Da ascensão ao declínio: “Dido e Eneas” no Theatro São Pedro

Danielle Crepaldi Carvalho e Fabiana Crepaldi.

Dido and Aeneas (1689)
Música: Henry Purcell
Libreto: Nahum Tate
Ópera com um prólogo e três atos.
Theatro São Pedro, 10 de março de 2023
Direção musical: Luís Otávio Santos
Direção cênica: William Pereira
Dido: María Cristina Kiehr, soprano
Belinda: Marília Vargas, soprano
Eneas: Johnny França, barítono
Feiticeira: Homero Velho, barítono
Primeira bruxa: Daiane Scales, soprano
Segunda bruxa/ segunda mulher: Ludmilla Thompson, soprano
Marinheiro/spirit: Jabez Lima, tenor
Orquestra do Theatro São Pedro

Ascensão

Por Danielle Crepaldi Carvalho

Henry Purcell surgiu num flash no paulistano Theatro São Pedro ao longo da semana passada. Uma semana é tempo demasiado curto para a exibição da única ópera do compositor inglês – uma das obras-primas do estilo barroco, o amor maior desta que vos escreve.

A historiografia da área situa a produção de Dido e Eneas em fins do século XVII, mais especificamente entre 1684 e 1689. Escrita em colaboração com o libretista Nahum Tate, o qual se baseia em sua peça teatral Brutus of Alba, or The Enchanted Lovers (datada de alguns anos antes), Dido e Eneas é provavelmente encenada pela primeira vez ou na corte inglesa, ou numa escola para meninas fidalgas daquele país. Os eruditos inclinam-se a essa segunda hipótese, corroborada por Ligiana Costa (autora do ótimo ensaio que integra o programa de sala do espetáculo disponível no site do teatro), considerando-se a realidade “essencialmente feminina” encenada na obra; a exclusão, do libreto, de cenas que demandariam um elenco profissional; e a presença exígua, nele, de personagens masculinos.

A ausência de certezas no que diz respeito a essa ópera não é incomum à produção barroca, já que, ainda segundo Ligiana Costa, porção substancial das partituras deste período se perderam, restando felizmente os libretos, graças à sua impressão e comercialização (costume de muitos séculos que, lamentavelmente, vem sendo deixado de lado, dado que libretos impressos são invariavelmente substituídos, hoje em dia, pelos digitais, que sabe-se lá por quanto tempo ainda estarão disponíveis em repositórios virtuais). Por esse motivo, não resta partitura saída das mãos de Purcell – a mais antiga partitura de que se tem notícia de Dido e Eneas foi produzida, segundo consta, décadas depois da encenação primeva da ópera.

A obra de Purcell aborda um episódio capital da Eneida, epopeia de Virgílio datada do século I a.C. Após a destruição de Troia, cuja guerra é narrada na epopeia grega de Homero (século VIII a.C.), Eneias consegue fugir para fundar uma nova civilização. Antes, no entanto, de chegar àquilo que se tornaria a Itália, ele aporta em Cartago. Por obra de Vênus (a deusa do amor) e de um dos seus arqueiros cegos, Eneas e Dido (a rainha de Cartago) são flechados. Eneas, no entanto, não finca chão em Cartago: acaba por abandonar Dido, que morre. A cena do apaixonamento é relatada de forma colorida no prólogo da ópera de Purcell, no qual Febo, o deus da música e da poesia, também conhecido como o deus-sol – tanto que cabe a ele cavalgar a carruagem solar –, é responsável por iluminar aquelas personagens às quais caberiam o amor e a ruína, colocando-as diante do público.

À esquerda, Maria Cristina Kiehr (Dido).

A descrição musical da chegada de Eneas a Cartago e do apaixonamento entre ele e Dido torna-se cena muda na montagem paulistana da ópera: no palco escuro e nu em cujas extremidades encontram-se Dido e a dançarina que, ao longo do espetáculo, encena o seu duplo, uma flecha de néon atinge a intérprete da rainha.

A substituição proposta dialoga com encenações do repertório barroco. As dificuldades para se acessar os materiais concernentes à encenação primeira das obras daquele período abrem espaço, nos dias de hoje, à desconstrução, à reconstrução, à (re)invenção. Dez anos atrás, o parisiense Théâtrè des Bouffes du Nord encenou uma obra-prima de espetáculo, Le Crocodile trompeur/Didon et Énée, baseado na ópera de Purcell e noutros materiais – espetáculo disruptivo e passional, totalmente em consonância com essa história de amor desatinada, já que nascida por obra de um acólito cego da deusa do amor. Na montagem paulistana, os intérpretes de Dido e Eneas são pautados pela contenção (eu diria que por um quase que distanciamento), cabendo a paixão ao brilhante duo de bailarinos coreografado por Luiz Fernando Bongiovanni, os quais representaram os duplos do casal.

A segura direção cênica de William Pereira, em consonância com o talento da cenógrafa Giorgia Massetani, inventam uma Cartago que oscila entre o realismo dos panoramas em moda no Brasil ao longo do século XIX (época em que o estilo barroco é redescoberto) e a arte contemporânea. Ligiana Costa situa a artista plástica Regina Silveira como influência importante da montagem. Efetivamente, os painéis de tecido representando secções de edifícios de influências greco-romanas, que são retirados à força, pelo corpo de baile, das molduras que os enquadram, quando Eneas abandona Dido e Cartago está prestes a ser destruída, remetem à desconstrução da tradição levada a efeito por Silveira (vide uma de suas mais recentes obras, Cascata, que em 2020 reproduziu, nas paredes do paulistano Paço das Artes, dezenas de cópias das janelas daquele edifício, desmontando-as e as distorcendo, de modo a colocar em debate o papel que desempenham na sociedade as janelas reais ou virtuais).

Marília Vargas, Johnny França e María Cristina Kiehr

O flerte entre a recuperação realista da tradição e a desconstrução que é a tônica da contemporaneidade ocorre, na encenação paulistana de Dido e Eneas, também no âmbito dos figurinos de Olintho Malaquias, que faz convergir túnicas de influências greco-romanas, as quais calcam a ópera nos arredores do momento histórico em que escreveu Virgílio, com estampas camufladas associadas contemporaneamente ao exército. As moças em flor do séquito de Dido (membros do belíssimo coro que foi um dos principais êxitos desta montagem, dirigido com qualidade por Marília Vargas, a quem também cabe na encenação o papel de Belinda, irmã de Dido) trajam fluidas túnicas brancas. Enquanto isso, Eneas e seu exército usam vestes militares. Encenam-se igualmente aqui, como se antevê, os papéis sociais desempenhados historicamente por homens e mulheres. Entre uns e outros estão a Bruxa e o seu séquito (cujas fantasmagorias determinarão o descaminho de Eneas, a morte de Dido e a destruição de Cartago), que vestem negro e são contornados por uma iluminação calcada nas sombras.

Figurino, cenografia e encenação remetem à tradição barroca, feita da ambivalência de luzes e sombras. Isto se dá igualmente no que concerne à prodigiosa iluminação de Caetano Vilela, que, se tinge de rubro a bruxa e a sua coorte, torna Dido etérea ao coá-la por uma luz translúcida, dando transcendência à sua morte.

Por meio da regência do admirável Luís Otávio Santos (que também se divide entre a execução do cravo e do violino), um dos mais importantes artistas voltados à interpretação historicamente informada do estilo barroco no Brasil, o Theatro São Pedro faz emergir os resultados das pesquisas dessa tradição levadas à cabo nas últimas décadas, sem abrir mão da reinvenção.

Declínio

Por Fabiana Crepaldi

O leitor que me acompanha sabe o deleite que me proporcionam os bons espetáculos apresentados pelo Theatro São Pedro. É lá que tenho visto espetáculos de alto nível. Foi lá que, no final do ano passado, vi aquela que, para mim, foi uma das melhores, se não a melhor ópera apresentada em São Paulo nos últimos cinco anos: Ariadne auf Naxos. Como foi prazeroso escrever sobre Ariadne! Como está sendo difícil escrever sobre Dido.

Conforme já foi pontuado com erudição, acima, por Danielle Carvalho, o São Pedro apresentou uma obra que é um marco na história da ópera e que não passava pela cidade havia alguns anos. Para tal, o teatro contou com uma boa equipe cênica que realizou um belo trabalho. Contou, também, com um bom maestro, que soube extrair boa sonoridade da orquestra e do coro. Estamos esquecendo de algo importante? Claro! Cantores! Eles representam, geralmente, a última escolha dos nossos teatros, após a definição de títulos e datas. Com esse “lembrete”, não quero transmitir aquela imagem conservadora de que o canto é tudo o que importa, mesmo que seja frio, parado. Ao contrário: vejo a ópera como uma forma de arte completa e não consigo imaginar a dramaticidade, na ópera, descolada do canto. Um cantor que está deslocado musicalmente em seu papel dificilmente transmitirá algo verdadeiro do ponto de vista dramático-teatral.

Vamos aos cantores.

Como comprimários, foram escalados jovens profissionais. Saíram-se muito bem Daiane Scales, Ludmila Thompson e Jabez Lima. Eles transmitiram o frescor esperado de uma ópera apropriada para jovens estudantes.

Como observado acima, o manuscrito da estreia não sobreviveu, não o conhecemos. Desse modo, não sabemos ao certo quem cantou cada papel ou em que a estreia diferia de apresentações posteriores, das quais há partitura ou, ao menos, indicações. Segundo Curtis Price e Irena Cholij em Dido’s Bass Sorceress, sabe-se que no fim do século XVII, poucos anos após a estreia, houve apresentações em que a feiticeira era um homem (no caso, um baixo, em uma época em que ainda não existia o termo “barítono”). Isso não significa que tenha sido essa a opção de Purcell, mas que não há problema estilístico em um homem interpretar a feiticeira, essa vilã da trama. É, pois, uma situação bem diferente daquela criada, sobretudo na década de 80, quando os encantos da ópera barroca voltaram a ser explorados, ao se escalar tenores para papéis masculinos originalmente compostos para vozes femininas. Nesse caso, sim, com o intuito de tornar a ópera mais palatável aos ouvidos pós-românticos e aceita à luz dos preconceitos da época, havia um rompimento com a lógica do barroco, sobretudo quando o personagem em questão era um jovem ou um herói.

Homero Velho

Voltando à feiticeira, foi justamente essa a escolha do teatro São Pedro: um intérprete masculino, Homero Velho.

Danielle Carvalho já nos informou que a ópera foi composta, muito provavelmente, para amadores, para estudantes, de modo que não apresenta grandes dificuldades virtuosísticas para os cantores. Contudo, a feiticeira é justamente a parte que exige mais expressividade e que tem mais coloraturas. Homero Velho exibiu uma voz poderosa, bem apoiada, e afinação precisa. Foi, sem dúvida, a melhor voz que se ouviu durante todo o espetáculo.  Ele, porém, teve dificuldade nos agudos e com as coloraturas, sobretudo nas regiões graves. Como sempre, sua presença de palco foi impecável, o ponto alto do espetáculo.

O papel do “herói” Eneas, que de herói não tem nada, coube a Johnny França. O barítono, que tem histórico de boas atuações, parecia um pouco deslocado tanto cênica quanto vocalmente. Dono de um belo timbre, apresentou problemas de fraseado e afinação. Nada disso, porém, teria comprometido o espetáculo, se as duas protagonistas femininas, Marília Vargas e María Cristina Kiehr, respectivamente Belinda e Dido, tivessem tido um desempenho minimamente aceitável.

María Cristina Kiehr e Marília Vargas

Vargas estudou na Schola Cantorum Basiliensis, em Basel, na Suíça, recebeu boa formação, especializou-se no repertório barroco, fez alguns contatos internacionais e soube vender muito bem a sua imagem por aqui. Não é uma crítica: artistas precisam saber construir uma imagem. O problema é que isso tudo não garante um bom resultado musical. Sua Belinda apresentou uma voz sem apoio, com problemas nos agudos e de afinação. Sua postura cênica dava a impressão de que, ao mesmo tempo em que parecia estar perdida no palco, estava por lá coordenando, verificando, com um sorriso imutável, se tudo estava correndo bem, e aproveitava para dar as entradas para o coro. Parecia ter esquecido que não era um ensaio.   

Não foi muito melhor a Dido da argentina María Cristina Kiehr. Para falar a verdade, embora a sua postura cênica tenha sido mais sóbria, sua voz estava até em pior estado. Sem apoio, apresentou frequentes problemas de afinação e teve grande dificuldade com os agudos, sempre duros, estridentes e imprecisos. Tanto o seu tipo de voz quanto a fase da sua carreira a tornaram uma escolha inadequada para Dido. Kiehr também estudou na Schola Cantorum Basiliensis e teve uma carreira internacional respeitável. Segundo a Opera Base, no entanto, foi ativa até 2013. Muito provavelmente foi uma indicação da colega Marília Vargas, que costuma dar as coordenadas quando o São Pedro monta óperas barrocas – sua postura no palco, aliás, deixou isso claro. Assim foi na desastrosa Alcina, apresentada poucos anos atrás pela mesma equipe, quando o teatro “importou” um péssimo contratenor; assim foi, de novo, com Dido.

Não sou contrária à vinda de bons artistas de fora, acho muito positivo que venham: é bom para o público, é bom para os artistas locais que com eles interagem. Foi excelente, por exemplo, a vinda do maestro Felix Krieger para reger Ariadne no fim do ano passado. O problema acontece quando um teatro que está com verbas escassas traz do exterior um cantor que não possui as condições técnicas necessárias para o papel que vai assumir. Kiehr foi ouvida antes de ser contratada?   

Tudo tem um lado positivo. Após essa discutível largada, o São Pedro tem muito espaço para crescer a cada título e realizar uma grande temporada.

Para esquecer o cruel destino de Dido, bem como o texto desagradável que me vi obrigada a redigir – “ah! forget my fate!” –, deixo o leitor com o belo, monumental lamento, na maravilhosa interpretação de Lea Desandre e William Christie. É só clicar aqui.

Fotos: Eloisa Bortz.

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