“Il Guarany” no TMSP: 2025 começou!

2025 começa com “Il Guarany” em São Paulo. É uma ótima oportunidade para se refletir a respeito da obra de Carlos Gomes e do eterno dilema quanto à encenação contemporânea de uma ópera de mais de 150 anos.

2025 começou!

No dia 15 de fevereiro, o Theatro Municipal de São Paulo abriu a sua temporada lírica com a remontagem da ópera Il Guarany, de Antônio Carlos Gomes (1836-1896). É sempre bom começar o ano em fevereiro, antes do carnaval. Isso ganha um sabor mais especial quando lembramos que foi no TMSP que, em 1922, entre 13 e 18 de fevereiro, se realizou a Semana de Arte Moderna.

Outra boa notícia foi Il Guarany ter sido o título escolhido para a abertura da temporada, mesmo se tratando de uma remontagem. Neste ano, celebram-se os 155 anos da estreia da obra — a primeira ópera de um compositor brasileiro a fazer sucesso no exterior: estreou no Teatro alla Scala, em Milão, em março de 1870. Como os 150 anos caíram em 2020 e passaram praticamente em branco em virtude da pandemia de Covid-19, celebremos os 155 anos!

Além disso, a produção, que estreou em maio de 2023, recebeu, no ano passado, o Prêmio Ópera XXI OLA de Melhor Produção Latino-americana. Trata-se da categoria latino-americana, promovida pela Ópera Latinoamérica (OLA), de um prêmio concedido pela Ópera XXI, entidade que reúne os principais teatros e festivais de ópera espanhóis. O júri, constituído por renomados críticos de diversos jornais e revistas europeus, contou com: Fernando Sans, Pablo Meléndez, Javier Pérez Senz, Maricel Chavarría, Alejandro Martínez Rodríguez, Ana Vega Toscano, Mariela Rubio, César Coca, Richard Martet, Gonzalo Alonso, Justo Romero, Victora Stapells e Juan Antonio Muñoz. Nem deveria ser preciso dizer, mas é sempre bom lembrar: entre a postura xenófoba e arrogante de desdenhar uma premiação estrangeira e o complexo de vira-lata de se colocar em uma posição de inferioridade e valorizar apenas o que vem de fora, existe o caminho do bom senso: reconhecer a importância de interagir com o mundo, de pertencer ao mundo e de ser reconhecido pelo mundo.

Há ainda outro aspecto a ser apontado. A organização social Sustenidos, gestora do teatro há cerca de três anos e meio, está iniciando a sua quarta temporada à frente do Municipal. Pode parecer pouco, mas isso já é o suficiente para fazer da Sustenidos a OS mais longeva no TMSP desde a implantação do sistema de OSs. A cada temporada tem sido possível observar um amadurecimento na elaboração da programação e na escolha do elenco. Isso quer dizer perfeição, que devemos concordar com todas as escolhas cênicas e musicais e achar tudo ótimo? Não. E esse “não” vale para o TMSP da mesma forma que vale para o Metropolitan Opera, para a Bayerische Staatsoper, para o La Scala… ou qualquer grande teatro do mundo. Mas isso quer dizer que é preciso tempo para que um teatro crie uma identidade e vá aprimorando as suas temporadas.

Uma observação importante, que muitas vezes os olhares que só se voltam para o palco acabam não vendo: a Sustenidos tem demonstrado interesse em estruturar o funcionamento do teatro — algo de que sentimos falta durante a gestão das OSs anteriores, mesmo quando eram apresentados grandes espetáculos com grandes nomes. Isso dá a esperança de que a OS permaneça no teatro por mais tempo, coloque a casa em ordem e, finalmente, tenhamos um trabalho cada vez mais maduro, com a devida continuidade, e não as rupturas e recomeços tão nocivos que já vivemos tantas vezes em tempos recentes.

Isso posto, vamos à ópera, façamos algumas reflexões sobre o título que abriu a temporada lírica de São Paulo.

Cena do terceiro ato de Il GuaranyLarissa Paz / TMSP)

O Guarani e Il Guarany

Em 1857, José de Alencar publicou O Guarani, seu primeiro romance indianista, fortemente influenciado pela literatura francesa do início do século XIX. São evidentes os ecos de François-René de Chateaubriand (1768-1848), também ele autor de um romance indianista que se passava na América (Atala, de 1801), e de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) — cuja influência, aliás, já se faz presente na obra de Chateaubriand. Em Peri, o indígena que dá o título à obra de Alencar, pode ser identificada a figura do bom selvagem (bon sauvage) de Rousseau.

O romance de Alencar se passa em meados do século XVII e narra a história de Peri e Cecília — ou ‘Ceci’, com a jovem filha de Dom Antônio de Mariz, um nobre português, é chamada por Peri. No romance, o sentimento que Peri cultiva em relação a Ceci é de pura adoração: ele zela para que todos os seus desejos sejam prontamente atendidos e para que nenhum perigo a ameace. Foi justamente salvando Ceci dos aimorés que Peri chegou à casa da família portuguesa. Ceci vê Peri como um bom amigo pagão, um bom servo, um bom selvagem. Essa relação, porém, muda quando, no final da trama, Peri precisa se converter para salvar Ceci — somente assim Dom Antônio permite que o indígena, agora cristão, leve Ceci embora da casa que, sob o ataque dos aimorés, será incendiada pelo próprio português.

A fuga se dá com Ceci desacordada, sob o efeito de uma poção dada a ela pelo pai. Ao acordar e ficar sabendo que Peri havia se tornado cristão, Ceci não permite que ele continue a se referir a ela como a sua senhora, mas como irmã. Ceci, no entanto, sabe perfeitamente que o sentimento que começa a brotar em seu coração não é exatamente fraternal. Para o indígena, por sua vez, nada mudou: ele tem plena consciência de que se converteu por necessidade, para salvar a sua senhora, e que não pode viver com ela na cidade, onde seria marginalizado. Continua a adorá-la da mesma forma, como uma santa, uma divindade.

É uma tempestade — ou um dilúvio — que resolve a situação desse improvável casal, para o qual nem a cidade dos parentes de Ceci (o Rio de Janeiro) e nem a aldeia indígena de Peri serviam como morada. De quebra, o dilúvio de Alencar também constrói o mito da formação da nação brasileira, resultante, segundo a novela, da união entre portugueses e povos originários — uma união na qual os indígenas adoram os portugueses e os portugueses são seduzidos pela força e submissão dos indígenas.

Para que esse mito seja construído, no desfecho do livro os protagonistas revivem o mito de Tamandaré, narrado pelo próprio Peri:

“Foi longe, bem longe dos tempos de agora. As águas caíram, e começaram a cobrir toda a terra. Os homens subiram ao alto dos montes; um só ficou na várzea com sua esposa.
Era Tamandaré; forte entre os fortes; sabia mais que todos. O Senhor falava-lhe de noite; e de dia ele ensinava aos filhos da tribo o que aprendia do céu.
Quando todos subiram aos montes ele disse:
‘Ficai comigo; fazei como eu, e deixai que venha a água.’
Os outros não o escutaram; e foram para o alto; e deixaram ele só na várzea com sua companheira, que não o abandonou.
Tamandaré tomou sua mulher nos braços e subiu com ela ao olho da palmeira; aí esperou que a água viesse e passasse; a palmeira dava frutos que o alimentavam.
A água veio, subiu e cresceu; o sol mergulhou e surgiu uma, duas e três vezes. A terra desapareceu; a árvore desapareceu; a montanha desapareceu.
A água tocou o céu; e o Senhor mandou então que parasse. O sol olhando só viu céu e água, e entre a água e o céu, a palmeira que boiava levando Tamandaré e sua companheira.
A corrente cavou a terra; cavando a terra, arrancou a palmeira; arrancando a palmeira, subiu com ela; subiu acima do vale, acima da árvore, acima da montanha.
Todos morreram. A água tocou o céu três sóis com três noites; depois baixou; baixou até que descobriu a terra.
Quando veio o dia, Tamandaré viu que a palmeira estava plantada no meio da várzea; e ouviu a avezinha do céu, o guanumbi, que batia as asas.
Desceu com a sua companheira, e povoou a terra.”

Após contar a história de Tamandaré, Peri pratica o seu último ato heroico para salvar Cecília: arranca uma palmeira. O livro termina com a palmeira, onde estava o casal que haveria de repovoar a terra brasileira, sendo levada pelas águas e sumindo no horizonte.

Em sua dissertação Il Guarany de Antônio Carlos Gomes: A História de uma Ópera Nacional” (Universidade Federal do Paraná, 2011), Olga Sofia Freitas Silva lembra que a sociedade da época não se interessava pelos indígenas reais “— estes tinham as suas terras tomadas pelo governo, e eram confinados a aldeamentos cada vez menores — mas pelo indígena heroico dos tempos coloniais, uma invenção histórica e literária, análogo aos heróis de Walter Scott ou Byron. Essa imagem do indígena heroico era um retorno, de certa forma, ao modelo do bon sauvage rousseauniano, um misto de força e inocência — mas sempre submisso ao colonizador português”.

Peri não mede esforços para proteger e agradar a sua senhora. Dedicado, fiel, inteligente e forte, o indígena só não abre mão da sua liberdade — sem a qual ele sequer seria capaz de bem servir Ceci. Um “cavalheiro português no corpo de um selvagem”, definiu, no livro de Alencar, Dom Antônio de Mariz. Quanto à linguagem de Peri, é suscinta e rudimentar, refere-se a si mesmo na terceira pessoa do singular.

Quando o Peri de Alencar se torna o Pery de Carlos Gomes e migra do português para o italiano, sua linguagem deixa de se distinguir da dos homens “civilizados”. A sua lealdade, a sua dedicação e a sua liberdade continuam presente, mas a virilidade se acentua, tornando-o o típico herói das óperas românticas do século XIX — especialmente das óperas de Verdi.

Logo que aparece no palco, Pery dispara 13 vezes consecutivas a nota mi, um verdadeiro “samba de uma nota só”. O resultado é um misto de exotismo — Carlos Gomes parece ter tentado expressar musicalmente a pobreza linguística do herói-indígena presente no livro de Alencar — e de virilidade. Ao longo da ópera, contudo, dessas duas características é a virilidade do herói que se sobressai. Ao tenor, resta o desafio de entrar de forma viril, heroica, mas sem soar autoritário ou prepotente. Em 2023, no TMSP, Atalla Ayan venceu esse desafio com louvor.

Já que coloquei o link para o vídeo dessa entrada de Pery, aproveito para comentar que, ao longo da ópera, o tema que se ouve na orquestra enquanto Pery canta será a ele associado.

Na ópera, Cecilia não espera Pery se converter para por ele se apaixonar. Também a adoração que o indígena tem pela mocinha não se reduz a um sentimento religioso. Desenha-se um amor quase impossível entre tenor e soprano. Ou melhor, um típico triângulo amoroso: não poderia faltar um barítono vilão para atrapalhar o romance entre os dois, e esse barítono é Gonzales, um aventureiro espanhol.

Em José de Alencar, o vilão é Loredano, um ex-frade italiano. Na ópera composta para estrear no La Scala, no entanto, por razões óbvias, a nacionalidade do vilão foi alterada. Não foi essa a única mudança que ocorreu no processo de transformação do romance em libreto: desapareceram ou perdem importância alguns personagens, e foram eliminados outros triângulos amorosos. Isabel, filha ilegítima do nobre Dom Antônio, desaparece e, com ela, seu romance com Álvaro — que, na ópera, é um papel substancialmente reduzido.

Também o mito da formação da nação brasileira parece não ter interessado a Carlos Gomes e aos seus libretistas italianos — Antonio Scalvini (com quem Gomes se desentendera) e Carlo D’Ormeville (que assumiu o trabalho deixado por Scalvini). Pery salva Cecilia, leva-a embora da casa, e a ópera termina em seguida, com a casa pegando fogo.

Embora seja lugar-comum dizer que existem ritmos e melodias nacionais e indígenas (!!) em Il Guarany, a música de Carlos Gomes é tipicamente italiana, fortemente influenciada, sobretudo, por Verdi, Rossini e Donizetti. Se, nessa primeira ópera de Gomes a fazer sucesso na Itália, há elementos estruturais que apontam para certa liberdade em relação aos padrões da época, em suas melodias há fortes ecos de composições do século XIX.

A sortita de Cecilia, Gentile di cuore, faz lembrar outra sortita, a da personagem-título de Linda di Chamounix, de Donizetti: O luce di quest’anima. Não apenas o estilo musical é semelhante, mas também os textos, que retratam jovens donzelas sonhando, felizes, com os seus amados. “Deh riedi, deh riedi… / mi stringi al tuo cor / e giorni beati / vivremo d’amor!”, canta Cecilia; enquanto Linda, “Deh, vieni a me, riposati / su questo cor che t’ama, / che te sospira e brama, che per te sol vivrà”.

Cecilia inicia a sua ária com uma tercina de semicolcheia. O leitor não precisa se assustar com a terminologia: basta voltar à gravação de Bidu Sayão e prestar atenção em como ela faz as três rápidas notas nas quais a sílaba gen (de gentile), a primeira da ária, se divide. Daí em diante, predominam as notas em staccato (não ligadas, o oposto do legato). Isso tudo para dizer que é uma ária leve, que retrata a mocinha apaixonada, feliz e saltitante. Algumas intérpretes conseguem traduzir perfeitamente, com o seu canto, esse efeito. Bidu Sayão e a incrível Aurea Gomes são exemplos. Felizmente também posso citar uma que vi ao vivo (no TMSP): Laura Pisani.

Se na ária de Cecilia há apenas semelhanças entre a música de Gomes e a de Donizetti, a desinteressante Canção do Aventureiro (Senza tetto, senza cuna, que no TMSP passa a ter interesse graças ao excelente Bongani Justice Kubheka como Gonzales) é praticamente uma reedição, com texto diferente, de Il segreto per esser felici, da ópera Lucrezia Borgia, de Donizetti.

Também há, durante diversos momentos de Il Guarany, fortes rastros da música de Verdi, sobretudo de Rigoletto, de Il Trovatore e de La Forza del Destino.

Mais importante, contudo, que a identificação pontual dessas melodias, é observar que em Il Guarany cada personagem possui a sua identidade musical e o seu temperamento. Pery, conforme já foi dito, é o típico herói verdiano; Cecilia, por sua vez, é uma donzela de grand opéra, com fortes traços donizettianos e verdianos (sobretudo de Gilda, de Rigoletto); D. Antonio e o Cacique são os típicos baixos e barítonos cujas linhas são marcadas por saltos descendentes de oitava, que denotam autoridade; Gonzales é o barítono vilão convencional.

Os grandes momentos da música de Carlos Gomes que, a meu ver, merecem especial destaque não são os números individuais, mas os duetos. Em especial, os duetos entre Pery e Ceci tanto no primeiro ato (o célebre Pery… / Sento una forza indomita) quanto no terceiro ato, em meio aos aimorés (Ebben, che fu del caro padre).

Segundo Freitas Silva, a estreia de Il Guarany foi um sucesso de público e, em geral, de crítica: “A crítica milanesa tinha opiniões favoráveis à ópera do jovem maestro. Alguns apontavam semelhanças com a ‘Sonnambula’, com a ‘Traviata’, com o ‘Trovatore’, com a ‘Africana’ (…)”. Segundo trecho publicado por Marcus Góes em Carlos Gomes: A força indômita e reproduzido (em italiano) por Silva, em 21 de março de 1870, Filippo Filippi, um respeitado crítico da época, escreveu em La Perseveranza: “A música de Gomes não é apenas o trabalho de um jovem ardente e estudioso, há muitas vezes inspiração e, mais raramente, originalidade, qualidades que, no entanto, se diluem no anseio, na hesitação do estilo e em um singular desnível de conceito artístico que, a todo momento, faz passar do sublime, do elegante, do delicado, do novo, ao comum e ao vulgar” (tradução minha).

Para Filippi, a “culpa de muitas deficiências na música é do libreto: já elogiei suficientemente a engenhosidade de Scalvini, criador de felizes fantasias cômicas, nas quais abundam a inteligência e a invenção. Mas, por favor, não faça mais libretos, pois a poesia melodramática realmente não é o seu forte”.

Em dezembro do mesmo ano da estreia, Il Guarany chegou ao Brasil, onde foi apresentada no Theatro Imperial Dom Pedro II, no Rio de Janeiro. Demorou uma década para chegar a São Paulo, onde estreou em 1880, no Teatro São José, graças a uma companhia italiana, a Cia. Ferrari. No TMSP, inaugurado em 1911 com Hamlet, de Ambroise Thomas, Il Guarany estreou em 1919.

Nos anos que se seguiram à estreia, Il Guarany foi apresentada em quase todos os importantes teatros europeus. No século XX, porém, não passou a integrar o repertório dos grandes teatros. Na década de 1990, há trinta anos, o maestro John Neschling e Plácido Domingo apresentaram a ópera em Bonn e em Washington (onde Domingo era diretor artístico), com um elenco encabeçado por Domingo, Verónica Villarroel e Carlos Álvares. A apresentação de Bohn foi gravada pela Sony e está disponível online, em plataformas como YouTube e Spotify.

Antes da produção de 2023 do TMSP, a ópera esteve em cartaz em São Paulo pela última vez em 2011, no Theatro São Pedro. No elenco, estavam nomes como Marcello Vannucci e Licio Bruno, que, neste ano, voltaram aos seus respectivos papéis de Pery e Cacique no TMSP.

Il Guarany tem muitas qualidades, e carrega a importância histórica de ter sido a primeira ópera de um compositor brasileiro a fazer sucesso na Europa. Não podemos perder de vista, no entanto, que foi o trabalho de um compositor ainda em fase de amadurecimento. Poucos anos mais tarde, Gomes viria a compor óperas musicalmente bem mais interessantes, como Fosca (que estreou no La Scala em 1873), Salvator Rosa (cuja estreia foi no teatro Carlo Felice, em Gênova, em 1874) e Lo Schiavo (ópera que estreou no Brasil, no Theatro Imperial, no Rio de Janeiro, em 1889 — e chegou à Itália, no Teatro Lirico di Cagliari, somente em 2019).

Cena de Il GuaranyRodrigo Duarte / TMSP)

O Sagrado e o Profano: a encenação

Felizmente, o Pery e a Ceci de Carlos Gomes puderam se apaixonar sem tanta preocupação com o sagrado, sem a devoção de Pery pela “santa” Ceci, sem Ceci ter que esperar pela conversão de Pery. Também os frequentadores da ópera dos séculos XVIII e XIX se apaixonavam pelas obras sem as encarar como objetos sagrados e sem se preocupar se havia, lá pelo meio, uma ária de baú (levada por um divo ou uma diva para brilhar mais, coisa tão comum no período do bel canto) composta por outro compositor. Também não se preocupavam se alguma ária havia sido reescrita ou modificada (muitas vezes por outro compositor) para servir melhor a determinado intérprete — uma vez que o papel não havia sido composto para ele.

Em seu excelente livro Uma História da Ópera, Roger Parker e Carolyn Abbate se perguntam “por que ficamos tão chocados, e por que nosso atual temor de estar perdendo algo, nosso pessimismo cultural, transformou o espetáculo operístico numa atividade policiada por uma reverência bem próxima da que se tem por um objeto sagrado — uma reverência que em quase todos os casos não existia quando a obra foi criada”.

No pós-guerra, coube a Wieland Wagner, neto do compositor, a tarefa de livrar as óperas de Wagner em geral e, em particular, o Festival de Bayreuth, da estética realista que predominava desde os tempos de Wagner e da associação com o nazismo. Wieland Wagner partiu da premissa de que as obras não podem ser classificadas como monumentos históricos. Simplificou consideravelmente cenários e figurinos, e se concentrou na iluminação e no jogo de cena, valorizando a interioridade dos personagens.

Trinta anos antes, a Kroll Oper, em Berlim, apresentara um Navio Fantasma encenado por Jürgen Fehling com cenários de Ewald Dülberg que, segundo Christian Merlin no número 241 de L’Avant-Scene Opéra (Opéra et Mise en Scène), representou um momento chave na fase avant-garde visual e teatral, em linha com as transformações trazidas pela Bauhaus, pelo cubismo e pela Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade). Evidentemente a encenação foi alvo de críticas, e o movimento não tardou a ser sufocado pelo nazismo. Otto Klemperer, diretor musical da Kroll Oper, defendeu-se das acusações de traição nos seguintes termos: “Nada me é mais estranho do que um respeito rígido, seco e temeroso pelas indicações [cênicas]; ao contrário: é um tratamento livre, imaginativo e corajoso dessas indicações que será, a meu ver, o mais wagneriano”.

Esse pequeno histórico tem a simples função de lembrar que as discussões em relação à encenação de uma ópera já são centenárias e sempre enfrentaram alguma oposição, marcadamente de setores mais conservadores — e eu não estou incluindo o nazismo entre os conservadores, a categoria desse “movimento” é outra. Já a fala de Klemperer e as ideias de Wieland Wagner nos propõem uma reflexão: é pela repetição cega das indicações cênicas e tratando a obra como um intocável monumento histórico que estamos servindo à arte e ao compositor?

Il Guarany tem um libreto que, se na época já recebeu críticas (e a transcrita acima não foi a única), não envelheceu nada bem. A figura do bom selvagem como herói nacional, além de estereotipada demais, traz à tona as questões sociais relacionadas aos indígenas. Além disso, é uma ópera com um histórico de figurinos de gosto por demais duvidoso para Pery, normalmente com uma barriga nada indígena à mostra e penas de plástico na cabeça. Em resumo, Il Guarany é o tipo de ópera que exige uma releitura cênica para ser aceita além do restrito universo de fanáticos por ópera e nacionalistas saudosos das glórias nacionais.

A ideia, aqui, não é fazer uma defesa da encenação de Cibele Forjaz com concepção de Ailton Krenak e direção musical de Roberto Minczuk, em cartaz no TMSP — inclusive porque o propósito do presente texto não é uma crítica da produção paulistana (quem estiver em busca de uma crítica pode ler a de Leonardo Marques). A ideia é, simplesmente, apontar a necessidade de que novos ventos soprem, e romper a resistência a tudo o que não é igual ao que já se viu antes.

Quanto à encenação de Forjaz, é de uma beleza plástica inegável, com destaque para as projeções de Vic von Poser e para a cena dos aimorés. Não vemos indígenas estereotipados no palco — em vez disso, vemos cantores contracenando com indígenas reais, como a excelente Zahỳ Tentehar.

As intervenções musicais do Coro e da Orquestra do Jaraguá Kyre’y Kuery ocorrem, em sua maioria, entre os atos (a primeira, após o primeiro ato) e entre cenas. Confesso que, sim, uma intervenção me incomodou: aquela que quebra dramaticamente a conversão de Pery. É justamente essa, contudo, a mais interessante do ponto de vista cênico: vemos um indígena se despindo da sua veste branca (um símbolo do batismo) e recolocando os ornamentos da sua tribo. Em artigo publicado em 14 de fevereiro na Folha de São Paulo, Krenak explica:

“Nessa nossa releitura da obra, invocamos a pouco lembrada movimentação dos pajés Tupi que lideraram no século 17 a prática de ‘desbatismo’, que consistia na liberação dos indígenas catequizados pelos jesuítas, resultando num movimento de revolta contra a imposição dos ritos católicos e a instituição dos aldeamentos pela coroa portuguesa”.

O vídeo de 2023 de Il Guarany, o mesmo responsável pela premiação da produção na Espanha, está disponível no YouTube e pode ser visto. O melhor, no entanto, é ver ao vivo a ópera, que está em cartaz no Theatro Municipal até esta terça-feira, 25 de fevereiro.

Feliz temporada 2025!


Na foto principal, no início deste artigo: Licio Bruno, Laura Pisani, Enrique Bravo e o Coro Lírico Municipal no terceiro ato de Il Guarany (© Larissa Pas / TMSP)