Direção musical frágil prejudica o belo “Fidelio” do Theatro São Pedro-SP

Encenação de William Pereira é o ponto alto da produção da ópera de Beethoven.

Fidelio, 1805 (versão final de 1814)
Ópera em dois atos e três cenas

Música: Ludwig van Beethoven (1770-1827)
Libreto: Joseph Sonnleithner (1766-1835), com revisões de Stephan von Breuning (1774-1827) e Georg Friedrich Treitschke (1776-1842)
Base do libreto: Léonore ou L’Amour Conjugal, ópera de Pierre Gaveaux (1760-1825), sobre libreto de Jean-Nicolas Bouilly (1763-1842)

Theatro São Pedro-SP

25 de abril de 2025

Direção musical: Cláudio Cruz
Regência no dia 25/04: Gesiel Vilarubia
Preparador coral: Bruno Costa
Preparador vocal: Fábio Bezuti

Direção cênica: William Pereira
Cenografia: Giorgia Massetani
Figurinos: Antônio Rabàdan
Iluminação: Wagner Pinto
Dramaturgia: Ligiana Costa
Visagismo: Malonna
Direção de imagem: Vinícius Berger

Elenco:
Leonore / Fidelio: Eiko Senda, soprano
Florestan: Eric Herreto, tenor
Rocco: Gustavo Lassen, baixo
Don Pizarro: Licio Bruno, baixo-barítono
Marzelline: Lina Mendes, soprano
Jaquino: Mar Oliveira, tenor
Don Fernando: Andrey Mira, baixo
Primeiro prisioneiro: Wilian Manoel, tenor
Segundo prisioneiro: Ádamo Oliveira, baixo

Orquestra do Theatro São Pedro

Ópera em dois atos e três cenas sobre um libreto de Joseph von Sonnleithner (posteriormente revisado por Stephan von Breuning e Georg Friedrich Treitschke), com base em Léonore ou L’Amour Conjugal (ópera de Pierre Gaveaux, sobre libreto de Jean-Nicolas Bouilly), Fidelio é o único drama lírico composto por um dos maiores gênios da história da música, Ludwig van Beethoven. O compositor não se sentia atraído pela ópera, que ele considerava um gênero contaminado pelas convenções tão caras ao público e à crítica. Além disso, os temas utilizados pelos compositores de ópera da época (dramas históricos, histórias fantásticas, comédias, etc.) também não lhe enchiam os olhos.

Assim, não surpreende que o único tema que inspirou Beethoven a compor uma ópera tenha sido o mesmo do libreto já existente de Bouilly, recheado por alguns dos ideais mais representativos da Revolução Francesa. Em Fidelio, os temas principais são a crítica política e a defesa ferrenha da liberdade. Com um argumento tão próximo das suas convicções pessoais, Beethoven mergulhou de cabeça na composição. Inicialmente deu à obra o título de Leonore, e concebeu-a em três atos. Em 20 de novembro de 1805, no Theater auf der Wieden, de Viena, a estreia mundial não logrou êxito. No ano seguinte, condensada para dois atos, a ópera foi reapresentada em março, não alcançando uma vez mais a recepção esperada pelo compositor.

Finalmente, após um longo período, Beethoven voltou à partitura para uma última e definitiva revisão. A ópera, agora intitulada Fidelio, foi novamente levada à cena lírica em 23 de maio de 1814, regida pelo próprio compositor, no também vienense Kärnthnerthor Theater. Desta vez, a recepção foi calorosa. Em 1822, com o libreto alemão original traduzido para o francês, a estreia parisiense obteve um êxito fantástico, e Fidelio entrou de maneira definitiva para o repertório internacional.

O enredo é relativamente simples: Florestan encontra-se injustamente preso nos calabouços de uma prisão espanhola, comandada por Don Pizarro. Quando a ópera começa, vemos que Leonore, esposa de Florestan, conseguiu entrar para o serviço da prisão disfarçada de homem, sob o nome Fidelio. Ali, ela trabalha auxiliando Rocco, o carcereiro, um homem de bom coração cuja filha, Marzellline, acaba se apaixonando por Fidelio. A trama se desenvolve até o final feliz, quando o ministro Don Fernando, representando o rei, chega à prisão e, ciente de tudo, liberta Florestan e condena Pizarro.

Linda Mendes (Marzelline), Eiko Senda (Leonore/Fidelio) e Gustavo Lassen (Rocco)

Para a montagem que o Theatro São Pedro, de São Paulo, acaba de apresentar, o encenador William Pereira propôs (com dramaturgismo de Ligiana Costa) uma leitura atemporal, no ambiente de uma prisão política que poderia se localizar em qualquer lugar. Durante a abertura e a introdução ao segundo ato, foram exibidos vídeos (de Vinícius Berger) que sugerem que Leonore e Florestan são, além de um casal, também jornalistas investigativos. A conclusão óbvia é que Florestan foi preso porque estava investigando os crimes de algum “poderoso” – no caso, claro, Don Pizarro.

Essa interpretação, totalmente plausível, traz significado para a prisão injusta, cujo motivo não é explicitado no libreto original (no qual há apenas uma sugestão vaga de que o motivo seria político). Em cena, William Pereira constrói uma movimentação fluente, que contribui para a evolução dramática do espetáculo.

Para a ambientação, Giorgia Massetani criou ótimos cenários, totalmente em harmonia com a proposta do encenador e que foram valorizados ainda mais pela boa luz de Wagner Pinto. Os figurinos de Antônio Rabàdan, também em comunhão com a releitura cênica, eram simples e certeiros.

Em um momento histórico no qual não faltam exemplos de tiranos pelo mundo (alguns mais e outros menos explícitos), William Pereira, da maneira como concebeu a sua encenação de Fidelio, não apenas reforçou a injustiça da prisão de Florestan, como também escancarou os riscos que a tirania representa para as liberdades individuais. Não deve ter sido por acaso que, na mesma semana em que a ópera esteve em cartaz, e em uma clara afronta à independência entre os poderes, uma juíza foi presa pelo FBI nos Estados Unidos por, supostamente, “obstruir agentes de imigração”.

É preciso mencionar que a encenação promoveu pequenos cortes e algumas adaptações nos recitativos, estas para adequar o texto à proposta cênica – a meu ver, sem qualquer impacto negativo na interpretação da obra, uma vez que se tratam de recitativos falados, sem qualquer acompanhamento musical.

Restou estranha apenas a mescla dos recitativos falados em português em meio ao canto em alemão. Tal opção, aliás, sempre que é utilizada em nossos teatros, acaba expondo mais a falta de traquejo da maioria dos nossos cantores líricos enquanto atores. Quando é utilizado o idioma original das obras, ao contrário, essa falta de traquejo quase sempre incomoda menos, ou até mesmo passa despercebida.

Ao centro, na frente dos demais, Licio Bruno (Don Pizarro)

Com tal encenação qualificada, foi uma grande pena perceber que a direção musical do espetáculo tenha se destacado pela sua fragilidade. Na récita do dia 25 de abril, a regência coube a Gesiel Vilarubia, mas o diretor musical da produção foi o experiente Cláudio Cruz, que conduziu as demais récitas.

Cruz não regeu no dia 25 porque tinha mais o que fazer: estava na Sala São Paulo regendo um concerto da Orquestra Jovem do Estado. Não sei dizer quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha, mas certo é que a complexidade de uma produção de ópera deveria receber a atenção total do seu diretor musical.

Sob a condução de Vilarubia (cujo nome sequer é mencionado no programa de sala), a Orquestra do Theatro São Pedro ofereceu na maior parte da récita uma interpretação estilisticamente pobre, por vezes com sonoridade grosseira e volume excessivo. Nos metais, a afinação oscilou algumas vezes. Relatos confiáveis garantem que os mesmos problemas ocorreram sob a regência de Cláudio Cruz.

A fragilidade da direção musical pareceu atingir também em alguma medida os solistas, pois a impressão por eles causada foi a de que cada um seguiu um estilo próprio de interpretação, sem uma linha homogênea – o que é mais estranho ainda em uma produção que contou com um preparador vocal, Fábio Bezuti. Feita essa ressalva, de modo geral os solistas se apresentaram bem, ainda que sem atingir grandes performances, e, pelos motivos já citados, destacaram- mais nas árias, e menos nos números de conjunto.

A soprano Lina Mendes foi uma Marzelline correta e lírica, da mesma forma que o Jaquino do tenor Mar Oliveira. O baixo Gustavo Lassen, se não chegou a empolgar, interpretou Rocco com segurança. Nas partes faladas, no entanto, sua recitação aparentou certa artificialidade.

A soprano Eiko Senda ofereceu uma récita consistente como Leonore/Fidelio, ainda que, por vezes, a sua recitação também aparentasse ser um pouco artificial. A interpretação intensa da sua ária no primeiro ato, Komm, Hoffnung, merece menção. Já Eric Herrero cantou Florestan no limite das suas possibilidades, já que a parte requer um Heldentenor. Tendo isso em consideração, o artista ofereceu uma ótima récita.

Era, no entanto, quando o baixo-barítono Licio Bruno (o vilão Don Pizarro)entrava em cena que o espetáculo crescia. Já louvei mais de uma vez as qualidades de ator de Bruno e, uma vez mais, tais predicados fizeram a diferença. Como já havia acontecido no ano passado na produção de Rusalka, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, sua simples presença já exalava autoridade. Sua ária do primeiro ato, Ha, welch ein Augenblick, acompanhada pelo coro, foi muito bem defendida. Por falar nele, o coro reunido para a ocasião, preparado por Bruno Costa, apresentou-se bem vocalmente, apesar de alguns desencontros.

Completaram o elenco o baixo Andrey Mira (que interpretou com segurança a pequena – e relevante – parte de Don Fernando), o tenor Wilian Manoel (primeiro prisioneiro) e o baixo Ádamo Oliveira (segundo prisioneiro).

Acima de todos, Andrey Mira (Don Fernando); ao centro, à frente, Eric Herrero (Florestan) e Eiko Senda (Leonore)

Fotos: Íris Zanetti (na foto principal, Eiko Senda e Eric Herrero).

Um comentário

  1. Conforme afirma o autor, o que diminuiu a apresentação foi a qualidade da orquestra. Gosto muito deste ópera, por sua temática e valor individual das árias, conjuntos.
    Beethovem usa muito trompas e trompetes, que se saíram muito mal nas apresentações (fui 3 dias). No mais, um excelente espetáculo.

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