“Die Frau ohne Schatten”: “O rico presente de uma hora inspirada”

Christian Thielemann se despede da Semperoper Dresden com uma impecável “A Mulher sem Sombra”, de Strauss.

Die Frau ohne Schatten (A Mulher sem Sombra, 1919)
Ópera em três atos
Música: Richard Strauss (1864-1949)
Libreto: Hugo von Hofmannsthal (1874-1929)
Semperoper Dresden, 27 e 30 de março de 2024
Direção musical: Christian Thielemann
Direção cênica: David Bösch
Cenografia: Patrick Bannwart
Figurinos: Moana Stemberger
Desenho de luz: Fabio Antoci
Vídeo: Patrick Bannwart e Falko Herold
Der Kaiser (o Imperador): Eric Cutler, tenor
Die Kaiserin (a Imperatriz): Camilla Nylund, soprano
Die Amme (a Ama): Evelyn Herlitzius, mezzosoprano
Barak: Oleksandr Pushniak, baixo-barítono
Baraks Frau (a mulher de Barak): Miina-Liisa Värelä, soprano
Der Geisterbote (o mensageiro dos espíritos): Andreas Bauer Kanabas, barítono
Ein Hüter der Schwelle des Tempels (guardião do templo): Nikola Hillebrand, soprano
Erscheinung eines Jünglings (aparição do jovem amante): Martin Mitterrutzner, tenor
Die Stimme des Falken (a voz do falcão): Lea-ann Dunbar, soprano
Eine Stimme von oben (uma voz do alto): Christa Mayer, mezzosoprano
Irmãos de Barak:
Der Einäugige (o caolho): Rafael Fingerlos, baixo
Der Einarmige (o homem de um braço só): Tilmann Rönnebeck, baixo
Der Bucklige (o corcunda): Tansel Akzeybek, tenor
Staatskapelle Dresden
Coro e Coro Infantil da Semperoper Dresden

“É, ao mesmo tempo, uma ópera romântica à moda antiga e uma obra que só poderia ter nascido na nossa época, real e simbólica, capaz de cativar os mais diversos homens e de impressionar os mais simples (…).”

Hugo von Hofmannsthal

Die Frau ohne Schatten (A mulher sem sombra), a quarta ópera de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal, é simplesmente fascinante. Considerando a sua beleza e a paixão que desperta no público, é muito menos executada do que deveria no continente americano. Isso tem um motivo: para colocar Die Frau no palco, é preciso uma boa e grande orquestra (com 176 músicos e bons solistas instrumentais); um ótimo maestro, que saiba extrair uma sonoridade límpida; um encenador que não relute em colocar um conto no palco, sem querer transformá-lo em algo duro e realista; e cinco solistas vocais de primeira grandeza, capazes de encarnar os seus papéis e de cantar as nuances, os agudos e vencer as armadilhas que Strauss constantemente lhes reserva. A Semperoper Dresden ofereceu tudo isso em sua nova produção. No Brasil, essa ópera nunca foi feita, e não é por falta de orquestra: já passou da hora de a OSESP chamar um bom regente, bons solistas e promover a estreia brasileira dessa obra-prima de Strauss, mesmo que semiencenada.

Die Frau foi a ópera escolhida pelo excelente Christian Thielermann, uma autoridade na música de Strauss, para se despedir do seu cargo de regente titular da Semperoper Dresden. Foi uma oportunidade e tanto para vê-lo em ação.

A sombra é um clássico símbolo do duplo e da maternidade, e esses dois sentidos se fundem na ópera. No Novo Testamento, quando o anjo anunciou a Maria que ela iria conceber, disse-lhe que o Senhor a envolveria com sua sombra. Na literatura (e na ópera), a ausência (ou perda) da sombra, dessa conexão com a Terra, é normalmente associada à incapacidade de ter filhos.

Em seu livro O Duplo – um estudo psicanalítico, publicado em 1925, o psicanalista austríaco Otto Rank aponta a sombra como símbolo do duplo. Não é, pois, mero acaso que o duplo esteja já na estrutura de Die Frau ohne Schatten. Como escreveu Hofmannsthal em carta a Strauss, a ópera é, ao mesmo tempo, “romântica à moda antiga e uma obra que só poderia ter nascido na nossa época”; “real e simbólica”. Além disso, trata de dois mundos, o mundo dos espíritos (que não têm sombra) e o mundo dos seres humanos (concretos, carnais, que projetam sombra). Conta a história de dois casais que precisam passar por algumas etapas de aprendizado e por algumas provas para atingir um estágio de maturidade, de cumplicidade. Die Frau segue o modelo de Die Zauberflöte, de Mozart, na qual dois casais de naturezas diferentes – Tamino e Pamina; Papageno e Papagena – precisam passar por provas.

Em Die Frau, um dos casais é bem humano, vive uma dura vida com problemas bem reais (Barak, o bom e paciente Tintureiro, e sua temperamental esposa); e o outro vive em uma espécie de plano intermediário entre o mundo dos espíritos e o dos homens (o Kaiser, Imperador, humano, e a Kaiserin, Imperatriz, que não tem sombra e é filha de Keikobad, o mestre do mundo dos espíritos). No primeiro casal, os tintureiros parecem ter se perdido; no segundo, Imperador e Imperatriz parecem ainda não ter se encontrado. Os homens desses dois casais vivem presos ao passado. Embora Barak concentre todas as suas energias no trabalho, na vida cotidiana, no sustento da família, está preso à imagem do pai, da casa paterna, tomou para si a responsabilidade de cuidar dos irmãos, como o pai fazia, e sonha ter uma família numerosa. Já o Imperador encontrou a sua esposa na forma de uma gazela branca quando ele estava caçando com a ajuda do seu falcão vermelho. Assim que foi capturada, ela se transformou em mulher. E o Imperador revive essa história durante toda a ópera – tanto no libreto quanto na música, é um tema recorrente, que se caracteriza por uma melodia lírica, apaixonada, uma das passagens mais belas já ouvidas em uma ópera.

Ainda: o Imperador só sabe ser amante e caçador; Barak, amante e provedor. Como consequência, a Imperatriz não consegue se humanizar totalmente, não consegue uma sombra, e a Tintureira, embora tenha sombra, não consegue extrair os frutos dessa sua condição humana.

Há uma quinta personagem que transita entre os dois mundos, que forma uma dupla com a Imperatriz: a Ama que acompanha a Imperatriz, que deve zelar por ela. A Ama vem do mundo dos espíritos: é, à sua maneira, fiel à Imperatriz, e repudia os homens. É uma espécie de fusão entre a Rainha da Noite e um Mefistófeles manipulador, um diabo que quer separar a Imperatriz dos seres humanos, que quer que ela retorne ao mundo dos espíritos.

O conflito central é uma maldição que pairava sobre o casal Imperador-Imperatriz: se em doze luas a Imperatriz não adquirisse uma sombra, ela deveria retornar para junto do pai, no mundo dos espíritos, e o Imperador – que estava falhando em fazer com que ela se encarnasse – se transformaria em pedra. A três dias do término do prazo, o falcão vem lembrar a Imperatriz da maldição, e, com a ajuda de sua Ama, ela parte para o mundo dos humanos a fim de conseguir a sombra de alguma mulher. As duas encontram o Tintureiro e a Tintureira. A Tintureira é infeliz com a vida que leva, sobretudo com a presença dos três irmãos de Barak na casa deles. É uma presa fácil para a Ama, que a convence a trocar a sua sombra por um mundo de ilusões.

A perda da sombra é um tema presente na literatura do século XIX. Um dos principais exemplos é o personagem-título de A História Maravilhosa de Peter Schlemihl, de Adelbert von Chamiso. Pobre e desprezado pela sociedade, Schlemihl é seduzido por um misterioso homem de cinza (o diabo, claro!), e acaba aceitando entregar a sua sombra em troca de uma riqueza que nunca acabará. O problema é que, sem a sombra, a sua riqueza de nada serve, porque ele passa a ser repudiado, é um diferente, em que habita alguma maldição. Quando se apaixona, o pai da noiva lhe dá três dias para que arranje uma sombra – o que ele não consegue e, evidentemente, acaba perdendo a noiva.

Outro exemplo é Anna, do poema de Nicolaus Lenau, que, segundo o título, é baseado em uma lenda sueca. Ao ver a sua imagem refletida no lago, Anna se deslumbra com a própria beleza e deseja que nada estrague essa beleza – um clássico caso de narcisismo. Ao ser pedida em casamento, Anna procura uma velha feiticeira e troca a sua sombra, ligada à capacidade de ter filhos, pela preservação dessa bela imagem. Ela tinha sete filhos não nascidos e esperando para nascer. Durante o feitiço, o vento soprou o moinho por sete vezes e, a cada vez, Anna escutou o murmúrio de um desses filhos que não mais viria ao mundo.

Além da história de Anna, sombra e reflexo aparecem juntos no conto As Aventuras da Noite de São Silvestre (também conhecido como O Reflexo Perdido), de E. T. A. Hoffmann. No conto, Erasmus Spikher, que entregou o seu reflexo a uma cortesã que nada mais era do que um instrumento do próprio diabo, é repudiado pela família e pela sociedade. Passa a vagar em busca de um reflexo e se encontra com Peter Schlemihl. No conto, pois, o homem sem reflexo e o homem sem sombra se encontram. Ambos têm algo em comum: perderam parte das suas personalidades, deixaram-se dividir pelo diabo (aquele que divide).

Schlemihl trocou a sombra por riqueza, pela promessa de uma vida confortável; Anna trocou a sombra pelo reflexo narcisista e egocentrista. Die Frau Ohne Schatten segue na mesma linha: oferecendo um espelho à Tintureira (ela não possuía um), e fazendo-a imergir em um mundo de ilusões, com direito até a um amante fantasmagórico, que nada mais é que a projeção dos seus próprios desejos, a Ama propõe à Tintureira que venda a sua sombra por essa imagem ilusória de luxo e beleza, que ela pôde experimentar por breves instantes. A Tintureira aceita na hora: “pela imagem desse espelho, eu darei minha alma, minha vida”.

Como a Anna do poema, a Tintureira também ouve os murmúrios dos filhos que ainda não nasceram. Anna teria sete filhos, ouve sete vezes o murmúrio vindo do moinho; a Tintureira tem cinco filhos destinados a ela, e os ouve por meio dos cinco peixes que estavam em uma panela.

A manipulação da Ama distancia ainda mais o casal de tintureiros. Em um dado momento, a mulher até tenta se libertar do amante fantasmagórico, do mundo de ilusões. Chama o marido, mas Barak nada compreende, ele só entende do mundo material, a comunicação entre os dois é impossível. A situação culmina com a mulher confessando uma infidelidade que, na realidade, não cometeu, e Barak, até então sempre bom e paciente, não vê mais a sua sombra, e chega a ameaçá-la de morte.

Reforçando o duplo na estrutura da obra, nesse meio-tempo, em uma cena musicalmente deslumbrante, o Imperador sente cheiro de humanos, percebe que a Imperatriz esteve com humanos e pensa em matá-la – mas não pode, não é capaz.

A essas alturas, a Imperatriz, com forte sentimento de culpa e profunda empatia pelos seres humanos, se arrepende da tentativa de obter a sombra da Tintureira (que estava manchada de sangue), e faz um verdadeiro discurso humanista. Na prova final, diante de Keikobad (que nunca aparece nem canta), após uma longa provação, ela se recusa a beber de uma fonte dourada que lhe traria a sombra da Tintureira e salvaria o Imperador: Ich will nicht! (Eu não quero!), brada a Imperatriz. A partir desse momento, ela ganha uma sombra, o Imperador se salva, e Barak e sua mulher se reencontram.

Mais que à fertilidade, a sombra está ligada à possibilidade de gerar frutos, de deixar marcas (ou sombras) no mundo. De forma mais abrangente, a sombra representa a condição humana: a Imperatriz adquire a sombra quando se humaniza, quando passa a entender os dramas e os sofrimentos humanos por meio de Barak e sua esposa – algo que o marido, que sabia apenas ser amante e caçador, não havia conseguido transmitir.

Além dos filhos que estão por nascer, cujas vozes são ouvidas diversas vezes durante a ópera, a figura do pai também é forte. Se Elektra, o primeiro fruto da parceria Strauss-Hofmannsthal, começa com o tema de Agamemnon, Die Frau começa com o de Keikobad. Ambos os temas são curtos e graves. Em ambas as óperas, os respectivos pais (Agamemnon e Keikobad) nunca aparecem, mas estão presentes o tempo todo, sobretudo na música, e suas respectivas filhas sempre se dirigem a eles. Além disso, Keikobad é um dos poucos personagens que têm nome na ópera – o outro é Barak, que sonha em ser pai.

É preciso lembrar ainda que, como observou Hofmannsthal em sua carta a Strauss, apesar de ser uma ópera romântica, com toda a tradição romântica, a obra é, também, fruto da sua época. Die Frau foi composta em uma época conturbada, durante a Primeira Guerra Mundial. Não é por acaso, pois, essa aspiração pela união, pela compreensão, pela humanização.

Dois mundos se conectam no palco

Eu não poderia esperar nada melhor e mais adequado do que a nova produção de David Bösch que vi em Dresden. Com os belos cenários de Patrick Bannwart, Bösch nos fez transitar entre o mundo etéreo dos espíritos e o mundo concreto de Barak e sua mulher, com as cores e substâncias tóxicas usadas pelo tintureiro. Na primeira cena, vemos o Imperador, a Imperatriz e a Ama em um ambiente não definido, sem cores, em tons de branco, com cortinas brancas e algumas projeções (algumas sombras), quase sem mobília – apenas uma cama. Em um dos momentos mais belos e tocantes da encenação, quando o falcão chega para avisar à Imperatriz que o seu tempo está acabando, e ela ouve o seu choro, não vemos um falcão: enquanto ouvimos, vindo da lateral, o belo canto de Lea-ann Dunbar, vemos penas caindo, como se fossem a materialização de lágrimas. O falcão, enorme, só aparecerá mais tarde – e é esse falcão mecânico enorme, a meu ver, o único elemento que destoa da estética da produção.

Uma espécie de elevador faz a conexão entre os dois mundos – e não por acaso, esse elevador serve, também, tanto como a casa do falcão quanto como a entrada da casa de Barak. É assim que a Imperatriz e a Ama são transportadas para o mundo dos homens. Como indicado no libreto, na casa onde vivem Barak e a esposa, à mobília doméstica se misturam os materiais da tinturaria. A casa era dividida ao meio, um ambiente duplo, com dois cômodos. Do lado esquerdo, uma máquina de lavar roupa, uma poltrona e um televisor; do lado direito, o dormitório. Logo à frente, um tonel escrito “tóxico”. Quando esse tonel é aberto, sai um pouco de fumaça. Nele entram e saem objetos como em forma de magia, mesclando a toxicidade do mundo real com a das magias da Ama. É desse tonel que saem bonecas, simbolizando os filhos ainda por vir, e é nele que a Tintureira, quando renuncia à maternidade, joga essas mesmas bonecas.

A representação dos sonhos da Tintureira, nos momentos em que ela é levada pelas ilusões da Ama, é bastante eficiente. A iluminação de Fabio Antoci transforma o ambiente. Do mesmo elevador que transportou a Imperatriz e a Ama saem homens seminus, algumas plumas, mostrando uma fantasia até meio grotesca, bem carnal – nada que, como na história de Peter Schlemihl, representasse ascensão social. Era o sonho que estava ao alcance da mente da Tintureira: um sonho impossível que parece um show que ela viu na televisão presente na casa.

No terceiro ato, quando a Imperatriz passa pela prova final, vemos um cenário sem cores, etéreo, típico do mundo dos espíritos. O ambiente, contudo, é povoado por estruturas metálicas de carrinhos vazios.

Camilla Nylund (a Imperatriz) e Evelyn Herlitzius (a Ama) sentadas, à frente de Miina-Liisa Värelä (a Tintureira), olhando-se no espelho

Um objeto que ganha destaque ao longo da representação é o par de luvas amarelas usado pela Tintureira. Elas são um importante equipamento de proteção no trabalho manual da Tintureira, são elas que a protegem das substâncias tóxicas. A Imperatriz se apossa dessas luvas (a sombra?) e as carrega até a prova final.

Os figurinos de Moana Stemberger ajudaram a contrastar a leveza do mundo dos espíritos – sobretudo da Imperatriz – com o mundo concreto do casal de tintureiros. Se o vestido da Imperatriz era leve e esvoaçante, as vestimentas de Barak e sua mulher eram feitas de tecidos mais pesados, mais rústicos.

Bösch não chega a mudar o fim da ópera – seria injusto acusá-lo disso. O encenador, contudo, não ignora o fato de que a Ama foi condenada a vagar pelo mundo dos homens. Como o querubim expulso do céu, ela vem causar divisões. É isso o que a vemos fazendo ao término da ópera. Acompanhados por bela música, os dois casais estão comemorando o lieto fine quando surge a Ama, divide as duas partes da casa e, com ela, os casais: Barak e a Imperatriz vão para um lado, o Imperador e a Tintureira, para o outro. No final, sobra somente a Ama, em um ambiente vazio, etéreo, sem cores, semelhante àquele em que a ópera começou.

Evelyn Herlitzius (a Ama), no final da ópera

Esse final fica ainda mais impactante quando se tem, como a Ama, uma intérprete do calibre da excelente mezzosoprano alemã Evelyn Herlitzius. Foi ela a maior artista sobre o palco. E isso não é pouca coisa, porque ela estava rodeada por gigantes. Além de cenicamente perfeita, impactante – ela dominou a cena –, Herlitzius sabe manejar com maestria o colorido da sua voz. Uma voz ora quente e autoritária, ora leve e sedutora, que ia mudando de cor conforme a entonação. Um canto preciso, inclusive com os escandalosos agudos com os quais Strauss presenteou a mezzosoprano no último ato. Enfrentou com perfeição um papel que abrange um largo intervalo de tessitura e que apresenta sérios desafios harmônicos. Sua Ama sabe seduzir e manipular os demais personagens – exceto o mensageiro de Keikobad, muito bem interpretado por Andreas Bauer Kanabas, sobre o qual a Ama não tem poder algum.

A Tintureira foi inspirada em Pauline, esposa de Richard Strauss. Hofmannsthal chegou mesmo a explicitar a ideia em carta para Strauss: “como modelo para uma das mulheres, podemos muito bem, com toda a discrição, tomar sua esposa”. Lotte Lehmann, que criou o papel de Tintureira, conta, em seu envolvente livro Five Operas and Richard Strauss, que Pauline era uma pessoa com inteligência ágil e língua cáustica, que se comportava como uma megera. Por maior que fosse a fama do marido, Pauline fazia questão de deixar claro que ele não passava de um camponês e que a sua música não chegava perto da de Massenet. Nada disso, no entanto, afetava Strauss, que apenas sorria. Lehmann conta que ele lhe disse que toda a admiração do mundo lhe interessava menos que um único ataque de fúria de Pauline.

Miina-Liisa Värelä faz uma Tintureira cujos nervos vão se inflamando ao longo da ópera, conforme a escrita musical de Strauss a leva para uma tessitura mais aguda. Sua personagem é interessante justamente porque não tem nada de caricato, e evolui visivelmente: ela é uma mulher normal, com as suas frustrações, que vive com um homem que é amante e provedor, mas não esboça nenhuma emoção; guiada pela Ama, ela vai externando essa insatisfação e, aí sim, vai se tornando geniosa, a sua língua fica mais afiada, e a sua potente voz, mais incisiva.

Embora claramente Barak não seja inspirado em Richard Strauss, ele reage da mesma forma aos ataques da mulher, não se abala muito, parece até sentir algum prazer com aquilo. Oleksandr Pushniak foi um ótimo Barak, tanto cênica quanto vocalmente: sensível, com voz envolvente e nada caricato. Sua postura corporal, mesmo quando não estava cantando, já transmitia essa tranquilidade desajeitada do personagem.

O Imperador tem um papel relativamente pequeno, mas são dele as linhas mais bonitas, mais líricas, mais melodiosas da ópera. Ainda soa nos meus ouvidos o maravilhoso canto do tenor americano Eric Cutler! Um timbre brilhante, poderoso; um canto legato e apaixonado, com fraseado perfeito.

Eric Cutler (o Imperador)

“A Tintureira, o Tintureiro, são, sem dúvida, os personagens mais fortes, mas não são eles que importam: seu destino está subordinado ao da Imperatriz”, escreveu Hofmannsthal a Strauss em 25 de julho de 1914. Poucos dias mais tarde, em outra carta, ele insistiu: “Eu gostaria de chamar toda a sua atenção para o personagem da Imperatriz. Ela quase não tem texto [nos dois primeiros atos] e, no entanto, é o principal personagem. (…) Ela se torna humana, esse é o pivô da peça; é ela, a mulher sem sombra, e não a outra. (…) O tempo todo brota dela uma luz espiritual (…)”.

O papel da Imperatriz é um desafio para as sopranos. No início do primeiro ato, a Imperatriz, ainda não totalmente encarnada, tem um canto mais etéreo, com belas coloraturas. É, em resumo, um canto de soprano lírico coloratura. No terceiro ato, esse canto se torna mais dramático, com direito a um expressivo melodrama – quando o canto dá lugar a um texto falado. A ótima Camilla Nylund, uma experiente Imperatriz, deixou a sua voz flutuar levemente na primeira cena, produzindo belas coloraturas, sobretudo no dia 30. Foi no terceiro ato, no entanto, no grande ato da Imperatriz, que ela mostrou por que é considerada uma das melhores cantoras da atualidade. Além de exibir um canto memorável, especialmente quando se despedia da Ama, Nylund foi dramaticamente impecável. No melodrama, seu texto falado culminou em um “Ich will nicht!” digno de um marco final de todas as provas e tentações que estava atravessando. Sua encarnação, sua humanização, pôde ser acompanhada ao longo da ópera.

Camilla Nylund (a Imperatriz)

É até desnecessário falar, mas são excelentes tanto o Coro quanto o Coro Infantil da ópera de Dresden, preparados, respectivamente, por André Kellinghaus e Claudia Sebastian-Bertsch.

Em sua última produção como maestro titular da excelente Staatskapelle de Dresden, Christian Thielemann estava em estado de graça. O maestro optou por uma leitura que valorizou os detalhes e os solos, abundantes na partitura. A grande massa orquestral foi intensa, mas delicada e transparente. Isso é essencial em uma ópera como Die Frau, na qual parte da história é contada pela orquestra, pelos temas que se sucedem, e um dos temas retrata, justamente, a transparência. É digno de destaque o impecável solo de violoncelo que introduziu a cena do Imperador, no segundo ato.

Em carta a Strauss, ao falar sobre a obra que estava nascendo, Hofmannsthal a qualificou como “o rico presente de uma hora inspirada”. Foi isso o que a Semperoper Dresden apresentou, foi esse presente que entregou ao seu público, foi dessa forma inspirada que Thielemann se despediu desse fosso histórico. Foram três horas de ópera inspiradas e inesquecíveis.

Agora é torcer para que essa nova produção seja lançada em vídeo!


Fotos: © Semperoper Dresden/Ludwig Olah.

Um comentário

  1. Die Frau é sem dúvida a mais estranha obra de Strauss. Música envolvente, sempre me catapulta para um mundo escapista. Se pensarmos que a obra foi escrita em meio à Guerra que acabaria com a pujança dos Habsburgos, e com eles a força de Viena enquanto reino musical, é para mim óbvio que ele preferiu fugir aos horrores da guerra, ao contrário da escola de Viena, que buscou a sordidez do mundo austríaco destroçado.
    Aliás, Strauss faria o mesmo com seu testamento musical, Capriccio. Numa Alemanha se destroçando, vemos uma plácida reunião de nobres à beira do abismo da revolução francesa.
    Voltando à Música, Fabiana Crepaldi realça muito bem a importância da música do imperador no contexto da ópera. Quando o Kaiser solta seu “Falke, mein Falke”, toda a obra ganha uma cintilância difícil de ser atingida no mundo da ópera. Se não tivesse escrito tantas outras, Strauss já mereceria ser o maior compositor alemão do gênero apenas por esta mulher sem sombra.
    É difícil colocar em palavras o rico material sonoro da obra, alternando entre o mundo dos espíritos (que mais me atrai) e a dura realidade da terra. Não conheço o elenco, mas concordo integralmente que o papel da ama é o mais rico enquanto material sonoro tanto quanto em suas ambivalências. Afinal, ela é a ama ou a patroa?
    Fico muito feliz que neste início de Século XXI a obra de Richard Strauss esteja em pleno processo de resgate. Passado o rancor dos que o consideraram nazista (não era MESMO), aos poucos a beleza de seu trabalho vai inundando os palcos europeus, e por vezes chega até ao Brasil.
    Como Fabiana ressalta, trazer uma montagem completa desta ópera para cá parece improvável a curto prazo.
    Mas eu, que fiquei fascinado com “Ariadne auf Naxos” logo que a conheci, e achava que nunca a veria aqui, já tive chance de vê-la 2 vezes. Milagres acontecem.

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