Nova produção da obra-prima de Bizet, apresentada em sua versão com recitativos, reflete os problemas de gestão da casa.
Carmen (1875)
Ópera em quatro atos
Música: Georges Bizet (1838-1875)
Libreto: Henri Meilhac (1830-1897) e Ludovic Halévy (1834-1908)
Base do libreto: Carmen, novela de Prosper Mérimée (1803-1870)
Theatro Municipal do Rio de Janeiro
21 de julho de 2023
Direção musical: Felipe Prazeres
Direção cênica: Julianna Santos
Elenco:
Carmen: Luisa Francesconi, mezzosoprano
Don José: Ivan Jorgensen, tenor
Micaëla: Flavia Fernandes, soprano
Escamillo: Leonardo Neiva, barítono
Frasquita: Michele Menezes, soprano
Mercédès: Fernanda Schleder, mezzosoprano
Remendado: Geilson Santos, tenor
Dancaïre: Ciro d’Araújo, barítono
Zuniga: Leonardo Thieze, baixo
Moralès: Calebe Faria, barítono
Orquestra Sinfônica, Coro e Ballet do Theatro Municipal
É inevitável: ao se dirigir ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro para assistir a uma ópera encenada, o frequentador assíduo da casa que possui padrões mínimos de exigência, ao se lembrar das últimas experiências semelhantes naquele palco, acaba não nutrindo muitas expectativas sobre o que está por vir, mas sempre deixa aberta uma porta para ser surpreendido. Vai que…
Infelizmente, não há surpresa alguma, e a presente produção de Carmen, obra-prima de Georges Bizet, é um espetáculo que apresenta apenas alguns poucos momentos de arte elevada, com a maior parte da encenação evoluindo em um “banho-maria” pouco atraente aos olhos e aos ouvidos. Antes de abordar a produção propriamente dita, é necessário refletir um pouco sobre a situação administrativa do TMRJ, porque é ela, essa situação administrativa, a causa da qualidade final de qualquer espetáculo lírico encenado na casa.
Ciclo vicioso
Desde que João Guilherme Ripper deixou a presidência do Theatro Municipal do Rio, no comecinho de 2017, tudo degringolou ali pelas bandas da Cinelândia. É verdade, já faz mais de uma década que o TMRJ sofre com o descaso do seu mantenedor, o governo do estado do Rio de Janeiro, mas tudo piorou consideravelmente a partir de 2017. Nesse tempo, passaram pela alta cúpula do governo estadual políticos os mais medíocres possíveis. Para os políticos cariocas e fluminenses, demagogos da pior espécie, o Municipal é mais um estorvo que qualquer outra coisa, pois as artes cultivadas na casa não são capazes de lhes dar uma quantidade relevante de votos (que é a única coisa que realmente lhes interessa).
O governo estadual do Rio encontra-se falido já há muitos anos; a situação econômica geral do estado como um todo é difícil; quem afirma que “o Rio acabou” não está muito longe da verdade, ainda que o saudosismo dos bons tempos impeça que alguns enxerguem essa dura realidade; aquele que já foi um dos principais aeroportos do país (o Galeão/Tom Jobim) há anos é subutilizado e tenta agora um processo de soerguimento, mas por vias artificiais; e não há qualquer perspectiva séria de evolução no quadro socioeconômico no curto prazo.
Assim, ao longo desse tempo, com as contas estaduais cada vez mais em condições periclitantes, o aporte financeiro para a programação do TMRJ caiu drasticamente (aqui considerada também a inflação), e não se sabe muito bem para que serve o patrocínio que a casa recebe da Petrobras, uma vez que essa verba é um tanto intangível em sua programação pouco atraente.
Mesmo com toda essa situação adversa, o TMRJ precisa ser administrado, e o que não falta é gente interessada em ocupar os seus cargos, seja por que motivo for. Um agravante é que, via de regra, quem assume os altos cargos na direção da casa não faz qualquer exigência para assumi-los. Simplesmente aceitam e pronto! Trabalham com o que têm para o momento, e o que têm para o momento é sempre insuficiente. Somente depois é que vão ver o que fazer. Um trabalho bem feito? Uma temporada com uma quantidade minimamente aceitável de óperas e balés encenados? Óperas encenadas com cenários decentes – e não com empulhação de quinta categoria? Ora, na mente dessa gente isso são detalhes que podem ficar para depois – e esse “depois”, claro, nunca chega.
Aí, quando alguém (um crítico, talvez…) resolve cobrar esse tipo de coisa de forma mais contundente, cria-se uma comoção em certos nichos como se as pessoas que aceitam esses cargos fossem “coitadinhos”. Não são. Nunca são. Quem considera dirigir a casa, seja administrativa ou artisticamente, tem que pensar em muita coisa antes de dizer “sim”. Depois que os cargos são aceitos, sem qualquer garantia de condições mínimas para se executar um bom trabalho, não há muito o que fazer, não adianta esperar que alguma coisa realmente digna venha da parte dos políticos incompetentes que infestam há anos e anos o governo do estado.
E, para piorar, ao gerir o Municipal do jeito que este é gerido, o recado que se passa aos políticos é: “as condições que vocês estão nos dando são aceitáveis, porque estamos conseguindo administrar a casa, temos programação” – mesmo que essa programação conte com somente uma ou duas óperas encenadas por ano, sempre com cenários do tipo “engana-trouxas”. Aparentemente, a alta direção do Municipal deve considerar isso normalíssimo, porque ninguém entrega o cargo, ninguém vai embora soltando marimbondos sobre o desgovernador de ocasião. Todos aceitam “de boa”, quietinhos, mansinhos, essa condição quase impossível de trabalho. E assim segue a vida, sem melhorias, sem perspectivas.
Amanhã ou depois, a direção atual será trocada, como sempre ocorre, e os novos gestores, quem quer que estes sejam, muito provavelmente também aceitarão os seus cargos sem exigir nada previamente, reiniciando esse interminável ciclo vicioso.
Produção reflete os problemas de gestão
Por isso, exatamente por tudo isso que apontei acima, não há como o Theatro Municipal do Rio de Janeiro oferecer no momento uma grande produção de ópera encenada. Sempre haverá problemas, senões, falta disso ou daquilo, escalações questionáveis de elenco, etc. – como, aliás, já vem ocorrendo pelo menos desde 2017.
A encenação de Julianna Santos para Carmen reflete esses problemas de gestão (sobretudo os financeiros), e, também por isso, é bastante irregular. Na concepção geral do espetáculo, há uma clara discrepância entre os figurinos tradicionais de Marcelo Marques e o cenário paupérrimo de Natália Lana (vide foto acima) – tudo sob a iluminação pouco inspirada de Paulo Ornellas. Os figurinos, em geral, funcionam bem, ainda que o vestido da protagonista no último ato (em amarelo e dourado, com detalhes em preto) pareça ter saído de outra ópera. O desenho de luz pouco contribui nos dois primeiros atos, e melhora um pouco a partir do ato seguinte.
Já o cenário somente se salva no terceiro ato, quando se alcança minimamente a sugestão de um ambiente de montanha. De resto, a cenografia é praticamente única durante os demais atos, formada por um fundo que sempre se repete, enquanto alguns poucos elementos de cena tentam caracterizar cada ambiente. Se resta alguma dúvida sobre o cenário, basta observar como o palco fica vazio no quarto ato, a partir do dueto final entre Carmen e Don José: não há praticamente nada ali – e quem quer que chame “isso” de cenário só pode estar debochando do público. As laterais do palco do Municipal estão à vista durante toda a ópera, com os seus indefectíveis panos pretos, como já aconteceu em incontáveis produções da casa. Até quando? Na próxima também será assim? Sou capaz de apostar que sim.
Também o trabalho de direção de atores da encenadora não está entre as suas melhores construções. Algumas das cenas com muita gente no palco restam pouco movimentadas – o que se torna ainda mais grave com a ausência de cenário, pois, com o palco quase todo livre de elementos de cena, não se justifica a presença de coristas parados. E mesmo na construção dos personagens principais, há problemas: se Carmen e Escamillo se apresentam mais bem resolvidos, a caracterização de Don José é muito pouco convincente.
Versão com recitativos
O Theatro Municipal do Rio de Janeiro optou por apresentar desta vez a versão de Carmen com recitativos, em vez da versão original da ópera, que tem diálogos falados entre os números musicais. Particularmente, prefiro a versão original, pois os recitativos escritos por Ernest Guiraud após a morte de Bizet contam com música de qualidade duvidosa.
A utilização do balé no quarto ato, também inexistente no original, mas que remonta a versões passadas, e com utilização de música do próprio Bizet, se não chega a incomodar, por outro lado nada acrescenta ao desenvolvimento do drama. Na récita de 21 de julho, o Ballet do Theatro Municipal, reforçado por bailarinos convidados, apresentou em bom nível as coreografias de Hélio Bejani e Jorge Teixeira. Também funcionaram a contento as coreografias do segundo ato, de Bruno Fernandes e Mateus Dutra.
O Coro do Theatro Municipal, preparado por Priscila Bomfim, apresentou-se vocalmente bem, apesar da falta de movimentação em algumas passagens, conforme relatado acima. Já o Coro Infantil da UFRJ, preparado por Maria José Chevitarese, exibiu ótima forma vocal, e foi um prazer ouvi-lo. Por sua vez, a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, em que pese a sua falta de refinamento na maior parte da noite e alguma oscilação na afinação dos metais, apresentou-se razoavelmente sob a regência de Felipe Prazeres, que soube cuidar do volume do conjunto.
O baixo Leonardo Thieze interpretou a parte do oficial Zuniga com boa presença, mas com uma voz sem brilho. O barítono Calebe Faria soube aproveitar mais a pequena parte de Moralès, com uma voz ainda um tanto verde, mas bem colocada.
Como os contrabandistas, o também barítono Ciro d’Araújo foi um Dancaïre razoável, apesar da sua voz pouco expressiva, enquanto o tenor Geilson Santos apresentou-se muito bem como Remendado, com sua ótima presença e a sua voz sempre segura.
Interpretando as amigas de Carmen, a mezzosoprano Fernanda Schleder deu vida a uma Mercédès vocalmente opaca, com problemas de afinação, ao passo que a soprano Michele Menezes emprestou a sua voz sempre clara, afinada e bem projetada à cigana Frasquita.
A também soprano Flávia Fernandes foi uma decepção como Micaëla, exibindo uma voz de pouco brilho e com problemas de afinação. Sua ária do terceiro ato, Je dis que rien ne m’épouvante, ficou bem aquém de uma performance aceitável.
O tenor Ivan Jorgensen, escalado originalmente no elenco alternativo e que substituiu Eric Herrero (indisposto) como Don José, ofereceu uma récita honesta dentro das suas possibilidades, considerando as suas limitações vocais e expressivas. Sua ária do segundo ato, La fleur que tu m’avais jetée, clara e justificadamente não chegou a encantar o público.
O barítono Leonardo Neiva, que há poucos dias anunciou a sua contratação para o elenco de solistas da Ópera de Viena, interpretou com segurança o toureiro Escamillo, com boa presença e uma voz bem colocada, que teve mais facilidade nos médios e nos agudos que nos graves. O artista passou bem pela célebre canção do toureador, Votre toast.
Interpretando a personagem-título, a mezzosoprano Luisa Francesconi encarnou uma Carmen bastante convincente. Suas qualidades de atriz são inquestionáveis e ela deu vida à cigana com a presença marcante de sempre. Foi impossível não comparar a sua performance vocal atual com aquela da última vez em que a vi na pele da mesma personagem (isso já há alguns anos), e as condições atuais da sua voz, neste momento em que ela completa 25 anos de uma belíssima carreira, estão muito mais próximas de uma Carmen ideal.
No primeiro ato, especialmente, sua performance vocal foi impecável, e tanto a célebre habanera (L’amour est un oiseau rebelle) quanto a seguidilha (Près des remparts de Séville) receberam interpretações requintadas, com musicalidade à flor da pele. No restante da récita, a Francesconi concentrou atenções e fez o que estava ao seu alcance para tirar do chão um espetáculo que teimava em não decolar.
O saldo final da apresentação do dia 21 de julho foi morno, bem morno. O público (este autor incluso), claro, aplaudiu bastante, em reconhecimento ao esforço dos artistas envolvidos. Esforço e boa vontade, infelizmente, não resolvem os macroproblemas do TMRJ.
Questões éticas
É eticamente aceitável que o diretor artístico do Theatro Municipal, Eric Herrero, escale a sua esposa, Flávia Fernandes, e também se autoescale para uma produção de ópera na casa? A meu ver, a resposta não é simples, e deve considerar, no mínimo, quatro fatores:
I) o histórico dos artistas na casa: ambos possuem histórico favorável;
II) a qualidade e/ou adequação artística (que pode variar ao longo do tempo): Herrero claramente possui, mas Fernandes não passa por um bom momento vocal, conforme relatado acima nesta resenha;
III) a ausência de remuneração adicional (devido a conflito de interesses): segundo informações que pude apurar, como diretor artístico do TMRJ, Eric Herrero não pode receber remuneração adicional por sua participação como solista em qualquer atividade artística da casa, enquanto Flávia Fernandes, como integrante do Coro do TMRJ, tem direito a uma gratificação pela sua atuação como solista, que varia de acordo com a quantidade de récitas, como ocorre com qualquer outro integrante do Coro (neste caso, seria necessário verificar se, legalmente, a soprano poderia abrir mão da referida gratificação);
IV) proporcionalidade razoável: critério segundo o qual deve-se apurar o percentual de participação do solista em questão na temporada de óperas encenadas da casa – o que é impossível no momento, porque o próprio Eric Herrero não anunciou até agora a programação total do Municipal para 2023.
Conclusão: no entendimento exclusivo deste autor (que não tem qualquer valor legal, trata-se apenas de uma opinião), Eric Herrero atende os três primeiros fatores para se autoescalar em uma produção de ópera do TMRJ, mas não atende o quarto fator, porque é impossível apurá-lo. No caso de Flávia Fernandes, além do mesmo problema referente ao quarto fator, o segundo fator já seria determinante para a sua não escalação, da mesma forma que seria necessário verificar a possibilidade legal de ela recusar a gratificação citada no terceiro fator.
PS 1: essa é uma questão delicada, que sempre acaba entrando em uma zona cinzenta, na qual o que é ético para uma pessoa, pode não ser para outra. E em um país como o Brasil, muitas vezes, a ética pode ter um conceito bem largo. Na dúvida, é sempre melhor evitar tais situações.
PS 2: já que a crítica de ópera resolveu tocar nesse assunto (e aqui este autor não fala de si próprio), quando vamos começar a falar também sobre o motivo de uma certa cantora, que não tem a menor condição vocal de cantar profissionalmente, ser escalada ano sim e outro também em uma certa cidade do norte do país? Curiosamente, ela costuma cantar somente por lá.
PS 3: essa é uma questão já superada, mas, como perguntar não ofende, por que, em 2019, quando o encenador André Heller-Lopes era diretor artístico do mesmo TMRJ e dirigiu três de quatro óperas encenadas ou semiencenadas na casa (portanto, com a proporcionalidade nada razoável de 75%), parcela significativa da crítica brasileira de ópera achou melhor fingir que não percebeu?
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Fotos: Daniel Ebendinger (na foto principal, em destaque, Luisa Francesconi).
Leonardo Marques nasceu em 1979, é formado em Letras (Português/Italiano e respectivas literaturas) e pós-graduado em Língua Italiana. Participou de cursos particulares sobre ópera e foi colaborador do site Movimento.com entre 2004 e 2021.