Balé da Cidade de São Paulo apresenta duas coreografias

Se a chegada de um diretor artístico a uma instituição de dança contemporânea com a história do Balé da Cidade causa expectativa sobre os rumos e as pesquisas que poderão ser realizadas, algo se pode dizer sobre a temporada que se inicia no dia 19 de outubro e segue até 27 de outubro: o interesse na pesquisa constante do corpo, bem como a expansão de linguagens, em intersecção com pesquisas de outras áreas e artistas, são experiências pelas quais o premiado coreógrafo e dançarino Alejandro Ahmed tem muito apreço.

O artista, nascido no Uruguai, mas no Brasil desde os três anos de idade, é reconhecido por sua trajetória como coreógrafo residente, diretor artístico e bailarino da companhia Cena 11, em Florianópolis. Ahmed assumiu no mês de agosto deste ano a direção artística do Balé da Cidade de São Paulo e assina agora em outubro a sua primeira temporada dirigindo o corpo artístico do Theatro Municipal de São Paulo, que completou 55 anos em 2023.

Na primeira metade das sete apresentações, Ahmed e o Balé relêem Sixty Eight em Axys Atlas, título que dirigiu como convidado para a companhia em 2022, e, após o intervalo, apresentam a inédita Variação, assinada pelo convidado Davi Pontes, coreógrafo, pesquisador e dançarino que tem seu trabalho exposto na 35ª Bienal de São Paulo. Ambos os trabalhos investigam as potencialidades do corpo humano enquanto aparato de movimento e questionam os simbolismos atribuídos pelo senso comum a seus direcionamentos, colocando em perspectiva e gerando novas construções a partir de seus repertórios e limites.

68: indeterminação precisa, possibilidade pulsante

Quem explica o funcionamento da coreografia inspirada na partitura de John Cage, que é quase um mecanismo de relojoeiro que, curiosamente, gera inúmeros resultados inesperados, é o próprio Alejandro: ” ‘Sixty Eight’ faz parte de uma série de criações e composições de John Cage de 1988 a 1992 chamadas ‘Number Pieces’. As peças são nomeadas pelo número de músicos que as executa, num sistema chamado Time Bracket, no qual ele usa quebras de tempo para que a música seja executada através dessas quebras. A regência, de alguma forma, é feita pela duração e pelo relógio, em tempos específicos, onde ele pensou em criar uma cascata de uníssonos. Cage dá autonomia aos músicos com um tempo específico para começar e outro para terminar a nota, escolhendo em qual tempo ele executa tal nota. Dentro disso, as possibilidades de indeterminação crescem, mas ao mesmo tempo há uma restrição precisa em função desses tempos, que faz com que esse uníssono indeterminado com que ele gostaria que a peça acontecesse se transforme numa possibilidade pulsante”.

Assim, a dança como sintoma de todo movimento vivo germina mudanças e surge como um segredo comutado no tempo. Algoritmo e autonomia bailam sobre a estabilidade da superfície e a autoria se apresenta como causalidade espalhada. Como diz o texto de apresentação do espetáculo do próprio coreógrafo: “Hackear o mundo de samples que insistem em determinar que somos apenas um. Mastigar o zero. Mover duas vértebras para lamber a gravidade. Dançar. Um uníssono indeterminado. Ouvir de novo. ‘Sixty Eight em Axys Atlas’. Corpo é realidade”. Atlas é a primeira vértebra cervical do corpo humano – homônima ao titã da mitologia grega – que, junto de Áxis, permite os movimentos do corpo entre a cabeça e a coluna vertebral.

Se na apresentação de 2022 os instrumentos eram executados pelos músicos da Orquestra Sinfônica Municipal, sob a regência de Alessandro Sangiorgi, desta vez quem fica a cargo da execução da partitura algorítmica de John Cage é o coletivo mineiro O Grivo. Em diálogo com a peça Sixty Eight, de John Cage, composta em 1992 para orquestra, eles recriam, por meios eletrônicos, os processos de indeterminação desta obra do compositor norte-americano, assim como a duração desses mesmos sons e dos silêncios. Alguns softwares em série criam uma espécie de mecanismo vivo (indeterminado e inexato) que oferta chances e possibilidades de quais, como (entre timbres, texturas, intensidades e durações), onde e quando os sons e silêncios aparecerão na obra. Por meio da criação da dupla formada por Marcos Moreira e Nelson Soares, a estrutura formal de Cage e a ideia de que cada execução da peça sejam ao mesmo tempo uma repetição e um acontecimento único se mantêm.

“A minha coreografia também se relaciona com a peça desse jeito: pensei numa obra indeterminada, pensada no tempo do relógio, de zero a 30 minutos, tamanho da peça, e dentro disso uma divisão de 12 plataformas no palco nas quais os bailarinos também se organizam em formulações vindas de um metrônomo de luz, criado pelo artista Diego de Los Campos. Esse metrônomo cria quatro compassos diferentes, e os bailarinos, em grupos de três, posicionados em 12 casas, estabelecem entradas e saídas do espaço cênico. Também foram criados oito naipes de movimentos. A gente se encontra através do pensamento de Cage pela ideia de coreografia imaterial, na qual ela acontece na relação do desejo da plateia de ver e ouvir o que está acontecendo, entre frustrações e completudes”, completa Alejandro.

“É um objeto vivo em que, a cada dia de apresentação, é um momento em que a peça existe para aqueles que estão ali compartilhando. Para mim é também um jeito de pensar artisticamente qual o lugar e relevância do ato de criar dentro da posição política e civilizatória em que estamos agora. Como a gente cria uma peça que reflita a força e a fragilidade do estado vivo e o fato dela ser sustentada e sustentável de forma autônoma individualmente e, ao mesmo tempo, de uma autonomia coletiva onde todos, de alguma forma, fazem parte daquilo que é singular individualmente”, conclui.

Alejandro desenvolveu à frente do grupo Cena 11 uma técnica que nomeou como “percepção física”. Ela se baseia na ideia de produzir uma dança em função do corpo, e não fazer o corpo se modelar a partir da dança. O método foi inspirado por uma anomalia genética com a qual o coreógrafo nasceu: osteogenesis imperfecta, conhecida como “doença dos ossos de vidro”, que faz com que os ossos se quebrem com facilidade. Assim, o coreógrafo criou um jeito de dançar com o qual podia dar tudo de si em cena e, ao mesmo tempo, preservava sua integridade corporal.

Variação: 31 bailarinos em cena e inúmeras releituras

Como diretor artístico da companhia, Alejandro aponta desde a sua chegada uma expansão de horizonte por meio da parceria com o artista, coreógrafo e pesquisador David Pontes, que apresenta Variação. Na obra, o artista, coreógrafo e pesquisador carioca explora as capacidades radicais do ato de fazer uma pose.

Com 31 bailarinos em cena se revezando em uma plataforma, eles executam imagens de seus arquivos pessoais que se repetem e se recombinam, desafiando formas de viajar no tempo e a linearidade. Um jogo que brinca e questiona, aponta e esgarça os limites e perigos de uma história única.

Davi Pontes graduou-se em Artes pela Universidade Federal Fluminense e é Mestre em Artes pela mesma instituição. Foi premiado no ImPulsTanz – Young Choreographers’ Award 2022 e no Artlink Award – 100 artists from around the world, em 2022. Atualmente é um dos artistas da 35ª Bienal de São Paulo, em cartaz no Pavilhão do Parque Ibirapuera até 10 de dezembro.

“O encontro tem sido um desafio, especialmente porque a gente não se conhece e é um grupo grande de bailarinos. Mas eu fiquei muito empolgado, porque trabalhei com muitas pessoas, outros artistas de diferentes linguagens, e voltar a trabalhar com bailarinos para mim é emocionante e ao mesmo tempo desafiador. É trabalhar com o corpo com a sua tecnologia, o seu aparato”, diz Pontes.

E completa: “O público vai ver um pouco da minha pesquisa com imagens. Tentei implicar de uma outra maneira como eu trabalho as imagens, especialmente porque a dança lida com a ideia de arquivo o tempo inteiro, mas eu tentei recuperar alguns arquivos pessoais e tentar encontrar no grupo coisas que faziam sentido em relação a essas imagens. O que a gente tem feito é coreografá-las a partir das relações dos bailarinos com o próprio arquivo”.

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SERVIÇO

Balé da Cidade de São Paulo
Alejandro Ahmed, direção artística

Sixty Eight em Axys Atlas

Alejandro Ahmed, concepção e coreografia
O Grivo, em diálogo com a peça Sixty Eight, de John Cage, composta em 1992 para orquestra
Aline Blasius, assistência para Design de Movimento, criação e ensaio
Karin Serafin, figurino e Objetos
Juliana Laurindo, assistência de figurino e objetos
Alejandro Ahmed e Jonas Soares, cenário
Mirella Brandi, desenho de Luz
Diego de Los Campos, metrônomo de Luz – “Tempo-Silêncio”

Elenco: Ana Beatriz Nunes, Antonio Carvalho Jr., Ariany Dâmaso, Bruno Rodrigues, Camila Ribeiro, Carolina Martinelli, Fabiana Ikehara, Fernanda Bueno, Isabela Maylart, Jéssica Fadul, Leonardo Muniz, Luiz Crepaldi, Manuel Gomes, Marcel Anselmé, Marcio Filho, Marina Giunti, Marisa Bucoff, Victoria Oggiam e Yasser Díaz

INTERVALO

VARIAÇÃO

Davi Pontes, concepção e coreografia
Iara Izidoro, assistência de direção
Podeserdesligado, trilha sonora e assistência na Trilha
Julliana Araújo , designer de moda
Alanis Machado, assistente de moda
Josy Anne, vocal
Plim, bateria
Igor Souza, gravação de voz

Elenco: Alyne Mach, Ana Beatriz Nunes, Ariany Dâmaso, Bruno Gregório, Bruno Rodrigues, Camila Ribeiro, Carolina Martinelli, Cleber Fantinatti, Erika Ishimaru, Fabiana Ikehara, Fabio Pinheiro, Fernanda Bueno, Grécia Catarina, Harrison Gavlar, Isabela Maylart, Jéssica Fadul, , Leonardo Hoehne Polato, Leonardo Muniz, Leonardo Silveira, Luiz Crepaldi, Luiz Oliveira, Manuel Gomes, Marcel Anselmé, Marcio Filho, Marina Giunti, Marisa Bucoff, Rebeca Ferreira, Renata Bardazzi, Victor Hugo Vila Nova, Victoria Oggiam e Yasser Díaz

Ingressos: de R$ 12 a R$ 84 (inteira)
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 18 anos
Duração total: Aproximadamente 80 minutos (com intervalo)

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Foto: Rafael Salvador.

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