel M. E. Wolfe aponta que nas artes performáticas tentava-se recuperar o esplendor das antigas práticas por meio da imitação das suas formas teatrais, princípios e tema; o drama antigo era celebrado em termos superlativos. Há algo curioso, no entanto: “as peças sobreviventes do período clássico praticamente nunca foram encenadas. Entre o final do século XVI e o início do XIX, o número das encenações públicas de tragédias gregas em tradução direta é de apenas um dígito. As adaptações das tragédias gregas, por outro lado, chegam aos milhares. No processo, essas adaptações implementaram mudanças que encobriram cuidadosamente o que era estranho demais ou culturalmente ameaçador no teatro antigo (…)”.

Segundo escreve Vera Pereira em sua tese O Mito de Ifigênia no Teatro: Eurípides, Racine e Michel Azama, em Racine “é a temática do amor que mantém a unidade de ação da peça (…), entrelaçando a questão do sacrifício e da intriga política quase que como acessórios para o desenvolvimento da ação. Há todo um contexto ético-religioso como embasamento dessa intriga amorosa. Essa interferência, esse novo traçado estabelecido por Racine (…) não tem outro propósito a não ser dialogar com seu público e com o que ele esperava de uma peça teatral de seu tempo”.

Esse fenômeno verificado no teatro se reflete nas duas óperas de Gluck, que não foram baseadas diretamente nas obras homônimas de Eurípides. Bailli Du Roullet baseou-se na Iphigénie (1674) de Racine para escrever o liberto de Iphigénie en Aulide, enquanto a peça de Guimond de la Touche, de 1757, foi a principal fonte de Nicolas-François Guillard para elaborar o libreto de Iphigénie en Tauride.

É verdade que, quanto ao enredo, Du Roullet reaproximou a ópera de Gluck da peça de Eurípides. A Ifigênia em Áulis de Eurípides, centrada na dívida, na trama política e no sacrifício, e repleta de debates retóricos, é conhecida: Agamemnon deve sacrificar sua filha Ifigênia, em virtude de uma dívida com a deusa Artemis (ou Diana), para que os ventos soprem e a tropa grega possa chegar a Troia. No ambíguo final, o mensageiro conta a Clitemnestra que, após deferido o golpe, todos viram, maravilhados, que, na verdade, uma corça havia sido sacrificada no lugar de Ifigênia: a deusa não quis manchar o altar com sangue humano. Quanto ao destino de Ifigênia, o Mensageiro diz apenas: “tua filha, certamente, voou em direção aos deuses”. Clitemnestra não parece acreditar: “Ó filha, qual dos deuses te arrebatou? / Como te invocarei? Como não dizer / que estas histórias em vão me consolam / para que eu aplaque a dor da tua perda?”.

O final da peça raciniana não dá margem à menor dúvida: Ifigênia é salva, quem é sacrificada é Erífila, uma estranha à trama grega. “Aproveitada de um filão do mito e reinventada pelo escritor francês, Ifigênia, a filha nascida em segredo de uma ligação entre Helena e Teseu, é cognominada Erífila (Ériphile, no original). Portanto, na verdade, são duas Ifigênias: a filha de Agamêmnon e de Clitemnestra, e a filha de Helena e de Teseu, que desconhece sua ascendência e seu nome verdadeiro, e ambas se envolvem na disputa amorosa por Aquiles”, escreveu Vera Pereira.

Quando, no final da peça, Erífila vai consultar o oráculo para saber sua origem, é revelado que, na verdade, o oráculo foi mal interpretado: a Ifigênia que deveria ser sacrificada era ela, e não a filha de Agamemnon. No prólogo, Racine justifica o sacrifício de Erífila: “Seria de bom tom se eu tivesse manchado a cena pela matança horrível de uma pessoa tão virtuosa e tão amável como Ifigênia representava? E seria, ainda, de bom tom resolver minha tragédia pela ajuda de uma deusa e de uma máquina, e por uma metamorfose que podia bem ser crível no tempo de Eurípides, mas que seria absurda demais e inacreditável demais entre nós?”.

Gluck e Du Roullet abandonam Erífila, introduzem o deus ex machina renegado cem anos antes por Racine e retomam um final próximo ao de Eurípides, porém sem a ambiguidade. Na primeira versão, de 1774, Calcas dá a notícia de que Diana liberou Ifigênia do sacrifício e que, em seu lugar, será sacrificada uma corça; Ifigênia celebra a sua vida com seus pais e com Aquiles. Já na revisão de 1775, Diana aparece pessoalmente no palco, canta e libera Ifigênia. Foi essa a versão apresentada em Aix-en-Provence.

É importante deixar claro que esse retorno ao enredo de Eurípides não torna a Iphigénie de Gluck muito mais grega do que a de Racine. Como já frisado acima, são obras que refletem a mentalidade do tempo em que foram escritas, e não a da Grécia Antiga.  “A ópera de Gluck e Du Roullet (…) ocupa um meio termo entre as duas que lhe permite encobrir com eficiência os elementos culturalmente problemáticos do texto grego e ao mesmo tempo parecer mais autenticamente clássico que seu imediato predecessor francês”, escreve Wolfe. “Esse movimento cria uma ilusão de autenticidade que reforça as credenciais da ópera na estética do ‘retorno à Antiguidade’, enquanto evita qualquer engajamento direto com os valores culturais estrangeiros realmente autênticos, que poderiam desafiar as construções hegemônicas contemporâneas, particularmente a construção de gênero”.

Para demonstrar este ponto, Wolfe toma como exemplo o tratamento dado a Clitemnestra. “A Ifigênia em Áulis grega é essencialmente uma série de embates retóricos entre Agamemnon e os outros personagens sobre o destino de Ifigênia, com Clitemnestra como a última e mais poderosa antagonista, dominando o palco desde o momento em que aparece”, argumenta Wolfe. Racine e Du Roullet mantêm a cena em que Clitemnestra suplica a Aquiles que salve a sua filha, mas suprimiram o embate entre ela e o marido. Esse embate, que Wolfe qualifica como “bombástico”, é duplamente revelador: expõe a personalidade de Clitemnestra e contextualiza a trama como parte de um mito:

“(…) casaste comigo sem minha vontade e me tomaste à força,
depois de ter matado meu primeiro esposo, Tântalo,
e esfacelado no chão meu filho vivo
arrancando-o brutalmente de meu seio.” 

Início do monólogo de Clitemnestra (1146 a 1208), em “Ifigênia em Áulis”, de Eurípides, na tradução de Vera Pereira.

Wolfe explica que nos séculos XVII e XVIII, a mulher era considerada o sexo frágil: “um grupo caracterizado especialmente por traços como indecisão, rendição fácil e um impulso de buscar proteção de figuras masculinas fortes em suas vidas”. Na Grécia Antiga, contudo, as coisas eram diferentes. Segundo Wolfe, “as mulheres dos dramas e mitos antigos possuíam um poder aterrorizante e extremamente perigoso. Acreditava-se que os reinos da magia e do engano pertenciam às mulheres (…). A derrubada do poder masculino pela mulher, especialmente por meios violentos, serve de base para muitas histórias de terror sobre a possibilidade de inversão de gênero em mitos e dramas, chegando até mesmo a algumas representações do tema na comédia”.

Clitemnestra é, na peça de Eurípides e na dramaturgia grega de um modo geral, um exemplo desse ameaçador poder feminino. Já Racine e Du Roullet, nas palavras de Wolfe, “apagam o passado de Clitemnestra e sua conexão com um futuro sangrento; eles trocam suas ameaças de morte reais a Agamemnon pelo foco no abraço protetor de uma mãe que se auto sacrifica”.

Ifigênia e o Iluminismo

Essa imagem da mulher como a mãe gentil, moral, que se entrega pelos filhos, é bastante forte no Iluminismo europeu. Desse modo, a mulher (ou a concepção de mulher) passou pelo processo civilizatório típico do Iluminismo para chegar à ópera de Gluck.

Como lembra Jean-Michel Gliksohn em Les Lumières, la musique et la Grèce, L’Avant-scene Opéra sobre Iphigénie en Tauride, no final do século XVIII, “o mito não é fantasia caduca, simples léxico utilizável à vontade; ele representa, historicamente, a ascensão do pensamento humano; ele é, na época da Razão, a mais alta expressão da outra instância que governa o indivíduo e o povo: a imaginação”.

A mais importante marca do Iluminismo presente não só nas duas Iphigénies de Gluck, mas na reforma por ele introduzida, no entanto, é a universalidade. Essa característica resulta da própria experiência artística de Gluck.

Vienense, Gluck estudou em Milão, onde passou a dominar o estilo italiano, especialmente a opera seria. Em sua passagem por Londres, teve contato com Händel e sua obra, e com a expressividade da interpretação do ator David Garrick. De volta a Viena, Gluck começou a adaptar obras para o teatro francês da cidade, familiarizando-se com a opéra-comique e com o ballet pantomime.

O domínio de diferentes estilos possibilitou a Gluck aproveitar diferentes aspectos de cada um, criando essa sensação de universalidade – ou, ao menos, de uma ópera europeia. Ainda no espírito iluminista, os ornamentos do canto, típicos da ópera italiana e que tinham a única função de exibir o virtuosismo dos cantores, deram lugar a uma linha mais direta, por meio da qual o canto e a orquestração passaram a servir à dramaticidade e ao texto (o que já era uma característica da ópera francesa). Também a alternância entre recitativo e ária deixou de ser tão marcada quanto na opera seria.

Iphigénie en Aix-en-Provence

A produção de Dmitri Tcherniakov

Passaram-se dois séculos e meio das estreias das duas Iphigénies de Gluck. Se as obras já carregam as marcas de dois tempos tão distintos – a Grécia antiga e o Iluminismo europeu –, as representações contemporâneas adicionam, inevitavelmente, o nosso tempo, a nossa mentalidade. Dmitri Tcherniakov colocou no centro da sua encenação o elemento que, possivelmente, seja o mais forte elo que liga esses três tempos, que permanece terrível, ameaçador e destruidor: a guerra. Segundo escreveu no programa de sala, para ele a guerra é o tema das obras. Iphigénie en Aulide acontece no início da Guerra de Troia, e Iphigénie en Tauride, alguns anos depois. “É muito provável que todos os que se encontravam em Áulis tenham sido mortos ou mutilados no momento dos eventos em Táuris”, escreveu Tcherniakov.

Tcherniakov ambientou Iphigénie en Aulide em um drama familiar, onde se pode captar uma certa tensão no ar já na abertura, durante a qual acompanhamos o pesadelo do patriarca – Agamemnon. Já em Iphigénie en Tauride, o que vemos são pessoas psicologicamente feridas, que vivem sob os traumas da guerra e sob as lembranças de entes queridos que padeceram. Em Aix, a Guerra de Troia se misturou à Guerra da Ucrânia – país onde fica a atual Península da Crimeia, a Táuris da Grécia Antiga.

Como as óperas foram apresentadas em conjunto, foi observada uma coerência entre os dois cenários, assinados pelo próprio Tcherniakov. Na primeira, uma casa com colunas e pilares finos e telas fazendo as vezes das paredes – que, aliás, prejudicaram a visão do público e a acústica. Na segunda parte, as estruturas da casa ganharam luzes e as telas, felizmente, desapareceram. As luzes, por vezes, também dificultavam um pouco a visão, mas o cenário de Tauride funcionou bem mais que o de Aulide.

Em Áulis, os coloridos e modernos figurinos de Elena Zaytseva aproximaram-nos da família de Ifigênia. Atingiram-nos, pois, com mais força os dramas de Ifigênia no pós-guerra, em Táuris, onde os figurinos, gastos, são em cores pasteis. Fica evidente o contraste entre os períodos anterior e posterior à guerra.

Em “Music and Narrative in the Eighteenth Century: Gluck’s Iphigénie en Aulide as Dramatic Tableau”, Kieran Fenby-Hulse aponta para dois aspectos da abertura de Iphigénie en Aulide: ela “faz parte da ação dramática da ópera” e “consiste em uma série de passagens musicais que antecipam algumas das situações dramáticas e personagens da ópera”. Essa não era a regra na época. Ao contrário: em geral a abertura das óperas italianas não tinha qualquer relação com o restante da obra.

O objetivo, aqui, mais importante do que comentar o furor e a boa recepção que a abertura obteve em sua época, é apontar que, neste momento, Tcherniakov colocou em cena justamente um resumo do que veríamos durante a ópera.

A abertura começa quando Agamemnon se deita na cama e adormece. Durante a primeira parte, um tema que cita a primeira ária de Agamemnon, tudo o que vemos é ele deitado; mas, quando se inicia o segundo tema, mais vigoroso e militar, a dinâmica e criativa iluminação de Gleb Filshtinsky se altera, permitindo ver a numerosa família, inicialmente toda de costas. Na verdade, estamos diante do sonho (ou pesadelo) de Agamemnon. Ifigênia chega vestida de branco – no final da ópera ficaremos sabendo que é o seu casamento –, com os olhos vendados, anda sem rumo, trombando, até que o seu pescoço é cortado por Calcas. É uma cena semelhante à que veremos no final da ópera.

No final, contudo, a cena ganha alguns elementos novos, sendo que o mais significativo deles é um duplo de Ifigênia: ela e a soprano que interpreta a linha de Diana estão caracterizadas de modo que é muito difícil distingui-las. Diana canta e, em seguida, é ela que tem o pescoço cortado por Calcas. Já Ifigênia está isolada, distante da cena, na lateral do palco, de onde canta. Tcherniakov retoma Racine? Devemos chamar Diana de Erífila? Talvez seja mais apropriado dizer que, ao colocar no palco duas Ifigênias e ao sacrificar uma delas no altar de núpcias, Tcherniakov reintroduziu, a exemplo de Eurípides, a dúvida quanto ao real destino de Ifigênia. Desse modo, passa a fazer sentido, após o intervalo, o seu reaparecimento eu Táuris.

Entre as duas óperas, quando se fecha a cortina, é projetada, com letras garrafais, a palavra “guerra”. Entre as duas obras, enquanto o público janta no Grand Théâtre de Provence, passam-se quase duas décadas de uma sangrenta guerra.

Após o intervalo e a guerra, encontramos Ifigênia em Táuris. Como já descrito, o ambiente é sombrio, apesar das luzes nas estruturas da casa. Durante a introdução, um frio severo sacode Ifigênia. Se em Áulis vimos o pesadelo de Agamemnon, em Táuris estamos diante das lembranças e dos delírios de Ifigênia – talvez a única sobrevivente de uma família destruída pela guerra. Na concepção de Tcherniakov, ao que tudo indica, a chegada de Orestes é uma ilusão de Ifigênia – aquele que vemos e ouvimos é ou algum soldado qualquer, da mesma idade de Orestes, que Ifigênia imagina que bem poderia ser o irmão, ou mera fantasia. Vemos Orestes e Pílades pelos olhos de Ifigênia: eles estão sempre brigando, trombando um com o outro, como fariam dois amigos na infância, brincando de guerra; mas é no final da ópera que temos o indício mais forte de que Orestes e Pílades não estão realmente lá. Após ter sido morto por Pílades (e vemos isso em cena), Toas volta e se senta à mesa com Ifigênia; Orestes e Pílades vão-se embora; Ifigênia despeja na mesa os soldadinhos de brinquedo de Orestes, que já havíamos visto em Áulis, na ópera anterior, quando ele era uma criança.

Como Orestes e Pílades fazem contundentes declarações de amizade e lealdade, é comum que algumas produções sugiram uma relação homoafetiva entre eles. Felizmente, Tcherniakov não caiu nessa tentação, porque esse recurso fácil anula uma importante característica da obra, que vem da tragédia de de la Touche e chamou a atenção na estreia (da Iphigénie de de la Touche), em 1757: a ausência de qualquer intriga amorosa. Voltaire chegou a saudar a coragem do talentoso autor de entregar às damas uma bela peça sem amor.

Corinne Winters em Iphigénie en Tauride

O elenco

O Festival d’Aix optou por escalar uma única intérprete de Ifigênia para as duas óperas. São obras escritas para vozes diferentes, contudo: Iphigénie en Aulide requer uma voz mais leve, enquanto a Iphigénie en Turide, muitas vezes interpretada por mezzosoprano, uma voz um pouco mais pesada. É bom lembrar, no entanto, que na ópera francesa, que dá valor à compreensão do texto, o canto ocorre predominantemente na região mais central. A soprano americana Corinne Winters, que tem, ao mesmo tempo, um timbre aveludado e facilidade nos agudos, foi a titular das duas óperas. Em sua interpretação, Winters deu vida a uma Ifigênia melancólica que, ainda jovem, em Áulis, mesmo condenada à morte, curva-se à vontade do pai; e, em Táuris, vive presa a um passado que não existe mais: “Ô malheureuse Iphigénie!”. Winters entregou um fraseado limpo, sem grande brilho, mas direto e com a naturalidade que caracteriza a composição de Gluck.

Conforme discutido acima, Clitemnestra sofreu alterações e um enfraquecimento em sua transposição de Eurípides para Racine. Rachel Wolfe observa que, apesar da similaridade entre os textos de Racine e Du Roullet, a música de Gluck expande consideravelmente a importância de Clitemnestra na ópera. Segundo ela, “é para Clitemnestra que Gluck dá a poderosa ária de fúria e indignação, enquanto a correspondente ária de Ifigênia é doce, triste e lenta. Após ficarem sabendo do plano de sacrificar Ifigênia, Clitemnestra executa a sua familiar ária de súplica a Aquiles, enquanto Ifigênia apenas pronuncia frases de efeito em um recitativo. Após Ifigênia partir para o sacrifício, Clitemnestra canta a sua visão poética e macabra da terrível morte da filha (…), finalizando com uma prece desesperada, em uma ária, para que Júpiter destrua todos os gregos, uma das peças musicais mais impactantes em toda a ópera”.

No centro da foto, de vestido verde, Clitemnestra (Véronique Gens) observa Ifigênia e Aquiles

A Clitemnestra de Tcherniakov foi a típica esposa e mãe de alta sociedade: uma mulher elegante, vaidosa, com personalidade e que zela pelos filhos. Desse modo, a exemplo de Racine e Gluck, Tcherniakov fez de Clitemnestra uma mulher que reconhecemos facilmente em nossa sociedade e com a qual estamos familiarizados.

Felizmente o Festival d’Aix soube escalar uma Clitemnestra que fez jus à música de Gluck e que soube construir a personagem criada por Tcherniakov: a mezzosoprano Véronique Gens. Grande artista, com exuberante presença cênica, Gens já se impôs tão logo apareceu em cena. Um dos momentos mais marcantes dessas duas Iphigénies foi, sem dúvida, a ária de súplica a Aquiles, Par un père cruel à la mort condomnée, com oboé obbligato. Foi um daqueles momentos de pura beleza. Quando repetiu a primeira parte da ária, Gens o fez com um belo piano que bem poderia ter sido acompanhado pelo oboé! Na impactante Jupiter, lance la foudre!, a mezzosoprano demonstrou quão sólida é a sua técnica ao cantar com voz segura e homogênea, apesar da agilidade e das passagens de registro exigidas pela ária, sem renegar, em um só instante, a atuação cênica. Mesmo em Iphigénie en Tauride, quando Clitemnestra já está morta, Gens roubou a cena ao aparecer, ilustrando a lembrança de Orestes, levantar-se e espirrar no rosto o mesmo spray que havia utilizado quando, no início da ópera anterior, chegou a Áulis com Ifigênia.

Tanto Russell Braun (Agamemnon) quanto Nicolas Cavallier (Calcas) projetaram com fartura as suas poderosas vozes de barítono e de baixo-barítono, respectivamente. Embora ambos tenham iniciado a ópera com um vibrato excessivo, suas interpretações foram ganhando consistência. O impactante recitativo acompanhado O dieux! Que vais-je faire? foi um dos grandes momentos de Braun.

Por outro lado, o Aquiles do tenor belcantista Alasdair Kent apresentou um resultado musical mais fraco. Se cenicamente ele foi bastante convincente, o seu canto, carente de legato e com agudos mal resolvidos, deixou a desejar, sobretudo em Cruelle, non, jamais.

Florian Sempey (Orestes) e Stanislas de Barbeyrac (Pílades)

Em Iphigénie en Tauride, o grande destaque ficou com a dupla Orestes e Pílades, os excelentes franceses Florian Sempey e Stanislas de Barbeyrac. Sempey já havia brilhado, no ano passado, como Henri Ashton na versão de concerto de Lucie de Lammermoor; Barbeyrac é um velho conhecido do público brasileiro: em 2014, foi Narraboth na Salome do Theatro Municipal de São Paulo. Além de ótimos atores e ótimos cantores, tecnicamente seguros, ambos possuem vozes poderosas e com um peso apropriado para esse repertório francês, cujo canto respeita a prosódia e fica predominantemente na região central da voz. Alexandre Duhamel também teve uma boa atuação como Toas, apesar da sua voz um pouco mais opaca.

O coro exerce significativo papel nas duas Iphigénies de Gluck. Preparado por Richard Wilberforce, o coro produziu uma bela e homogênea sonoridade, anunciando a chegada de Ifigênia e celebrando o seu casamento, mas também soube ser duro e enfático, ao pedir que os deuses fossem obedecidos e ao condenar o crime de Orestes – este monstro que matou a mãe.

Emmanuelle Haïm liderou Le Concert d’Astrée com sensibilidade, extraindo uma bela sonoridade e privilegiando a transparência da escrita de Gluck – dramática, mas direta. Em alguns momentos, no entanto, essa fluência tão natural beirou a monotonia.

Se você chegou até aqui, que tal apertar o play no vídeo abaixo e assistir a Iphigénie en Aulide e a Iphigénie en Turide? O vídeo ficará disponível até 11/01/2026.


Fotos: Monika Rittershaus / Festival d’Aix-en-Provence.

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