È carnevale!

No Metropolitan Opera, “La Traviata” com Nadine Sierra.

La Traviata (1853)
Ópera em 3 atos
Música: Giuseppe Verdi (1813-1901)
Libreto: Francesco Maria Piave (1810-1876)
The Metropolitan Opera, 12 de novembro de 2022
Direção musical: Daniele Callegari
Direção cênica: Michael Mayer
Violetta Valéry: Nadine Sierra, soprano
Alfredo Germont: Stephen Costello, tenor
Giorgio Germont: Luca Salsi, barítono
The Metropolitan Opera Orchestra

Sempre que penso em La Traviata no Metropolitan, me vem à mente a bela e inteligente produção de Willy Decker, de extremo bom gosto, com o seu tom azulado, frio, contrastando com o sofá vermelho em que Violetta vive os seus amores e as suas dores, e, claro, com o emblemático relógio: enorme, ameaçador, que não cessa de lembrar à protagonista que as suas horas estão contadas. Foi nesse cenário que vi, há praticamente uma década, as brilhantes atuações de Natalie Dessay, Diana Damrau, Mathew Polenzani, Plácido Domingo, Dmitri Hvorostovsky…

Em dezembro de 2018, porém, a produção de Decker deu lugar à de Michael Mayer; a inteligência e o bom gosto deram lugar a um tradicionalismo caricaturizado e até cafona. Importante diretor da Broadway, Mayer já dirigiu Rigoletto (aquela produção de 2012 do Met que transportava a trama para a Las Vegas dos anos 1960) e Marnie, em 2017, na ENO e no Met. Dessas, a única que vi ao vivo (já pela segunda vez) foi La Traviata.

Logo que entrei no teatro, na noite do dia 12 de novembro, já me deparei com a projeção de uma flor – uma camélia, obviamente – no telão que fica na frente do palco. É uma referência (de gosto duvidoso) a La Dame aux Camélias, de Alexandre Dumas Fils, obra na qual a ópera foi baseada. Durante o prelúdio, ainda com o telão tornando o palco um pouco nebuloso, Violetta se levanta da cama, aproxima-se de cada um dos personagens presentes no quarto, mas nenhum deles a vê: é, na verdade, o espírito de Violetta saindo do corpo, saindo de cena, e dando lugar ao início da ópera, em retrospectiva.

O prelúdio de La Traviata, com Nadine Sierra ao centro.

No cenário, a cama (ao centro), um piano, duas mesas e algumas cadeiras permanecem durante toda a ópera e vão ganhando diferentes funções. O piano, por exemplo, servirá de mesa de jogo no segundo ato, o que indica que tudo está sendo relembrado no quarto em que Violetta morreu. Esses elementos são bem escolhidos, uma vez que Alphonsine Plessis, ou, como era conhecida, Marie Duplessis, a mulher real na qual foram inspiradas a Marguerite de Dumas Fils e a Violetta de Verdi/Piave, era de origem camponesa e extremamente pobre, mas, uma vez em Paris como cortesã, aprendeu a ler, escrever e a tocar piano. Além disso, teve entre os seus amantes escritores e pianistas, como o próprio Dumas Fils e Franz Liszt.

Não é apenas a mobília do quarto que permanece a mesma ao longo da ópera, mas todo o cenário. O que muda são a iluminação e os figurinos. Durante o intervalo da transmissão ao vivo, que ocorreu no dia 05 de novembro, a cenógrafa Christine Jones e a figurinista Susan Hilferty explicaram que a ambientação se baseia nas quatro estações. Durante o prelúdio, quando as cortinas se abrem com Violetta morta, temos o inverno (frio, escuro); no primeiro ato, colorido, a primavera, o amor florescendo; na primeira parte do segundo ato, com Violetta e Alfredo na casa de campo, o verão; na segunda parte, na festa, o outono e uma dança macabra; no terceiro ato, com Violetta debilitada, próxima da morte, retorna o inverno com o qual a ópera começou. É bastante feliz a ligação feita, através desse ciclo, entre o prelúdio e o terceiro ato, uma vez que essa ligação também ocorre musicalmente.

A ideia é melhor que o resultado visual, que desde o início parece ecoar a frase que Annina dirá no terceiro ato: “è carnevale”! Cores, ornamentos excessivos, luzes, algo (neve, pétalas) que parece confete caindo… todo o cenário faz com que nos sintamos em pleno desfile de carnaval – e carnaval brasileiro.

A direção cênica também nos traz algumas coisas interessantes. Dois exemplos: no primeiro ato, quando Violetta vai dar a camélia a Alfredo, ela brinca e, enquanto canta, oferece a flor e a tira. No final da primeira cena do segundo ato, após ler o bilhete de Violetta, fica bem marcado que Alfredo só fala “Padre mio!” porque viu o pai, após o velho Germont ter colocado a mão em seu ombro. Por outro lado, Violetta se exibindo, em meio aos convidados da festa praticamente estáticos, em semicírculo, no início da ópera, foi uma ideia infeliz e artificial.

Stephen Costello

Como Alfredo Germont, o tenor americano Stephen Costello, com o seu belo timbre, cumpriu o papel corretamente, sem, no entanto, empolgar cênica ou musicalmente. É verdade que Alfredo é um papel ingrato para o tenor, uma espécie de jovem mimado, que vive sob o reinado das paixões. Também é verdade que, em uma semana, entre o vídeo transmitido ao vivo e a récita do dia 12 de novembro, o desempenho de Costello cresceu visivelmente, bem como a sua interação com a Violetta de Nadine Sierra. Ainda lhe faltou, contudo, certa naturalidade para deixar a sua interpretação mais convincente.

Luca Salsi e Nadine Sierra no segundo ato de La Traviata

Luca Salsi, ótimo barítono italiano, foi um refinado Giorgio Germont, bem no espírito do personagem criado por Dumas e seguido por Verdi. Seu “Madamigella Valéry?” foi firme, seco, sem cair na tentação de chegar de forma excessivamente agressiva, mas cantando entre os dentes “Sì, dell’incauto, che a ruina corre,/ Ammaliato da voi”. Ficou clara a evolução que o personagem vai sofrendo ao longo do diálogo com Violetta. Salsi salientou essa mudança de tom logo após descobrir que Violetta estava vendendo todos os seus bens para sustentar a vida com Alfredo. A partir desse ponto, o timbre do barítono se tornou mais macio, e pianos e nuances começaram a fazer parte do seu canto.

Em Dumas, em vez de Giorgio Germont, temos M. Duval, que é um homem medíocre, sem força e coragem para enfrentar a sociedade em que vive. Dumas o descreve como justo, terno com Marguerite e sensato, praticamente o isentando de culpa. Em princípio arredio, Duval, após conversar com Marguerite, se deixa convencer pela sinceridade e pelas boas intensões da ex-cortesã. Ele lhe explica, porém, que, para a sociedade, ela sempre será uma cortesã, seu passado nunca será esquecido, ela e Armand (o Alfredo de Dumas) nunca serão aceitos, e a situação se tornará insustentável. Além disso, ele tem uma filha “pura como um anjo” — bem diferente, pois, da maculada Marguerite! —, cujo noivado estará ameaçado caso o seu irmão continue a viver com uma cortesã. Na ópera, é em “Pura siccome un angelo” que Germont explica a Violetta sobre a situação da filha. Com um belo piano, Salsi salientou as rosas do amor (Le rose dell’amor), as quais, segundo Germont, cabia à Violetta impedir que fossem transformadas em espinho. Na visão de Germont, pois, o amor puro e verdadeiro era esse entre a filha e o noivo, sujeito a uma condicionante externa, e não o amor incondicional existente entre o filho e a cortesã. Foi o que Salsi conseguiu transmitir com o seu canto.

Típica ópera de soprano, é de uma boa Violetta que depende o sucesso de La Traviata. E Nadine Sierra tem importantes atributos que a qualificam para o papel. Dona de uma voz poderosa, perfeitamente audível em um teatro do tamanho do Met, em momento algum encoberta, com peso nos médios e agudos estratosféricos, brilhantes e seguros, ela se adequa aos três atos, às três fases distintas da vida de Violetta – coisa que nem sempre ocorre, mesmo com grandes intérpretes. Além disso, desenvolveu uma técnica de altíssimo nível, é musicalmente consistente e tem ótima dicção.

Logo no início, já no famoso brindisi, Nadine Sierra pôs em ação o seu belo fraseado, com riqueza dinâmica e legato, mas ao término dessa célebre passagem, a diva segurou demais o agudo, e terminou depois dos outros. Fosse isso um mero acidente, nem seria digno de comentário. O problema é que não ocorreu apenas no dia 12, mas também pôde ser observado no vídeo do dia 05, e se repetiu em todas as outras situações de conjunto. Não me parece razoável supor que seja um problema musical, de tempo, já que Sierra tem dado provas de sua competência nesse campo. Coisa de diva deslumbrada com o próprio agudo… Uma pena.

Doente, em meio à festa, Violetta não se sente bem e se retira. É um ponto em que é necessária certa demonstração de fraqueza, de fragilidade – coisa que, dirigida por Mayer, Sierra não conseguiu fazer. Rindo, rodopiando, foi uma Violetta faceira e totalmente saudável durante todo o primeiro ato.

Musicalmente, no entanto, não há do que reclamar. Em seu dueto com Alfredo (Un dì felice, eterea), não repetiu a mesma melodia do mesmo jeito, foi rica musicalmente, nos moldes da interpretação de Mariella Devia, cantora que, segundo Sierra declarou no intervalo da transmissão ao vivo, foi a sua inspiração. O mesmo vale para a sua grande cena, com a qual é encerrado o primeiro ato, onde, pela primeira vez, Violetta se sente amada por um homem jovem e que se preocupa com ela, com a sua saúde, ao contrário dos seus “patrocinadores”, que não eram seus amantes por amor a ela, mas por amor a si próprios. Em Dumas, Marguerite diz a Armand: “Você me ama por mim e não por você, enquanto os outros sempre me amaram apenas por eles mesmos”. Em Verdi, em um solilóquio durante o recitativo, Violetta exalta a alegria que não conhecia, a de ser amada, amando. Nesse recitativo, sobrou dramaticidade, e faltou sensibilidade à direção cênica (que fez Sierra atirar, com raiva, uma almofada!), falha mais que compensada no andante (Ah, fors’ è lui) e na cabaletta (Sempre libera), que foram magistrais. O andante, com um marcante legato, fraseado lapidado e elegante, com as suas notas sustentadas, algumas até um pouco prolongadas – quando Violetta diz que talvez seja ele o homem com que a sua alma sempre sonhou –, contrastou com o saboroso toque bel cantista da cabaletta, com todos os agudos a que temos direito e que Verdi não escreveu, inclusive o famoso Mi bemol final, sublinhando uma frivolidade quase histérica, quando a heroína renega o amor e diz que quer ser sempre livre.

A partir do segundo ato, Sierra passou a empregar um estilo mais verista, que funcionou bem. O seu confronto com o Giorgio Germont de Salsi foi um dos grandes momentos da ópera, com perfeita sincronia entre os artistas. Faltou apenas, tanto a Sierra quanto à regência de Callegari, certa delicadeza, certa sensibilidade, na pungente “Dite alla giovine”, quando Violetta diz que vai se sacrificar pela jovem tão bela e pura. Não é que Sierra a tenha cantado sem sentimento, o problema foi que, com um andamento acelerado, sem fazer piano, sem aquele canto indicando resignação, a entrega, quase que uma derrota, soou como uma valsa indiferente, como se aquilo não significasse que ela estava sacrificando a sua vida.

Após a partida de Germont, a Violetta de Sierra foi pura emoção. Não me lembro de ter visto um “Amami, Alfredo” como o dela, nunca vi uma Violetta se despedir do amado de forma tão verdadeira, tão sofrida. Além da emoção, da interpretação, da voz firme, afinada, com os agudos pungentes e irresistíveis, todas as sílabas puderam ser ouvidas e distinguidas, o que é raro.

Em trecho transcrito no incontornável artigo The Violettas of Patti, Muzio and Callas: Style, Interpretation and the Question of Legacy, de Magnus Tessing Schneider, a soprano Luisa Tetrazzini (1871-1941) diz que, para sugerir a exaustão física e a proximidade da morte, o último ato da ópera requer o uso da voz branca, sem o apoio suficiente para dar uma qualidade vital ao canto. Isso foi, para mim, muito marcante na interpretação de Nadine Sierra, e seu Addio del passato foi comovente. Persistindo em sua Traviata verista, Sierra empregou, neste ato, uma respiração ofegante, bem construída, de doente terminal de tuberculose. Esse recurso, no entanto, funcionou muito melhor no vídeo, quando captado pelo microfone, que ao vivo, no imenso Met. Enquanto assistia, lá do dress circle, fiquei me perguntando se, caso não tivesse visto o vídeo, eu saberia o que era aquele uivo distante, fantasmagórico.

Final de La Traviata.

Em resumo, Nadine Sierra é uma grande cantora, tem uma voz aveludada, com consistência e projeção em todas as regiões que utilizou em La Traviata, do grave aos agudos, às coloraturas, e tem técnica sólida. Concorde-se ou não com a Violetta que criou, não se pode negar: ela construiu uma personagem com pleno domínio musical, foi atenta aos mínimos detalhes, e a sua interpretação foi bastante pessoal e consistente. Carregou no bel canto no primeiro ato, e no verismo nos dois atos seguintes. Foi uma Violetta agitada, mais jovial e dona da situação que frágil, debilitada. Com alguns exageros, certo exibicionismo, às vezes parecia plenamente de acordo com a produção carnavalesca. Faltou um pouco de profundidade? Parece, mas foi uma Violetta de tirar o fôlego, e era simplesmente impossível desviar a atenção dela um só minuto.

A sensação de agitação constante não veio somente de Sierra, mas também do fosso: foi uma escolha do maestro Daniele Callegari, que dirigiu a The Metropolitan Opera Orchestra, o que não quer dizer que não tenha havido momentos de delicadeza, de sutileza, sobretudo no terceiro ato. Além disso, Callegari mostrou-se um maestro atento aos cantores, deu a Sierra e a Salsi a liberdade necessária em suas árias.

Como escreveu Julian Budden, o prelúdio é um retrato musical da heroína, e se inicia apresentando-a em seu estado de maior fragilidade física – não à toa, é revisitado no terceiro ato. A essas primeiras frases, se segue a melodia que a apresenta em todo o seu esplendor. Por isso é fundamental que o início seja pianississimo (ppp), como indicado na partitura, seguido de um crescendo. Não foi com esse pianíssimo tão verdiano, contudo, que a Orquestra do Met e Callegari iniciaram a ópera. É verdade que o Met é um teatro grande, e que na plateia o som da orquestra é um tanto abafado, mas, mesmo assim, era perfeitamente viável respeitar a indicação da partitura: já ouvi esse pianíssimo em outras óperas, inclusive em passadas Traviatas. Desde o prelúdio, portanto, a fragilidade de Violetta esteve ausente.

Para encerrar, fazendo um balanço geral, foi uma grande noite, sobretudo graças ao brilho de Nadine Sierra e da envolvente orquestra do Met.  

Fotos: Marty Sohl / Met Opera.

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