Festival de Ópera da Arena di Verona: uma tradição mais que centenária

Carmen (1875)
Música: Georges Bizet
Libreto: Henri Meilhac e Ludovic Halévy
La Traviata (1853)
Música: Giuseppe Verdi
Libreto: Francesco Maria Piave
Aida (1871)
Música: Giuseppe Verdi
Libreto: Antonio Ghislanzoni
Arena di Verona, 14, 15 e 16 de julho de 2022
Direção musical: Marco Armiliato
Produção: Franco Zeffirelli
Carmen: J’Nai Bridges, mezzosoprano
Micaela: Gilda Fiume, soprano
Don José: Vittorio Grigolo, tenor
Escamillo: Gëzim Myshketa, barítono
Violetta Valéry: Nina Minasyan, soprano
Annina: Francesca Maionchi, soprano
Alfredo Germont: Francesco Meli, tenor
Giorgio Germont: Amartuvshin Enkhbat, barítono
Aida: Anna Netrebko, soprano
Amneris: Anna Maria Chiuri, mezzosoprano
Radamès: Yusif Eyvazov, tenor
Amonasro: Ambrogio Maestri, barítono
Il Re: Romano Dal Zovo
Ramfis: Rafael Siwek
Orquestra e Coro da Fondazione Arena di Verona

Uma tradição mais que centenária: o festival de ópera da Arena di Verona teve início em 1913 com Aida, de Verdi. No ano seguinte, foi a vez de Carmen, de Bizet. Com algumas interrupções em virtude de guerras e pestes, o festival chegou, neste ano, à sua 99ª edição. Entre os dias 14 e 16 de julho, tive a oportunidade de vivenciar essa tradição através de três dos seus títulos mais emblemáticos: Carmen (14), La Traviata (15) e Aida (16). Dessas três, Aida e Carmen são os títulos mais encenados na Arena: Aida esteve presente em 61 edições e contou com 726 récitas (com 40 cancelamentos em razão de chuva); Carmen teve 273 apresentações (e 20 cancelamentos devido à chuva) em 27 edições. La Traviata estreou no festival um pouco mais tarde, apenas em 1946, e contou com 133 apresentações em 17 edições. Na presente edição, além de ser o título mais antigo e mais produzido no festival, Aida contou com um ingrediente especial: Anna Netrebko no papel-título (nos dias 8, 16 e 28 de julho).

Carmen marcou a estreia da mezzosoprano J’Nai Bridges no papel-título – o que deveria ter ocorrido no Metropolintan em 2020, mas veio a Covid-19, e descobrimos, em escala mundial, o quão frágeis podem ser os nossos planos. Estrear como Carmen justamente na Arena é um desafio e tanto: além de ser um dos títulos mais badalados do evento veronense, é um palco grande, que exige uma boa movimentação cênica (sobretudo para uma Carmen!), e um espaço enorme, com uma acústica complicada. Bridges entregou uma Carmen digna, mas faltaram-lhe tanto a força cênica quanto volume no canto. Já o Escamillo de Gëzim Myshketa foi na direção oposta: volume e presença cênica não são problemas para ele, mas sim a agilidade do canto, excessivamente pesado, e, consequentemente, o fraseado. Como Micaela, Gilda Fiume cumpriu seu papel corretamente, mas sem brilho, sem entregar toda a força presente na prece desesperada de sua personagem. É comum que se veja Micaela como uma personagem fraca, moça bobinha de vilarejo, só que ela tem uma força interior incrível, que lhe dá coragem de enfrentar bandidos em busca de José. A sua prece é a marca dessa força, sua linha melódica é rica, não monótona. À intérprete, cabe dar vida a Micaela.

J’Nai Bridges e Vittorio Grigolo em Carmen

A noite foi, sem dúvida, de Vittorio Grigolo e sua voz gigante, que se projeta muitíssimo bem na Arena. Se o tenor é muitas vezes criticado por seus exageros de gosto duvidoso, esse exagero caiu muito bem em um espaço exageradamente grande. Seu canto foi impecável, sua ária da flor, ao mesmo tempo intensa e intimista. Não fez piano no final, mas também não caiu no fortíssimo despropositado que tantos fazem e que é exatamente o oposto do que escreveu Bizet.

Em La Traviata, as vozes estavam mais equilibradas. No papel de Giorgio Germint, o barítono mongol Amartuvshin Enkhbat substituiu Arthur Rusinski, que se recuperava da covid. Poucos dias antes, Enkhbat havia cantado Rigoletto no Teatro alla Scala, onde brilhou mais por sua voz que por sua atuação. Como Germont, no entanto, sua atuação foi excelente, foi na medida certa. Sua voz tem tamanho e projeção perfeitos para a Arena; sua presença cênica foi um dos pontos altos da noite. Como Alfredo, Francesco Meli, perfeitamente audível, teve seus bons momentos, mas a sua voz apresenta sinais de instabilidade e de desgaste, sobretudo na região aguda.

Amartuvshin Enkhbat e Nina Minasyan em La Traviata

No papel-título, a soprano armênia Nina Minasyan demonstrou por que está fazendo uma bela carreira na Europa. Desde 2014, quando estreou na Deutsche Oper de Berlim como a Rainha da Noite na Flauta Mágica (Mozart), já cantou não só esse papel, mas também Lucia (em Lucia di Lammermoor, de Donizetti), Gilda (Rigoletto, de Verdi), entre outros, nas melhores casas de ópera do mundo. Agora, estreia na Arena como Violetta. Belo timbre, boa dicção, bom fraseado e, como é tão importante na Arena, ótima projeção.

Tanto Carmen quanto La Traviata contaram com um público numeroso, mas os lugares vazios eram muitos e visíveis. Foi só na Aida com Anna Netrebko que pude sentir o calor humano característico do festival. Catorze mil pessoas lotaram a Arena. Durante a leitura dos nomes do elenco, realizada antes de todos os espetáculos, o público aplaudiu quando ouviu o da diva. Não eram turistas que estavam na Arena sem saber o que iam assistir: era público de ópera que estava lá para receber a música de Verdi através da voz única de Netrebko. Após a ópera, o grito “Viva Verdi!”

Como Radamès, Yusif Eyvasov foi competente, mas um tanto irregular: já no início, seu belo cantabile Celeste Aida, que cantou com sensibilidade, de forma gentil, como deve ser, e encerrou com um si bemol mezzoforte seguido de uma consistente filatura, contrastou com o recitativo que o precedeu, com agudos um tanto apertados e imprecisos. De qualquer modo, apesar de algum problema na emissão, é um Radamès experiente e de bom nível. Na Arena mesmo, já viveu o papel algumas vezes. Como Amonasro, Ambrogio Maestri esbanjou voz e presença cênica. Seu dueto com Anna Netrebko, no ato do Nilo, foi um dos grandes momentos da noite. Anna Maria Chiuri tem o peso na voz e o timbre que a qualificam para uma boa Amneris. Ao tentar mudar o colorido da voz, contudo, altera o seu timbre de forma demasiadamente artificial, gerando um som áspero. Além disso, o seu canto perde qualidade nos agudos, que faz de forma abrupta e um pouco gritada.

Anna Netrebko como Aida

Anna Netrebko. Esse nome já diz tudo. É ela a grande estrela da nossa geração. Pode ter seus defeitos, pode deixar a desejar cenicamente em algumas apresentações, principalmente quando resolve subir ao palco sem ensaiar, mas tem uma voz única e muito carisma. Sua voz é uma dádiva: homogênea, consistente, aveludada, que corre fácil seja no teatro, seja na Arena. Seu timbre é de beleza única. Sua interpretação é hipnotizante: é impossível desgrudar olhos e ouvidos dela. Seu sucesso, mais que comprovado pela Arena lotada, incomoda a muitos. Recentemente, a soprano foi banida de vários teatros por conta de sua postura em relação à Rússia e a Vladimir Putin. Durante o primeiro semestre do ano, sua pátria custou-lhe muito. Sua opção por seguir com a carreira na Europa também lhe custou em sua pátria: foi obrigada a cancelar apresentações que faria na Rússia, foi chamada de traidora. Diante de um público de catorze mil pessoas, na pele de Aida, Netrebko cantou, introduzida por um belo e choroso oboé, O patria mia, mai più ti rivedrò, sua grande e sentida ária. Quanta expressividade, quantas nuances e, claro, quanta técnica! Com sua voz enorme, Netrebko não foge dos pianíssimos nem na Arena – e é sempre plenamente audível. Durante o dueto com Amonasro, a frase “O patria, o patria, quanto mi costi” veio carregada de verdade, de força. Foi uma Aida envolvente do começo ao fim.

Nas três óperas, a Orquestra da Arena di Verona foi dirigida por Marco Armiliato. Chefe experiente, ele soube tudo coordenar, preencher aquele espaço enorme sem encobrir os cantores. Sobretudo em Carmen e Aida, chamou a atenção a dinâmica da orquestra.

Os três títulos contaram com grandiosas produções de Franco Zeffirelli, um ícone da Arena, a quem o festival está prestando homenagem. Das três produções, sem dúvida Carmen é a que mais chama a atenção por sua qualidade. A produção original data de 1995, mas em 2009 houve uma revisão, feita pelo próprio Zeffirelli, com novas tecnologias, de modo a permitir trocas de cenário mais rápidas. Em 2022, o que subiu ao palco foi uma nova atualização baseada nas duas edições. A produção é toda inspirada em Sevilha e conta, inclusive, com versões ampliadas de cartazes que integram o acervo do Museo Taurino, parte integrante da Real Maestranza.  Além da cenografia, também merece um destaque todo especial a participação da Compañia Antonio Gades. Um luxo.

Carmen

A produção mais problemática foi a de Aida. É grandiosa e tem momentos de grande beleza, como as enormes pirâmides, e essa beleza é acentuada pelo ótimo desenho de luz. Figuras alegóricas gigantescas, no entanto, sobretudo no último ato, dão uma sensação por demais carnavalesca. No extremo oposto da Carmen do mesmo diretor, é no ballet, caricato e datado, que reside o maior problema da produção, a ponto de arrancar comentários do público. E como Anna Netrebko é cantora, e não bailarina, o motivo de polêmica foi outro, não o ballet.

Essa Aida da Arena já tem 20 anos. Na presente edição, estreou no dia 18 de junho com a soprano Liudmylla Monastyrska no papel-título, porém, quando Netrebko deu as caras, o público das redes sociais, sobretudo os americanos, repararam que havia uma maquiagem e logo a ligaram à pejorativa prática (americana) chamada blackface. A discussão é complexa e, nas mesmas redes sociais, a grande Grace Bumbry deu uma aula que, felizmente, viralizou junto com a polêmica. O que a nós interessa aqui é refletir sobre a necessidade ou não da maquiagem negra.

Na ópera, Aida é uma escrava negra que se submete à filha do Faraó. Ela não tem o direito de voltar à sua pátria e nem de amar Radamès, é uma princesa negra que perde toda a sua dignidade, toda a sua liberdade, sob o domínio branco. Era escrava de guerra, é bem verdade, foi escravizada porque venceu o mais forte que, como sói acontecer, era o povo branco. Diante de Amneris, a princesa egípcia, que deveria ser sua igual, Aida é obrigada a esconder sua identidade, sua realeza: em um momento de emoção, chega a falar que também ela é princesa, mas se arrepende, pede perdão.

As produções modernas têm mais que a obrigação de tratar da questão racial sem a necessidade da maquiagem. A recente produção de Lotte de Beer, que estreou no ano passado em Paris, com Jonas Kaufmann e Sondra Radvanovsky, deu um ótimo exemplo de como o fazer: Aida é rebaixada, literalmente, a uma marionete, uma coisa.

Às produções tradicionais, restam algumas alternativas, todas com prós e contras. A primeira delas é manter a maquiagem e ignorar as reações causadas. A outra opção – a mais óbvia – é suprimir a maquiagem. Só que aí corre-se o risco de, junto com ela, eliminar a importante discussão racial da ópera, o que é uma grande perda, ainda mais nos dias de hoje. Então, que sejam escolhidos Aida e Amonasro negros, Amneris e Faraó brancos! Sem dúvida, é a solução ideal, mas não imune a problemas.

Escolher cantores com base na cor da pele, mesmo que com a mais nobre das intenções, abre precedentes perigosos. Além disso, corre-se o risco de não haver disponível, por exemplo, uma cantora negra com a voz adequada para Aida. Ou, por outro lado, pode haver uma excelente Amneris negra, como já ocorreu no passado — se, na segunda metade do século XX, a cor da pele tivesse sido utilizada como critério, nunca teríamos tido uma das melhores Amneris de todos os tempos: Grace Bumbry!

Essa reflexão não tem o intuito de fechar questão ou justificar a chamada blackface, mas apenas de lembrar que há vários aspectos envolvidos. Minha preferência pessoal é por produções mais criativas, que revelem novos aspectos das óperas, que permitam uma maior apreciação teatral. Isso não significa, porém, descartar as produções tradicionais, sobretudo quando bem encenadas – como a Carmen.

Fotos: © Foto Ennevi / Fondazione Arena di Verona.

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