“1º Encontro de Ópera Brasileira”: um encontro com futuro

Com o lema “passado, presente, futuro”, o Encontro aconteceu nos dias 27 e 28 de setembro em Araras.

Neste ano de 2024, a ópera brasileira ganhou um novo e importante espaço de divulgação e discussão: o Encontro de Ópera Brasileira, cuja primeira edição foi realizada nos dias 27 e 28 de setembro, no Teatro Estadual de Araras, no interior paulista. O Encontro, sob o mote “passado, presente, futuro”, teve início na noite de sexta-feira com a encenação da ópera A Noite de São João, de Elias Álvares Lobo. O sábado foi marcado por discussão a respeito das óperas do passado a serem resgatadas, e sobre o presente e o futuro das criações operísticas brasileiras. À noite, o evento foi encerrado com um recital que trouxe trechos de obras contemporâneas, contando com a presença, na plateia, de alguns dos compositores e libretistas dessas obras.

Participantes do 1º Encontro de Ópera Brasileira: presente, passado, futuro

Antes mesmo do início do Encontro, já era possível sentir o entusiasmo dos participantes. Afinal de contas, quem já participou desse tipo de evento sabe que, além dos debates e apresentações, a interação e a aproximação das pessoas do setor são sempre frutíferas. Além disso, focar na ópera brasileira é focar na nossa história, na nossa cultura e investir no nosso futuro.

É preciso reconhecer que, ao sediar e produzir o evento, a Associação Paulista dos Amigos da Arte (APAA), gestora do Teatro Estadual de Araras, demonstrou interesse na cultura e na ópera brasileiras. A APAA se fez presente no evento, ainda, por meio das presenças de Dyra Oliveira, a incansável diretora técnica cultural, e do diretor administrativo financeiro José Carlos Coelho Niero. É animador ver como, por meio de organizações sociais como a APAA, a Secretaria de Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo, sob a liderança da Secretária Marilia Marton, tem apoiado relevantes projetos culturais.

Abertura: A Noite de São João 

É difícil imaginar uma obra mais adequada para a abertura desse Primeiro Encontro que A Noite de São João, ópera em um ato de Elias Álvares Lobo (1834-1901), com libreto escrito por ninguém menos que José de Alencar (1829-1877). A obra é considerada a primeira ópera brasileira com libreto em língua portuguesa a estrear no Brasil. Não bastasse isso, A Noite de São João estreou em dezembro de 1860 no Theatro São Pedro de Alcântara, no Rio de Janeiro, sob a regência de Antonio Carlos Gomes.

Em postagem no Facebook, o regente e violinista Emmanuele Baldini, spalla da Osesp e maestro titular da Orquestra do Conservatório de Tatuí, contou que, ao ficar sabendo da existência da obra, resolveu procurar a partitura: encontrou apenas o manuscrito da redução para canto e piano, a partitura orquestral parecia ter se perdido. A Sustenidos, gestora do Conservatório de Tatuí, comprou a ideia de reconstituir a obra, iniciativa que contou, ainda, com o apoio do projeto SINOS (ao qual voltaremos adiante). A orquestração foi reconstituída por Mateus Araujo, e a ópera ganhou a sua primeira reapresentação em dezembro de 2022, no Conservatório de Tatuí, com a orquestra do próprio conservatório sob a regência de Baldini.

Felizmente, Alessandra Costa, diretora executiva da organização social Sustenidos, gestora do Conservatório de Tatuí, e a equipe do Conservatório, cientes da importância de que A Noite de São João seja representada mais vezes e conhecida por mais pessoas, abraçaram prontamente a ideia de levar a ópera a Araras para a abertura do Encontro.   

Elenco de A Noite de São João no Teatro Estadual de Araras

O libreto de Alencar narra uma trama simples: a história de amor entre Inês e Carlos em uma noite de São João carioca. Sua escrita, no entanto, é primorosa. A partitura de Elias Lobo faz uma interessante combinação de ritmos e instrumentos brasileiros com o estilo tipicamente italiano, em voga na época – a obra parece percorrer cronologicamente a história da ópera italiana da primeira metade do século XIX: vai de Bellini a Verdi.

A produção, ambientada em uma singela e colorida noite de São João, com seus balões e bandeirinhas, teve a direção cênica de Rosana Orsini, uma especialista em ópera luso-brasileira, cenografia de Giorgia Massetani e figurinos de Cristian Lourenço e Rosana Orsini. Baldini regeu a Orquestra do Conservatório de Tatuí com o cuidado e o amor de quem embala um filho.

O elenco foi formado pelo Coro do Conservatório de Tatuí e por quatro solistas: a soprano Flavia Albano como Inês, o tenor Maurício Etchebehere como Carlos, o barítono Isaque Oliveira como André, pai de Inês, e a mezzosoprano Cecília Massa como Joana, uma velha cigana. Dentre eles, apenas Etchebehere não participou da estreia da produção em Tatuí. Todos os solistas têm pelo menos duas coisas em comum: são jovens – especialmente Etchebehere, de apenas 22 anos – e foram finalistas de edições recentes do Concurso de Canto Maria Callas, sendo que Isaque Oliveira foi premiado em 2022.

Um dia de conversas e exposições de projetos

No sábado (28), o evento promoveu algumas apresentações de projetos ligados à ópera brasileira e quatro rodadas de conversa. Durante as conversas, foram abordados temas como a importância do resgate de óperas históricas, o papel da ópera contemporânea e o seu processo criativo, bem como o papel do intérprete. Revezaram-se nas conversas e apresentações os compositores Leonardo Martinelli, Mário Ferraro e Ronaldo Miranda, os libretistas André Cardoso e Jorge Coli, os cantores e produtores Adalgisa Rosa e Flávio Leite, Flávia Furtado, diretora executiva do Festival Amazonas de Ópera, e o coordenador de ópera e música de concerto da FUNARTE, Hudson Lima. A mediação foi de João Luiz Sampaio, que, além de brilhante e experiente jornalista e crítico de ópera, também é libretista. A direção geral e artística do evento foi de Paulo Esper.

Flávio Leite, Leonardo Martinelli, André Cardoso, João Luiz Sampaio e Paulo Esper

Projetos e iniciativas

O primeiro projeto foi apresentado por André Cardoso, presidente da Academia Brasileira de Música e coordenador do SINOS – Sistema Nacional das Orquestras Sociais –, um projeto de apoio a iniciativas sociais desenvolvido pela Fundação Nacional de Artes (FUNARTE) e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Depois de traçar um panorama da produção e dos teatros brasileiros, Cardoso expôs um pouco do trabalho desenvolvido pelo projeto SINOS, sobretudo no que diz respeito à ópera brasileira e à academia de ópera criada pelo SINOS. Por ser voltado para estudantes, o SINOS necessita de obras com dimensões e grau de complexidade adequados a orquestras e cantores jovens e aos espaços onde esses grupos se apresentam. É daí que vem o interesse do projeto em apoiar a restauração de obras como A Noite de São João e de encomendar obras novas, como O Machete, de André Mehmari, e Candinho, de João Guilherme Ripper – que foi apresentada recentemente no II Festival Oficina da Ópera do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (leia a crítica de Leonardo Marques).

Após Mário Ferraro falar do sucesso de público da Bienal de Ópera Atual, Adalgisa Rosa apresentou outra ótima iniciativa: o Coletivo das Artes, um espaço cultural no Espírito Santo. O trabalho do Coletivo envolve a formação de jovens – tanto por meio do OperaStudio quanto por programas de pós-graduação e formação artística –, a produção de óperas brasileiras e, ainda, memória e acervo de figurinos e documentos históricos. Está sendo desenvolvido também um podcast a respeito da memória lírica nacional.

Flávio Leite contou sobre a criação da Companhia de Ópera do Rio Grande do Sul (CORS), uma importante e bem-sucedida iniciativa de um grupo de cantores. Além de uma temporada no Theatro São Pedro, de Porto Alegre, a CORS circula pelo estado do Rio Grande do Sul e tem um projeto de formação através do Opera Studio, que neste ano fará a sua terceira produção. Graças ao apoio da Secretaria da Cultura do Rio Grande do Sul, nesses dois anos de vida a CORS já fez quarenta apresentações e passou por onze cidades.

João Luiz Sampaio fez uma exposição a respeito do Ateliê de Ópera do Theatro São Pedro, em São Paulo. Anualmente são selecionados três compositores e três libretistas, que recebem uma formação teórica, sobretudo quanto à relação entre texto e música. São, então, formadas três duplas e cada uma deve compor uma ópera curta. O trabalho todo dura um ano. Segundo Sampaio, os libretistas vêm de outras áreas, como o teatro de prosa, de modo que, além da formação, esse trabalho possibilita a aproximação com profissionais de áreas diversas.

Conversas

As conversas começaram em torno do resgate de óperas histórias. Foi apontada a existência de uma grande quantidade de óperas do final do século XIX e do início do XX que ainda hoje desconhecemos, e de compositores que precisam ser resgatados. Jorge Coli, professor emérito da Unicamp, destacou o imenso peso cultural dessas obras: esse resgate representa o reencontro com uma história que ficou apagada. André Cardoso lembrou que a ópera está presente na vida de escritores e artistas do passado, como Machado de Assis, e que muito dos eventos históricos ocorreram dentro dos teatros de ópera.

Foi levantado um certo preconceito que existe com a ópera, que passou a ser vista como ultrapassada e irrelevante. Para André Cardoso, isso foi o resultado da baixa inserção do repertório contemporâneo. Daí vem a importância não só de se encomendar novas obras, mas também de aumentar o número de teatros que produzem óperas e, consequentemente, de produções de óperas: só desse modo é possível ter diversidade de títulos, combinando o repertório tradicional com o contemporâneo.

Hudson Lima

Foi destacada, ainda, a importância de que as instituições sejam sólidas e tenham autonomia política. A instituição tem que ser pensada em longo prazo, e não apenas durante uma gestão. Em outras palavras, deve haver a continuidade do trabalho, o cumprimento de acordos e a manutenção de programações, independentemente de eleições e mudanças políticas e administrativas. Hudson Lima foi além e defendeu um alinhamento nacional do repertório a ser apresentado pelos teatros.

Ainda quanto às instituições, Flávia Furtado apontou que os gestores devem ser pessoas da área, ligadas à cultura, que entendam o papel dessas instituições. É preciso que os gestores tenham a coragem de programar óperas que tratem de temas sensíveis para a nossa época – como ocorreu por diversas vezes durante a história da ópera. Para Leonardo Martinelli, óperas que tratam de temas contemporâneos são uma forma de se conectar com o público. Enquanto nas óperas de repertório é preciso que os diretores cênicos façam adaptações para trazer as obras à atualidade, nas óperas contemporâneas essa conexão já ocorre naturalmente.

Adalgisa Rosa e Flávio Leite expuseram o lado do intérprete. Rosa falou sobre a prática de cantar em português: isso desenvolve a dicção do cantor, muitas vezes problemática. Leite levantou a diferença entre interpretar uma ópera de repertório, onde já há diversas referências pré-estabelecidas, e estrear uma ópera nova – neste caso, o intérprete criador se torna a primeira referência.

Do ponto de vista da composição, Jorge Coli defende a relevância do libretista – ou, ao menos, um equilíbrio da relação entre compositor e libretista – uma vez que “um compositor de ópera, sem o libreto, não faz ópera”. Para ele, a ópera se sustenta porque tem trama dramática. Segundo Coli, “as grandes formas da cultura são forçosamente impuras, e [a ópera] (…) não é a forma de arte total, mas é a forma de arte mais impura que existe, na qual as coisas se misturam de uma maneira tão orgânica que é impossível separar”.

Além destas e de outras conversas que não cabem no espaço deste texto, os presentes tiveram o privilégio de ouvir Ronaldo Miranda, Jorge Coli e Leonardo Martinelli contando a história de algumas das suas composições. Uma saborosa conversa que merecia um artigo exclusivo.

Encerramento: recital com trechos de óperas contemporâneas 

Leandro Roverso, Thayana Roverso, Luiza Girnos e Vinicius Atique

Se o encontro foi aberto com um resgate do passado, foi encerrado com o presente que aponta para o futuro da ópera brasileira. Acompanhados pela precisão e musicalidade do piano de Leandro Roverso, os talentosos cantores Thayana Roverso (soprano), Luiza Girnos (mezzosoprano) e Vinicius Atique (barítono) interpretaram trechos de óperas brasileiras. Para eles, o desafio – e, sem dúvida, também a satisfação – foi interpretar alguns desses trechos diante dos compositores e/ou libretistas. Foi o caso de O Menino e a Liberdade, com música de Ronaldo Miranda e libreto de Jorge Coli a partir de um conto de Paulo Bonfim; de Três Minutos de Sol, com música de Leonardo Martinelli e libreto de João Luiz Sampaio; e de O Comedor de Nuvens (música de Mário Ferraro sobre libreto de Eric Edwards). Foi, ainda, por meio da interpretação de Thayana Roverso para um trecho da ópera inédita Inês, que Jorge Coli tomou o primeiro contato com a música que João Rocha compôs para o seu libreto.

Foram, também, interpretadas obras de Carlos Moreno, João Guilherme Ripper, João MacDowell, Guilherme Bernstein e Piero Schlochauer. Cada trecho foi uma descoberta e um deleite.

O Encontro terminou em clima festivo e com a certeza de que veio pera ficar. Afinal de contas, além da sua grande relevância e do apoio recebido de entidades governamentais e artísticas, foi idealizado e dirigido por Paulo Esper, cujos projetos são sólidos e duradouros, e para quem desistir nunca é uma opção. Basta lembrar do prestigiado Concurso Brasileiro de Canto Maria Callas, outra iniciativa de Esper, realizado com regularidade desde 1993. Esper dedica a sua vida à ópera, sua grande paixão, e trabalha incessantemente para que o gênero ganhe cada vez mais espaço e atinja um público amplo, e para que cantores, compositores e todos os profissionais da área possam exercer a sua encantadora e tão necessária arte.

Que venham os próximos encontros, e que a ópera brasileira esteja cada vez mais presente na nossa agenda cultural.

Debatedores e ouvintes no Teatro Estadual de Araras.

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