“Così Fan Tutte” estreia bem no Municipal de São Paulo

Soprano argentina se destaca em encenação eficiente da ópera de Mozart.

Così Fan Tutte (Assim Fazem Todas), 1790
Ópera em dois atos

Música: Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791)
Libreto: Lorenzo da Ponte (1749-1838)

Theatro Municipal de São Paulo

24 de março de 2023

Direção musical: Roberto Minczuk
Direção cênica: Julianna Santos

Elenco:
Fiordiligi: Laura Pisani, soprano
Dorabella: Josy Santos, mezzosoprano
Ferrando: Anibal Mancini, tenor
Guglielmo: Michel de Souza, barítono
Don Alfonso: Saulo Javan, baixo
Despina: Chiara Santoro, soprano

Orquestra Sinfônica Municipal
Coro Lírico Municipal

Così Fan Tutte, ossia La Scuola degli Amanti (Assim Fazem Todas, ou A Escola dos Amantes), terceiro fruto da parceria entre o compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart e o libretista italiano Lorenzo da Ponte, não é das óperas mais fáceis de se encenar. Dependendo das opções do encenador e/ou do elenco escalado, a obra pode se tornar cansativa ou até mesmo enfadonha. Não foi o que ocorreu no Theatro Municipal de São Paulo durante a abertura da sua temporada lírica de 2023.

A trama é simples. Provocados pelo filósofo Don Alfonso, para quem todas as mulheres são infiéis, os soldados Ferrando e Guglielmo resolvem testar a fidelidade das suas noivas, respectivamente as irmãs Dorabella e Fiordiligi. Sob a mentoria intelectual de Alfonso – que conta com o auxílio da espevitada Despina, empregada das irmãs –, os dois amantes se disfarçam de albaneses e tentam seduzir cada um a noiva do outro. No fim, a teoria de Alfonso é comprovada: “così fan tutte”, ou seja, todas as mulheres agem da mesma forma e, tendo a oportunidade, são infiéis. Apesar disso, tudo acaba bem, com os dois homens aceitando as suas noivas como elas são.

Sob os olhos de 2023, o “primeiro plano”, por assim dizer, desse enredo exala machismo, ao explorar a capacidade das mulheres de se manterem ou não fiéis. O libreto, porém, é mais profundo que isso, e busca investigar a natureza das relações humanas. Despina, por exemplo, tem sobre os homens a mesma opinião de Alfonso sobre as mulheres. Em sua ária do primeiro ato, ela afirma que os homens são falsos e inconstantes, e que não se deve esperar fidelidade deles. Diz ainda que eles amam nas mulheres apenas o seu próprio prazer, para depois desprezá-las. E, por fim, prega: “Paguemos, oh mulheres, na mesma moeda”. Mais feminista que isso em 1790, impossível.

Encenação eficiente

Anibal Mancini, Saulo Javan e Michel de Souza

Em sua encenação, na qual busca enxergar essa trama criada há mais de dois séculos por meio de um olhar atual, a diretora Julianna Santos procura ressaltar mais as semelhanças que as diferenças entre homens e mulheres. Logo na primeira cena em que as irmãs aparecem, por exemplo, a diretora sugere que uma está pensando no noivo da outra. Se há algo de errado nisso, o erro pode estar, quem sabe, na cabeça de quem observa (ou “julga”). Afinal, se fosse o contrário, ou seja, se eles estivessem pensando nas noivas um do outro, tudo certamente seria mais naturalizado na mente do observador (ou “julgador”).

Ao longo da encenação, Julianna Santos procura destacar e valorizar o desejo feminino. Isso fica muito claro na maneira como Despina se relaciona com os figurantes, ou na forma como, depois de passar boa parte da ópera usando um corset, Dorabella aparece em cena sem a peça logo depois de se deixar seduzir pelo disfarçado Guglielmo, em um ato que claramente representa uma espécie de liberação das amarras sociais.

Descontada certa inverossimilhança comum neste tipo de obra (a não identificação dos noivos disfarçados sempre pode parecer um tanto absurda), a direção de atores funciona muito bem, inclusive com o coro bem dirigido – tudo contribuindo para um espetáculo fluente e bem movimentado na medida do possível.

Na medida possível, porque o cenário único de André Cortez é um ponto frágil da montagem. Ainda que funcional e fechando razoavelmente bem o palco, esse cenário acaba se tornando visualmente cansativo ao longo de cerca de três horas. A falta de contraste entre ambientes interiores e exteriores, conforme previsto no libreto, também merece apontamento. A luz de Wagner Antônio faz o que pode com as limitações cenográficas.

Assim como o cenário, os figurinos de Olintho Malaquias se dividem entre tons de rosa e verde para os dois pares de noivos: Ferrando traja verde e é noivo de Dorabella, que está de rosa; Guglielmo está de rosa e é noivo de Fiordiligi, que traja verde. Durante a farsa proposta por Alfonso, os novos pares se formam com integrantes vestidos com a mesma cor: rosa com rosa; verde com verde. A encenação, portanto, defende que os semelhantes podem se atrair, da mesma forma que os opostos se atraem – e sim, isso também pode ter conotação sexual, como sugere o beijo entre dois figurantes homens ao cair da cortina.

Don Alfonso e Despina, por sua vez, vestem cores sóbrias, sugerindo o caráter mais racional e prático desses personagens. Quanto aos disfarces, os figurinos mais eficientes são aqueles de Despina (médico e notário), enquanto os de Ferrando e Guglielmo como albaneses não disfarçariam ninguém.

Uma Fiordiligi de alto nível e um achado brasileiro

Laura Pisani, Josy Santos e Chiara Santoro

Musicalmente, a ópera também foi bem defendida na récita de estreia, em 24 de março, ainda que tenha tido os seus senões. O Coro Lírico Municipal, preparado por Mário Zaccaro, apresentou-se bem nas suas curtas intervenções.

A Orquestra Sinfônica Municipal começou a noite com alguma falta de clareza nas cordas durante a abertura da ópera, mas, sob a regência de Roberto Minczuk, não demorou para se ajustar e se apresentou bem durante praticamente toda a récita, com destaque para o belo som das madeiras.

O regente voltou a fazer um bom trabalho à frente de uma ópera, repetindo o bom resultado de O Amor das Três Laranjas no ano passado. Desta vez, inclusive, Minczuk se preocupou em vários momentos em não encobrir os cantores, controlando bem o volume da orquestra. Poderia ter evitado, porém, o desnecessário expediente de fazer subir o elevador do fosso durante a abertura da ópera. Em uma produção em que poderia ter “aparecido” apenas pela boa qualidade do seu trabalho, o regente perdeu a oportunidade, fazendo questão de “aparecer” também por motivos outros.

Despina encontrou na soprano Chiara Santoro uma intérprete com grande desenvoltura cênica, mas que enfrentou oscilações na afinação, muito provavelmente por falta de um appoggio consistente. Já o baixo Saulo Javan compôs um Don Alfonso cenicamente cerebral, com destaque para a região mais grave da tessitura do personagem, onde se sobressaíram o seu canto e a qualidade da sua dicção.

Como os dois noivos que testam a fidelidade das suas amadas, o barítono Michel de Souza e o tenor Anibal Mancini se apresentaram bem. O primeiro exibiu uma voz potente, mas faltou realçar algumas nuances da parte de Guglielmo, como na ária Donne mie, la fate a tanti. O segundo é dono de uma voz privilegiada de tenor lírico-ligeiro, como demonstrou na ária de Ferrando no primeiro ato, Un aura amorosa.

A mezzosoprano baiana Josy Santos, que desenvolve a sua carreira na Europa, mas ainda é pouco conhecida por aqui, revelou-se um achado. Dona de uma bela voz e de ótima presença cênica, interpretou Dorabella com graça e jovialidade. Demonstrou bom domínio técnico e cantou muito bem durante toda a récita, desde o dueto Ah guarda sorella, até a cena derradeira.

Fechando o elenco, a excelente soprano argentina Laura Pisani, cujo trabalho eu conheci quando ela cantou em 2018 na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, a ópera Piedade, de João Guilherme Ripper. Com a sua técnica impecável, a soprano passeou com elegância e refinamento pelas árias da personagem (Come scoglio immoto resta, do primeiro ato, e Per pietà, ben mio, perdona, do segundo ato), assim como pelos vários números de conjunto dos quais participou.

Artista de amplos recursos, que sabe ser precisa sem abrir mão da expressividade, com graves sonoros e agudos bem controlados, Pisani fez da sua Fiordiligi de alto nível a maior glória desta produção mozartiana.

Assim, mesmo depois de grande confusão administrativa (com a possibilidade da realização de audições e de demissões envolvendo o Coro Lírico Municipal; com cobranças da organização social Sustenidos para que a Fundação Theatro Municipal e a secretaria municipal de Cultura reajustem os repasses orçamentários do TMSP; e com a orientação do Tribunal de Contas do Município de São Paulo para que se proceda um novo chamamento público para a escolha do gestor da instituição), resta concluir que começou bem a temporada lírica de 2023 no Theatro Municipal de São Paulo.

E fica a dica: em breve, Fabiana Crepaldi publicará outra resenha, em que abordará também o elenco alternativo da presente montagem de Così Fan Tutte, cuja primeira apresentação ocorreu no dia 25 de março.

Fotos: retiradas de um vídeo de Stig de Lavor.

Nota do Editor: fotos atualizadas em 27/03, às 19:33h, com “frames” de um vídeo disponibilizado pelo TMSP à imprensa.

Um comentário

  1. […] E as polêmicas não abandonaram a casa tão cedo. No fim de fevereiro, em uma pedra que já vinha sendo cantada há algum tempo, o maestro Jamil Maluf anunciou nas redes sociais que o seu contrato de regente da Orquestra Experimental de Repertório não seria prorrogado, e afirmou que não lhe foi dada qualquer explicação a respeito da decisão. Em março, o ano lírico começou com uma montagem de Così Fan Tutte, de Mozart, que dividiu a crítica (leia aqui e aqui). […]

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