“Der Rosenkavalier” e o Tempo

Der Rosenkavalier (O Cavalheiro da Rosa, 1911)
Ópera em três atos

Música: Richard Strauss (1864-1949)
Libreto: Hugo von Hofmannthal (1874-1929)

Bayerische Staatsoper (Munique), 21 de julho de 2022

Direção musical: Vladirmir Jurowski
Direção cênica: Barrie Kosky

Marie Thérèse (die Feldmarschallin): Marlis Petersen, soprano
Octavian: Samantha Hankey, mezzosoprano
Barão Ochs auf Lerchenau: Günther Groissböck, baixo
Herr von Faninal: Johannes Martin Kränzle, barítono
Sophiei: Liv Redpath, soprano

Bayerisches Staatsorchester

A expectativa era enorme e, mesmo assim, foi superada. O que vi na Bayerische Staatsoper durante o Festival de Ópera de Munique, no dia 21 de julho, com o teatro lotado, foi a perfeita combinação de uma produção teatral genial, sensível, assinada por Barrie Kosky, atuações memoráveis, especialmente de Marlis Petersen e Günther Groissböck, que substituiu o titular Christof Fischesser como o Barão Ochs, e a fabulosa sonoridade da Bayerisches Staatsorchester, dirigida por Vladimir Jurowski, seu maestro titular. 

“Trata-se de um muito peculiar entrelaçamento de épocas, destinadas, aliás, a se unirem com uma terceira, que é o período em que o leitor um dia talvez aproveite para tomar conhecimento do que comunico. Assim sendo, ele se defrontará com um triplo registro de tempos: o seu próprio, o do cronista e o histórico” (Thomas Mann. Doutor Fausto).

São estes os tempos de Der Rosenkavalier: o barroco da Viena de meados do século XVIII, início do reinado da Imperatriz Maria Teresa; a Viena de fin-de-siècle do compositor Richard Strauss e do libretista Hugo von Hofmannsthal, às vésperas da I Guerra Mundial; e o nosso tempo. E é, como um vetor invisível, o próprio tempo – que corre incessantemente, autor de renovações, transformações e da finitude – que liga esses três tempos. Wie du warst! Wie du bist! – “Como você era! Como você é!”, ouve-se logo na primeira linha cantada da ópera.

Talvez em nenhuma produção de Der Rosenkavalier a assinatura do nosso tempo esteja tão presente quanto nessa produção da Bayerische Staatsoper, que estreou no dia 21 de março de 2021 sem público no teatro, apenas em vídeo, e com orquestra reduzida — tudo em função das medidas restritivas de combate à pandemia de Covid-19, uma forte marca dos difíceis dias que ainda estamos atravessando.

A Kosky coube a difícil tarefa de substituir a emblemática produção de Otto Schenk, marca do Rosenkavalier tanto em Munique quanto em Viena, e que foi cenário para os melhores maestros e cantores do século XX. Como se isso fosse pouco, veio ainda no momento de transição entre a gestão muitíssimo bem sucedida de Nikolaus Bachler e Kirill Petrenko, que deixou profundas marcas no público da casa, e a de Serge Dorny e Vladimir Jurowski, que tem como desafio, no mínimo, manter o altíssimo nível.

Em carta de 1908 a Strauss, Hofmannsthal observou que estava escrevendo uma “comédia psicológica em prosa”. Foi exatamente o que Kosky levou ao palco. Lembranças, fantasia e realidade se misturam. Na cenografia de Rufus Didwszus e até nos figurinos de Victoria Behr algumas imagens, alguns símbolos, pareceram vindos de Chagall: o relógio de pé, as transparências no figurino do primeiro ato, o casal flutuando no final da ópera.

O tempo inclemente perpassa, em pessoa, a ópera inteira. A primeira imagem que se vê é a de um grande relógio cujos ponteiros giram, cada um em um sentido, quase que zombando de nós. E toda a trama é acompanhada, e em alguns momentos até conduzida, pela figura mitológica do velho alado Pai Tempo (que entra em cena ao som da frase “cada coisa a seu tempo”). Discreto, franzino, curvado, mudo, os demais personagens quase não o notam. Sua passagem, no entanto, é sentida – e como!

As primeiras notas que nos chegam aos ouvidos, vindas das trompas, entoam um tema (o tema do jovem Octavian) que dá início à agitação frenética de uma noite de amor que se espalha por toda a orquestra. O relógio de pé, que também serve como um símbolo fálico, começa a girar e a pular. Como ficará claro na última cena da ópera, esse relógio-fálico nos lembra que também o amor está sujeito aos efeitos do tempo.

Marie Thérèse e Octavian saindo de dentro do relógio.

Vem a calmaria, o torpor – que começa com outro tema (o da Marechala). E é justamente no momento em que o seu tema aparece na orquestra que ela surge, vinda de dentro do relógio, de outro tempo, acompanhada pelo seu jovem amante.

Amanhece. Deparamo-nos com o diálogo quase sem sentido do casal, com frases musicalmente no estilo wagneriano. Os protagonistas da cena são uma mulher madura de 32 anos, a Princesa Marie Thérèse von Werdenberg, esposa do marechal von Werdenberg – que, aliás, estava distante, caçando –, e o seu imaturo e inexperiente amante, o Conde Octavian Rofrano, de 17 anos.

Ao abrirem-se as cortinas, vemos uma cena que remete àqueles filmes de suspense ambientados em antigos castelos, com as paredes em tons de cinza e alguns corvos passeando. O corvo, aquele mesmo que, através de Edgar Allan Poe, profetizou: “Nevermore!” Marie Thérèse e Octavian não sabiam, mas aquela havia sido a última noite de amor dos dois. Nevermore!

O quarto de Marie Thérèse é tomado por todos os que com ela tivessem algum assunto a tratar. Prática comum no século XVIII, essas entrevistas matinais mesmo antes de a nobre dama se levantar, ou enquanto ela fazia os seus preparativos, soam-nos como uma intolerável invasão de privacidade. Mais uma vez o tempo: ele passa, os costumes mudam.

A primeira visita que entra no quarto é o Barão Ochs auf Lerchenau, primo da Marechala. Com problemas financeiros, o Barão acertou com o burguês Faninal, um nouveau-riche interessado em enobrecer a família, um casamento com a sua jovem filha, Sophie.

O Barão Ochs é uma espécie de personagem buffo inspirado em Falstaff, de Verdi (que Strauss admirava), em Molière, em Beaumarchais, e com um toque mozartiano de Le Nozze di Figaro — afinal de contas, Strauss era um mozartiano. Embora se trate de um nobre rude, do campo, e que, no segundo ato, se torna vítima dos perigos que Viena oferece, é para ele que Strauss reserva a linha mais vienense da sua partitura, uma bela valsa baseada em um tema de Dynamiden, que Josef Strauss escreveu em 1865, e que tivemos o privilégio de ouvir com o inigualável Günther Groissböck, um dos melhores Ochs (na verdade, um dos melhores baixos!) da atualidade. Ao ouvir o anúncio do seu nome, antes do início da récita, o público se pôs a aplaudir com entusiasmo.

Ochs guarda certo espírito vienense do fim do século XIX, uma ilustração do que descreve Max Graf (1873-1958) em seu livro Legend of a Musical City: the story of Vienna“O vienense se considerava indestrutível mesmo em tempos difíceis. Ele nasceu otimista. Essa qualidade, juntamente com sua sensibilidade e sua apreciação da beleza da natureza, fez dele um músico. Sua atitude despreocupada, descuidada em relação à vida, ele expressa cantando, brincando e dançando, bebendo vinho nas tabernas, nos festivais nas verdes vilas, escalando montanhas”. É cantando que ele tenta seduzir a sua noiva. É bêbado e cantando a sua valsa que, ferido, o barão encerra o segundo ato. Papel central, sobretudo para o aspecto cômico da trama, antes da estreia era ele que dava nome à ópera: Ochs auf Lerchenau.

Marie Thérèse, Ochs (aqui Christof Fischesser) e Octavian como Mariändel.

O Ochs de Groissböck foi perturbadoramente banal, natural: nada do buffo caricato que se vê normalmente, e que ele mesmo encarnou em outras produções, mas sim o executivo machista, financista, dos nossos tempos: uma figura comum, corriqueira e nociva. Afinal de contas, a nossa sociedade contemporânea não é menos decadente do que a Viena de Strauss e Hofmannsthal. E os homens são todos iguais. Não foi isso o que falou Marie Thérèse? Ela não pediu a Octavian que não se tornasse igual a todos os homens, igual ao marechal, igual ao primo Ochs?

Tanto musical quanto cenicamente, a atuação de Groissböck foi impecável. Seu fraseado fluiu com naturalidade, sem aquele atropelo que normalmente se nota nos intérpretes de Ochs. O seu canto foi preciso, e sua voz, enorme. Retirou-se do primeiro ato com um consistente e bem sustentado dó grave (dó1), uma das notas mais graves do repertório operístico.

Enquanto as mais diversas pessoas e situações passam pelo ruidoso quarto da Marechala, surgem um flautista e um tenor italiano. Para a parte do flautista Kosky escalou ninguém menos que o Tempo, que entra com uma flauta de pan, como a utilizada por Papageno em Die Zauberflöte. Quanto ao tenor, é geralmente interpretado como uma figura caricata, exagerada, uma sátira da ópera italiana, mas isso não parece fazer muito sentido e, felizmente, não é dessa forma que Kosky e Jurowski interpretam o episódio.

A ária “Di rigori armato il seno“, interpretada pelo cantor italiano, tem texto de Molière e faz parte da comédie-balletLe Bourgeois Gentilhomme” (1670), com música de Lully. Em sua versão original, a ária foi atribuída a uma cantora italiana durante o Ballet des Nations, último ato da peça. É interessante notar que Le Bourgeois Gentilhomme trata de um burguês de origem modesta, ingênuo e ridicularizado, que quer se tornar fidalgo e socialmente aceito; em Der Rosenkavalier, temos um acordo entre um nobre falido interessado nas posses de um burguês rico e um burguês rico interessado nos títulos da nobreza e em ascensão social. Em ambas as obras, o burguês busca atingir os seus objetivos através do casamento da filha.

É notório o interesse de Strauss e Hofmannsthal por Molière. Após Rosenkavalier, Strauss compôs Ariadne auf Naxos, cujo primeiro ato, em sua primeira versão, era baseado no Bourgeois Gentilhomme, e uma suíte orquestral que leva o nome da obra. Segundo Jurowski, em vídeo veiculado no site da Bayerische Staatsoper em março de 2021, a ária do tenor é “uma tentativa de evocar um estilo rococó italiano há muito desaparecido, mas o que saiu, imagine só, não tem nada a ver com o rococó italiano ou francês. Tem muito mais a ver com o seu contemporâneo, Giacomo Puccini. Soa como uma paródia amigável da música de Puccini. E para mim é esta a coisa importante sobre a ópera: Strauss tenta em alguns momentos – e obtém sucesso algumas vezes – evocar a música do passado, mas na verdade ele continua um modernista: um modernista que gosta de se disfarçar”.

Marie Thérèse e o tenor italiano.

Em um belíssimo momento de sonho, onde todo o ruído deu lugar à poesia e à nostalgia, a iluminação de Alessandro Carletti torna-se solar, o cinza do ambiente dá lugar ao dourado que o palácio teve outrora, e o tenor mexicano Galeano Salas entra em trajes rococó, com direito a plumas, e canta. Por alguns instantes, o tempo parece voltar para a época de Molière. A interpretação de Salas começou de forma vacilante, mas foi ganhando corpo ao longo da ária, chegando a um resultado bastante bom.

Na brilhante leitura de Kosky, só Marie Thérèse parece ouvir o tenor. Ela simplesmente se desliga de todo o ruído dos seus aposentos. Memória? Revelação de que é inútil se rebelar contra o amor? O tenor não para de cantar porque foi interrompido pelo barulhento Ochs, como ocorre nas versões tradicionais, mas porque Marie Thérèse acorda, volta à realidade — e mais consciente de si. Antes de sair de cena, o tenor coloca um véu escuro sobre a cabeça da Marechala, que então se dá conta de que o tempo passou. A cena volta à iluminação original: a da fria realidade.

“Meu querido Hippolyte, hoje você fez de mim uma mulher velha”, diz Marie Thérèse ao mirar-se no espelho, mas, dessa vez, não para um cabeleireiro. Em Kosky, a situação é muito mais interessante, psicológica: ela o diz sozinha, deixando clara a alusão a Fedra.

Embora não apareça no segundo ato, e só volte a pisar no palco no fim do terceiro, a Marechala é uma personagem dominante, sobretudo quando interpretada por uma artista superlativa, inteligente, do calibre da excelente soprano alemã Marlis Petersen. A Marie Thérèse concebida por Kosky e criada por Petersen não é a boneca de porcelana que se vê em tantas produções, mas uma mulher de verdade, de carne e osso, com personalidade, com sentimentos, com nuances. E isso não ocorre apenas em virtude de a produção não ser tradicional: é uma questão de interpretação, de construção da personagem.

No primeiro ato é Marie Thérèse quem reina. Trata-se, segundo Richard Strauss em trecho citado no livro As Óperas de Richard Strauss, do saudoso crítico Lauro Machado Coelho, “de uma grande dama que já teve alguns amantes antes de Octavian e, certamente, terá outros depois dele”. Saber dominar a cena com altivez, classe, sem exagero, com certa melancolia e ironia, e ainda dando conta de uma linha mais lírica, que se contrapõe às de Octavian e Ochs, como fez Petersen, não é pouca coisa.

O final do primeiro ato é um dos momentos mais belos e fortes da ópera, e
seu êxito, extremamente dependente da intérprete de Marie Thérèse e da sensibilidade do maestro — felizmente, tínhamos Petersen e Jurowski. A música, até então agitada como o populoso quarto, torna-se delicada e introspectiva enquanto a Marechala, agora só, se indigna com a situação: Ochs pretendia ficar com a bela jovem e com uma boa soma de dinheiro. E ela logo se questiona: por que estava irritada? Afinal de contas, “o mundo é assim”. Ela lembra que já esteve no lugar que hoje é da jovem Sophie, quando saiu do convento para o matrimônio; que já foi a jovem “Resi” e agora é a velha Marechala. Toma consciência das transformações impostas, de forma quase misteriosa, pelo discreto correr do tempo. “Tudo é mistério”, conclui, “e estamos aqui para suportá-lo. E no ‘como’ está a diferença”.

Da indignação para a reflexão, Marlis Petersen altera a cor e o peso da sua voz, passa da linha mais ríspida, com um toque de ironia ao referir-se ao Barão, para um canto mais leve, com frases intercortadas que ficam soltas no ar, que flutuam. Sua dicção perfeita e o seu refinado fraseado transmitem, com inteligência, o pensamento que vai se construindo ao longo do solilóquio. Sob Jurowski, a orquestra pontua de forma contundente, mas extremamente delicada, ilustrando as reflexões sem jamais encobrir Petersen, mesmo nos momentos em que ela faz o seu belo piano, mesmo nas passagens graves, onde a sua voz perde um pouco de volume, mas sem perder jamais a qualidade e sem buscar um peso artificial.

Octavian e Marie Thérèse no primeiro ato.

Quando Octavian retorna e a encontra nessas reflexões, mostra-se insensível, como bom adolescente, e, mais que isso, chocado. Fica evidente, mais que em qualquer outro momento, a diferença e o distanciamento entre a Marechala e Octavian (ou Quinquin, como ela o chama). Essa diferença, aliás, também é
explicitada musicalmente em seus respectivos temas: um (o de Octavian) acentuado, agitado, e o outro tranquilo, legato.

Quanto ao canto, ficou perfeito o contraste entre a Marechala de Petersen e o Octavian de Samantha Hankey. Enquanto o canto de Hankey, com sua voz enorme, apresenta um vibrato que em alguns momentos transmitiu certa instabilidade, o de Petersen é límpido, preciso, seguro.

A Marechala se dirige ao jovem com uma reflexão que Petersen cantou com grande sensibilidade. Segundo tradução de Lauro Machado Coelho em seu livro citado alguns parágrafos acima: “Oh, seja bonzinho, Quinquin. Angustia-me ter a consciência, lá no fundo de meu coração, da fragilidade de todas as coisas nesta terra, de como não podemos deter nada, de como não podemos reter nada, de como tudo escorre entre os nossos dedos, como tudo o que seguramos se dissolve, como tudo se desfaz como a nevoa ou um sonho”.

“Neste texto”, observa Machado Coelho, “em que reaparecem as metáforas barrocas da água que escorre, da neve e do sonho, ligadas à efemeridade das coisas, as ideias sobre o tempo inexorável e a velhice e morte inevitáveis, que preocupavam precocemente Hofmannsthal, desde seus tempos de adolescente, assumem uma dimensão ainda mais profunda, pois estão situadas no quadro mais amplo da evocação de toda uma sociedade que agoniza, ainda sem o saber”.

Um momento que merece especial destaque, e que rendeu o título definitivo à ópera, é a linda e célebre apresentação da rosa, quando, escolhido pela Marechala como emissário do Barão Ochs, Octavian vai entregar a rosa a Sophie. “O título definitivo”, explica Machado Coelho em seu saboroso texto, “refere-se a um ‘antigo costume matrimonial’ vienense: o de o noivo pedir a alguém da família que fosse apresentar à sua pretendida, em sinal de afeto, uma rosa de prata. Belíssimo costume, que tem apenas um defeito: nunca existiu!”. Em Elements of Time in Der Rosenkavalier, Lewis Lockwood observa que a invenção não foi gratuita, mas “epitomiza a formalidade do comportamento social aristocrata e captura o espírito do ‘ancien régime’ como pano de fundo para a trama”.

Octavian e Sophie após a entrega da rosa.

Em Munique, a cena é de extrema beleza: o cavalheiro chega em uma carruagem toda prateada e conduzida pelo velho Tempo (cujas asas, escuras no primeiro ato, aqui já estavam bem mais claras). Quando a carruagem entrou, o público não resistiu e começou a aplaudir, mesmo com a música tocando. Em cena, também a cama de Sophie. Seria tudo um sonho, uma fantasia, ou realidade? No fim da ópera, Sophie dirá: “É um sonho, não pode ser verdade que estamos juntos, juntos por todo o tempo e a eternidade”.

Quando os jovens amantes comentam sobre o perfume da rosa, é como se fossem tomados por um encantamento e se descobrissem apaixonados. A música, extremamente lírica e delicada, dá a sensação de que o tempo, por alguns instantes, para. Como que perturbada por um tema de notas meio erráticas, essa música, porém, representa o brilho disforme, em todas as direções, da rosa de prata.

Na saída da carruagem, um pequeno incidente, desses que sempre podem ocorrer: ela deu algumas trombadas nas laterais da porta por onde deveria passar. E não é que até isso fez sentido? O tempo sempre nos reserva surpresas, nem todas agradáveis.

Segundo ato: a casa de Faninal.

Na nova produção bávara, a sala do burguês Faninal, onde se passou o segundo ato, estava coberta por quadros barrocos, em referência a burgueses que formaram coleções de arte em suas casas, que hoje viraram museus. Deles começaram a saltar figuras como faunos: a criadagem de Ochs (que o libreto descreve como “o caçador, com modos grosseiros, e uma atadura no nariz quebrado, e mais dois, de aspecto semelhante…”). Uma ideia simplesmente genial de Kosky.

Como Faninal, foi excelente a atuação de Johannes Martin Kränzle. Teatral, natural, ótimo cantor, ele fez um Faninal que, por trás da sua autoridade como pai, da sua prepotência, não consegue esconder toda a sua insegurança.

É bastante rico e interessante o personagem de Octavian. É uma espécie de descendente de Cherubino: ambos são garotos com os hormônios transbordando e que devem ser interpretados por uma mezzosoprano – foram, portanto, concebidos como papeis travestidos; ambos estão descobrindo sua sexualidade, buscam mulheres mais velhas, casadas, mas acabam, no fim, com as suas jovens amadas; ambos se disfarçam e se fazem passar por mulheres (Octavian se veste de camareira e cria a personagem Mariändel).

Octavian começa infantil, despreocupado, ingênuo, impulsivo, duvidando das mudanças trazidas pelo tempo, achando que pode controlar tudo. Escolhido como o nobre cavalheiro emissário da rosa de prata, apaixona-se à primeira vista por Sophie, quando tem início a sua transformação. “Eu era um menino que não a conhecia. Mas quem eu sou? (…) Se eu não fosse um homem perderia os sentidos”, diz.

No final, resolvido o problema do indesejado casamento, diante de Sophie e da Marechala, Octavian fica confuso, sério, aprende a calar, a esperar, a observar. Torna-se homem maduro. Aliada à direção de Kosky, Samantha Hankey, com a sua desenvoltura e o seu timbre quente, transmitiu de forma precisa todo o rápido processo de transformação sofrido por Octavian e lidou muito bem com o travestimento duplo. Sua postura cênica foi não só masculina, mas com aquele toque um pouco desengonçado dos adolescentes. Sua Mariändel roubou a cena muitas vezes. Até a sua voz, que no primeiro ato apresentou momentos de imprecisão, pareceu amadurecer ao longo da ópera, acompanhando o seu personagem. Um ótimo Octavian.

Diferentemente das famílias aristocratas dos anos passados, como a de Marie Thérèse, nas famílias burguesas começa a surgir espaço para a contestação. Sophie luta contra um casamento que, como anunciou Octavian, levando Ochs a cair na risada, ela não queria. Mais que se rebelar como boa adolescente, Sophie luta pelo seu objetivo.

Ela vê, porém, que também a vida de Octavian possuía lá os seus mistérios um tanto picantes. Ameaça outra revolta, mas aí a razão já havia cedido ao sentimento. À intérprete de Sophie cabe, pois, alternar momentos de meiguice quase infantis com outros de rebeldia, e ainda os de maior sensibilidade e lirismo, sobretudo ao receber a rosa. Foi quase perfeita a interpretação da soprano Liv Redpath, com o seu belo timbre, tendo deixado um pouco a desejar apenas no momento da entrega da rosa: seu “Wie himmlische” não foi tão celestial quanto o desejado, mas nada que tenha comprometido a sua atuação, que, de forma geral, foi de alto nível.

Terceiro ato.

O terceiro ato retrata uma farsa à la Molière, armada por Octavian a fim de revelar Ochs a Faninal. Da orquestra, surgem até citações da Quinta Sinfonia de Beethoven. Kosky a ambienta em um teatro, tendo o Tempo como ponto. Na tentativa de enlouquecer Ochs, em vez de surgirem e desaparecerem pessoas do nada, como é comum nas produções, aparecem vários homens vestidos como ele: o Barão fica totalmente confuso ao se dar conta de quantos existem iguais a ele, do quão comum ele é. Groissböck e Hankey foram simplesmente excelentes!

No final do ato, a farsa é um sucesso, e o compromisso de casamento, desfeito, mas Ochs não consegue perceber que tudo havia desmoronado. “Não entende quando uma coisa acabou?”, pergunta-lhe a Marechala.

Na música, melodias do primeiro ato, da cena entre a Marechala e Octavian, das reflexões sobre o implacável tempo. Diante de Octavian e Sophie, Marie Thérèse não pode, como o Barão, negar o fim. “Hoje, amanhã ou depois de amanhã. Eu não disse a mim mesma? É o que acontece a toda mulher. Eu não sabia?”.

Em um dos momentos mais belos da ópera, Octavian, Sophie e Marie Thérèse cantam em um trio onde os seus sentimentos soam simultaneamente e em harmonia. De forma segura e encantadora, a Marechala de Marlis Petersen inicia o trio: “Prometi amá-lo honestamente, que amaria inclusive uma outra que ele amasse. Francamente, não achava que teria que cumprir a promessa tão rápido. Há tantas coisas no mundo em que não conseguimos acreditar quando delas ouvimos falar. E, de repente, quando as vivenciamos, passamos a acreditar”. É muito interessante a combinação criada pelas vozes: por um lado, a voz volumosa de Hankey combinada à mais jovial de Redpath; por outro, a de Petersen, com precisão cirúrgica e projeção delicada e segura.

“Os jovens são assim”, diz Faninal à Marechala. Ela responde com o seu famoso “Ja, ja”, que Petersen conseguiu carregar de sentido, com certa ironia, sem ser fatalista ou artificialmente dramática.

Relógio e Tempo voltam ao palco. Dessa vez, com o Tempo sentado sobre o relógio. A Marechala à frente. Como já citamos no início do texto, o amor também está sujeito aos efeitos do tempo. O casal, segurando a rosa de prata, como em um conto de fadas ou em um quadro de Chagall, levanta voo e segue cantando o sonho que estão vivendo. Pura poesia. Até o Tempo se sensibiliza e tira o ponteiro do relógio. Será que agora ele dá uma trégua?

A regência de Vladimir Jurowski e a excelente Bayerische Staatsorchestra brilharam nessa noite magistral. A música fluiu da orquestra com naturalidade incrível. Não houve rigidez, mesmo nos momentos de maior ênfase não brotava qualquer agressividade do fosso. A leveza delicada, a fantasia da produção, parecia ter tomado conta, também, da orquestra. Jurowski regeu com gestos tranquilos, como quem realmente tem domínio sobre a partitura e sobre o conjunto. Fez-me lembrar do que Max Graf contou sobre Richard Strauss: “Uma vez fui parabenizar Strauss, após ele ter regido o primeiro ato de ‘Tristan und Isolde’ de forma emocionante, usando apenas movimentos curtos, precisos. ‘Coloque a mão aqui!’, disse-me Strauss, e colocou a minha mão em suas axilas. ‘Absolutamente seco! Eu não suporto maestros que transpiram!'” 

Saí do teatro entendendo perfeitamente por que a Bayerische Staatsoper é considerada uma das melhores — se não a melhor — casas de ópera do mundo. Na porta de saída dos artistas, fui cumprimentar Petersen. “Foi uma noite incrível, não?”, falou-me sorridente, satisfeita com o resultado, ciente do êxito não só da sua arte, mas de todo o conjunto. Sim, foi uma noite incrível, que o tempo levou tão rápido, que eu desejava que tivesse durado mais ou se repetido. Lamentavelmente, eu não podia ficar em Munique até a apresentação seguinte, mas essa récita, mesmo com o passar do tempo, permanecerá gravada em um lugar especial na memória e no coração de todos os que ali estavam.

Fotos: © Wilfried Hösl.

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