Imaginemos um ex-estudante de Medicina frustrado, que abandonou o curso por ter aversão extrema às aulas de anatomia – há quem afirme que ele chegou a se graduar, mas a documentação do período é escassa. Traumatizado com o que havia visto, o sujeito, que frequentava os círculos musicais da cidade, convence a família a bancar os seus estudos em Música, embora o pai insistisse que ele deveria tentar uma alternativa mais rentável financeiramente, como o Direito. Ainda no conservatório, nosso personagem assistiu a uma peça de teatro em um idioma que ele mal compreendia e, mesmo assim, se apaixonou perdidamente pela atriz principal, passando a cortejá-la por meio de cartas – afinal, eles estavam na primeira metade do século XIX e, naqueles tempos, ninguém cogitava deixar coraçõezinhos ou outras manifestações de apreço mais fogosas nas fotografias alheias. A moça, assustada com tal interesse (como era de se esperar), se recusou a ser apresentada formalmente ao aspirante a compositor. O que fazer em uma situação dessas? Compor uma sinfonia, é claro! Mas não uma sinfonia qualquer…

Hector Berlioz (1803-1869), compositor francês, viu pela primeira vez Harriet Smithson (1800-1854), atriz irlandesa, em 1827. Ela se apresentava em peças de Shakespeare encenadas na capital francesa, com grande sucesso de público: Harriet era o nome do momento. Inspirado pela paixão avassaladora, Berlioz compôs a sua Sinfonia Fantástica em 1830 após mudar de estratégia: como as tais cartas cortejadoras não estavam surtindo qualquer efeito, melhor apelar para a música. Em apenas dois meses a obra já estava pronta. Berlioz aproveitou alguns materiais que havia escrito nos anos anteriores, porém fez uso de uma imaginativa descrição para que os ouvintes – e, principalmente, Harriet – entendessem quais mensagens subliminares a obra trazia. Mensagens um tanto quanto fantásticas.
Trata-se de uma obra semiautobiográfica em cinco movimentos, com carregado conteúdo emocional, uma característica típica do Romantismo francês que sucedeu o sisudo período do Racionalismo. O primeiro movimento se chama “Devaneios, Paixões”, no qual o herói (o próprio Berlioz, denominado apenas “um artista” na descrição) visualiza pela primeira vez uma mulher que “reúne todos os atributos de um ser ideal com a qual a sua imaginação sempre sonhou e enlouquece de amor por ela”. Essa mulher ideal está associada a um motivo musical, uma ideia fixa, que há de se repetir ao longo da obra. O segundo movimento, “Um baile”, é uma valsa que sugere um encontro entre o artista e a sua musa. Ele, somente por revê-la (ou achar que a viu entre os casais que dançavam), sente-se desconcertado. O terceiro movimento é uma “Cena no Campo”: o herói foi buscar a paz no ambiente pastoril, mas não consegue parar de pensar em sua musa, mais uma vez retratada pela ideia fixa.
No quarto movimento, a coisa esquenta: é a “Marcha para o Cadafalso”. Tirem as crianças da sala, porque o artista, sentindo-se rejeitado pela mulher, tenta se matar, e para isso se intoxica com uma forte dose de ópio. Em vez de morrer, ele passa a alucinar: crê que, em meio aos efeitos do entorpecente, matou a sua musa e, por conta disso, está sendo levado ao local em que a sua própria execução ocorrerá à moda francesa, ou seja, por meio de uma guilhotina. Ele assiste a si mesmo sendo conduzido até o cadafalso e, no final do movimento, a ideia fixa ressurge, como se fosse a derradeira lembrança dessa paixão avassaladora, para logo ser interrompida pela lâmina fatal. Com o artista já sem cabeça, vem o quinto e último movimento, “Sonho de uma noite de Sabá”: fantasmas, magos, bruxas, monstros de todos os gêneros se reúnem para o funeral do artista. A ideia fixa surge novamente, desta vez de forma grotesca: seria a musa comparecendo ao Sabá? Sim, é ela! A musa se reúne às criaturas do mal em uma espécie de orgia e celebra com as bruxas o destino final do artista. E é nesse clima macabro que a sinfonia termina de forma estrondosa.
O leitor mais atento pode se perguntar: será que essa doidice convenceu a moça? Não, porque ela simplesmente não compareceu ao concerto! O emocionado Berlioz, em um misto de indignação e conformismo, concluiu que estava perdendo o seu tempo e, após alguns meses, entabulou um noivado com outra moça, uma pianista. Para surpresa de zero pessoas, em 1832 o relacionamento desandou, e Berlioz organizou uma nova apresentação da Sinfonia Fantástica, seguida por, pasmem, mais uma nova sinfonia, chamada “Lélio” (a qual caiu no esquecimento com o passar dos anos), que também tinha um enredo de fundo em homenagem a ela: Harriet Smithson. Em um “plot twist” digno das melhores séries dramáticas, todavia, no tal evento de 1832 a irlandesa finalmente compareceu. Ela já não era mais tão festejada nos palcos parisienses, mas ainda era uma celebridade.

Após o concerto, Smithson escreveu uma carta para Berlioz dando-lhe os parabéns pelas belíssimas composições – ou seja, como diriam os jovens de hoje, ela curtiu. Harriet e Hector finalmente marcaram um encontro e o resto é história. Foram ao todo onze anos de união, que resultou em um filho. Ainda que o casal tenha se separado, Berlioz permaneceu sustentando financeiramente Harriet enquanto ela viveu, e ambos estão sepultados no mesmo jazigo em Montmartre. A Sinfonia Fantástica, legado mais significativo desta união, permanece firme e forte no repertório sinfônico até os dias de hoje.
A obra, em que pese o fato de ter sido estreada por uma orquestra selecionada pessoalmente pelo compositor em um teatro que ele conhecia como poucos (o do Conservatório em que estudara), gerou certa indisposição inicial por conta dos desafios técnicos a serem encarados pelos músicos. Ainda assim, foi bem recebida pelo público e pela crítica (com notáveis exceções, como certo escritor que disse que por conta dessa “abominação” Berlioz deveria “sofrer no purgatório”). Trata-se de um desafio para qualquer grande orquestra. Será a primeira vez que a Orquestra Sinfônica do Espírito Santo – OSES irá apresentar a partitura. Em destaque, o uso de um significativo número de instrumentos, como sinos tubulares, duas harpas, duas tubas, dois jogos de tímpanos (com quatro executantes).
Vale dizer que na presente temporada de 2025 a Orquestra tem apresentado um desempenho superior ao da temporada passada, o qual já havia sido bastante satisfatório. Notamos que neste ano as cordas finalmente alcançaram um padrão mais homogêneo e uma sonoridade mais volumosa, que faz frente aos demais naipes da Sinfônica (ressaltando que os violoncelos e os contrabaixos já haviam atingido um nível elevadíssimo de qualidade ano passado). Foram mantidas as virtudes dos demais setores: as madeiras continuam se destacando pela bela sonoridade e pelo virtuosismo, os metais e a percussão têm se comportado com exemplar profissionalismo – não há o exagero de certas orquestras que pesam demais a mão na medida desses instrumentos, a ponto de abafar o som dos demais componentes.
Sem desmerecer o trabalho árduo desenvolvido pelo regente titular Helder Trefzger e pelos instrumentistas ao longo de numerosos ensaios, também é fato que a acústica do Teatro Universitário é bem mais amigável para uma orquestra do que a do Sesc Glória. Assim, as expectativas para os concertos que ocorrerão nos dias 09 e 10 de abril são bastante positivas.
Haverá ainda, antes da Sinfonia, a apresentação de uma obra contemporânea: Invenções brasileiras nº 1, para trombone baixo e orquestra, da compositora Juliana Ripke (nascida em 1988). A peça, em dois movimentos, é dedicada ao solista da noite, o trombonista afro-americano Darrin C. Milling, e traz elementos da música brasileira mesclados a manifestações típicas da cultura dos Estados Unidos, como o Hip Hop e o Jazz. Ambas as obras serão regidas por Mariana Menezes, que já regeu diversas orquestras de renome como a OSESP, a Sinfônica do Municipal de São Paulo, a Filarmônica de Goiás e a Sinfônica Brasileira, entre outras.
PROGRAMA
Orquestra Sinfônica do Espírito Santo – OSES
Mariana Menezes, regência
Darrin C. Milling, trombone baixo
Juliana Ripke
Invenções brasileiras nº 1, para trombone baixo e orquestra
I. Fusion
II. Revoada
Hector Berlioz
Sinfonia Fantástica, Op. 14
I. Rêveries, Passions (Devaneios, Paixões): Largo – Allegro agitato e appassionato assai – Religiosamente
II. Un bal (Um baile): Valse. Allegro non troppo
III. Scène aux champs (Cena no campo): Adagio
IV. Marche au supplice (Marcha para o Cadafalso): Allegretto non troppo
V. Songe d’une nuit de sabbat (Sonho de uma noite de Sabá): Larghetto – Allegro
SERVIÇO
Quando: 09 e 10 de abril, às 20h
Onde: Teatro Universitário da UFES (Avenida Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras, Vitória – ES)
Ingressos: https://www.oses.art.br/
Foto: Erika Piskac.

Colaborador do site Movimento.com e de A Gazeta. Frequentador assíduo de espetáculos de música clássica e ópera há mais de 20 anos. Graduado em Odontologia e Direito. Delegado de polícia e pai de gêmeos.