Ópera de Clarice Assad estreou em setembro no Theatro Municipal de São Paulo.
Isolda/Tristão (2023) Ópera em ato único |
Música: Clarice Assad Libreto: Marcia Zanelatto |
Theatro Municipal de São Paulo, 15 a 23 de setembro de 2023 |
Direção musical: Alessandro Sangiorgi Direção cênica: Guilherme Leme Garcia |
Direção de arte e videodesign: Rogério Velloso Cenografia: Mira Andrade Figurino: João Pimenta Luz: Aline Santini Visagismo: Luísa Galvão Coreografia: Renata Melo Regente do coral: Maíra Ferreira |
Isolda: Melina Peixoto, soprano Tristão: Daniel Umbelino, tenor Marcos: Sávio Sperandio, baixo Mãe: Luciana Bueno, mezzosoprano |
Orquestra Sinfônica Municipal Coral Paulistano |
Isolda/Tristão foi a primeira obra da dobradinha apresentada no Theatro Municipal de São Paulo de 15 a 23 de setembro (a segunda foi Ainadamar, de Osvaldo Golijov). A ópera de Clarice Assad, com libreto de Marcia Zanelatto, foi contratada pelo TMSP (a exemplo de Navalha na Carne, Homens de Papel e Café, no ano passado) num esforço relevante de se fazer subir à cena obras contemporâneas de autores nacionais. A sua estreia mundial, e o fato de ela encabeçar a double bill, tornou-a a obra destacada pela crítica especializada, que se debruçou com consistência sobre a sua temática e factura musical e teatral. Esta resenha surge tarde e tem por objetivo compor com essa discussão, ao invés de repisá-la.
Discutiu-se sobre a surpresa da parcela incauta do público que adquiriu ingresso para a récita supondo que assistiria à célebre obra-prima wagneriana Tristão e Isolda – o que seria no mínimo insólito, considerando-se que a ópera de Wagner tem cerca de quatro horas de duração, o que inviabilizaria a sua apresentação em um programa duplo. O espanto desse grupo acentuou-se porque, a exemplo de Ainadamar, Isolda/Tristão recebe amplificação mecânica dos sons – inclusive na orquestra.
O público que venceu a resistência e assistiu à dobradinha teve, no entanto, uma experiência bastante satisfatória, uma vez que as duas obras conversam no que diz respeito ao tema de fundo. Enquanto em Ainadamar está em voga a repressão da ditadura espanhola e os seus ecos latino-americanos, Isolda/Tristão procura obliterar o âmbito geográfico ao discutir as mais diversas formas de repressão, ocorridas em contextos variados.
A referência a Tristão e Isolda permeia a obra, que procura, assim, inserir-se na tradição. Antes de os malfadados amantes serem eternizados pelo compositor alemão, frequentavam o imaginário ocidental, já burilados pelo cancioneiro medieval. A lenda atravessa séculos e países. Em 1895, por exemplo, Coelho Netto – escritor que os modernistas legaram ao ostracismo – junta-se ao notório compositor Leopoldo Miguez na concepção de Pelo Amor!, melodrama que bebe de todas essas influências que correram os séculos, desde as literárias às musicais: da balada medieval à música de Wagner.
Ao palmilharem um terreno tão caro à tradição cultural ocidental, Assad e Zanelatto procuram oferecer a sua contribuição. Do ponto de vista temático, Isolda é uma jovem casada que deixa o marido mais velho que ela para salvar a mãe, presa em um campo de refugiados juntamente com o povo ao qual Isolda pertence.
A obra tem início com um belo prelúdio que flagra a jovem (no corredor da plateia, acerto cênico de Guilherme Paes Leme, o diretor do espetáculo) a meio caminho do acampamento onde se encontra a mãe. As nacionalidades dela, da mãe, de seu marido ou de Tristão não são explicitadas. Este não-lugar tem como intuito, quem sabe, fazer a obra ascender à categoria de símbolo de toda uma geração de espoliados, corridos dos lugares onde nasceram por motivos variados, como guerras, perseguições políticas, religiosas, etc. – a expulsão dos armênios de Nargorno-Karabakh, dez dias atrás, e a dissolução deste território separatista demonstram a premência desse tema. Ao contrário do que ocorre na obra de Wagner, a viagem de Isolda não visa o casamento com Mark, realizado a seu contragosto. Personagem criada por duas mulheres contemporâneas, Isolda aqui é uma jovem bastante mais assertiva, daí a obra centrar-se nela, como o seu título já explicita.
A exemplo de Isolda, Tristão deixa, aqui, de ser o cavaleiro andante que mata o noivo de Isolda e lhe envia a sua cabeça, apaixonando-se por ela quando esta trata os seus ferimentos oriundos da refeida contenda. Enquanto o Tristão wagneriano busca este exemplo de mulher para satisfazer o tio rei, unindo-os em um consórcio que seria vantajoso sobretudo para Isolda – o que denota a abnegação do herói –, o Tristão de Assad e Zanelatto é o argonauta sobrinho de Marcos que, a pedido do tio, atravessará uma perigosa rota em meio à zona de conflito para resgatar Isolda.
Se Tristão a princípio apenas conhece Isolda de nome, enquanto singra os mares ele ouve “o chamado” da “voz que atravessa séculos”, “sereia justa” que o torna irremediavelmente apaixonado. O calcamento explícito na tradição faz com que o libreto deixe muita coisa sem explicação. Ainda assim, mesmo que se desconheça a lenda ou a obra de Wagner, o entrecho de Isolda/Tristão é claro: o casal se apaixona à primeira vista, somando ao enlace trazido pela tradição a pauta da luta pela liberdade.
Da obra de Wagner as autoras depreendem especificamente o entrecho romântico. Enquanto Wagner busca a lenda imemorial para enformar suas preocupações metafísicas de intelectual leitor de Nietzsche, Isolda/Tristão abraça de bom grado os contornos do gênero fabulístico; quer-se uma obra de leitura mais direta, em que as preocupações sociais ocupam um invulgar primeiro plano.
A história gira em torno da salvação da protagonista depois da morte de sua mãe, a líder do grupo desta pátria sem nome. A mãe morre por meio de um expediente obscuro – um raio feito de luz que a fulmina (o competente desenho de luz do espetáculo ficou a cargo de Aline Santini). Afogando-se, Isolda é salva pela mãe morta, a qual se transforma numa espécie de ondina, criatura marítima. A jovem reemerge para se encontrar, como num passe de mágica, nas terras de Marcos, das quais Tristão já havia sido expulso ao declarar o amor recíproco que nutria por Isolda. E é o canto dela que trará de volta Tristão, quando Marcos compreende que precisa abrir mão da jovem, liberando-a para que ela viva um sentimento em que o ideário político tem um papel fundamental.
A obra abraça com gosto a utopia, reescrevendo a lenda com final feliz: é “a mesma lenda outra”, como diz o casal no desfecho. Ao cabo da obra, o casal, a mãe morta e o coro de refugiados clamam um “Abram as fronteiras” sociopoliticamente impossível na prática. Se a narrativa é linear e o entrecho comezinho, o texto de Isolda/Tristão propõe-se a voos linguísticos. Ao mesmo tempo em que se apoia em rimas pobres, flerta com a desconstrução: “ulisses invertido” (escrito em letra minúscula no libreto) pode se referir tanto ao argonauta grego esposo de Penélope, que participa da guerra contra os troianos e enfrenta um périplo para voltar para a casa, quanto ao personagem da obra homônima de James Joyce, cuja escritura é presidida pela invenção do ponto de vista da linguagem. Se o resultado por vezes é interessante (a exemplo da imagem construída em “mar, furioso céu, / que nunca foi nosso / não ouse mastigar de Isolda os ossos”, cantado por Marcos), às vezes ele resulta impreciso (“onda vaga”, se é uma construção criativa – já que “vaga” tem um amplo escopo de sentidos, também significando “onda” –, não define com justeza a densidade do deslocamento de água que engole Isolda) e noutras, rebarbativo (“oceano, pra quem séculos são anos”, por exemplo, gera um cacófato).
Se falta amadurecimento à história do ponto de vista da construção poética, do ponto de vista musical ela alça voos largos. Oriunda de uma família de músicos, Clarice Assad construiu uma obra que se sustenta per se, sem a necessidade de texto ou encenação para se perfazer. Veja-se o seu grandioso prelúdio, que introduz com contundência o drama e os sopros líricos dos expatriados. Incumbiu-se do espetáculo a Orquestra Sinfônica Municipal, sob a regência de Alessandro Sangiorgi, e ela o fez com a mesma qualidade com que se apresentou em Ainadamar.
Outro trunfo desta montagem é a cenografia de Mira Andrade, profundamente apoiada na iluminação e nas projeções, já que a cena do Theatro Municipal é praticamente despojada de elementos cênicos. A cena do encontro de Isolda e Tristão, no ambiente aquático que os inunda, é de grande beleza, assim como impressiona a projeção enorme e tridimensional do rosto da mãe da protagonista depois de morta. Há elementos de funcionalidade menos clara – a exemplo do sepulcro da mãe de Isolda, transformado em uma figura geométrica à la Lygia Pape. Mesmo assim, este espetáculo é um bom exemplo de que o abandono de uma encenação realista pode ter um resultado positivo caso acompanhado de inventividade.
No que diz respeito ao figurino, em uma ópera como esta, que opta pelo não-lugar – ou pela mistura das temporalidades –, João Pimenta preferiu não calcá-los em um tempo ou espaço específico, vestindo o casal protagonista como dois guerreiros, a mãe e o rei com heráldica análoga e o coro de espoliados com trajes surrados que remetem às vestimentas dos refugiados que desfilam pelos telejornais.
Guilherme Paes Leme faz uma direção cênica precisa dos quatro personagens principais e do coro de refugiados (cantado com competência pelo Coral Paulistano, preparado por Maíra Ferreira), optando por gestos econômicos. Ele extrai da mezzosoprano Luciana Bueno uma interpretação de grande qualidade cênica, e colabora para que Sávio Sperandio explicite ser não apenas um cantor superlativo, mas também um ator de elevado gabarito: seus pianos e a doçura com que ele sofre pela perda de Isolda, ao julgá-la morta, denotam que o grande cantor de ópera precisa também ser um grande ator). O jovem e já experiente tenor Daniel Umbelino, como Tristão, demonstrou profundidade crescente na compreensão de seu personagem ao longo das récitas. A jovem Melina Peixoto, que os palcos paulistanos acabam de conhecer, foi, como Isolda, uma bonita contraparte a Umbelino.
Isolda/Tristão coaduna texto e encenação. Toda arte é fruto do seu tempo. É compreensível o esforço da cena operística contemporânea de modernizar obras pregressas impregnadas de sexismo, racismo, etc. A veste política, no entanto, cabe melhor às obras talhadas nas dimensões atuais. Daí a importância de esforços como o do Theatro Municipal de São Paulo, no sentido de empregar artistas contemporâneos para discorrerem sobre as dores que sofremos e os sonhos que nutrimos hoje.
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Fotos: Rafael Salvador / TMSP.
Pós-doutora em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP; graduada, mestre e doutora em Letras pela UNICAMP. Tem artigos e livros publicados nos âmbitos da literatura, do cinema e do teatro, seus três campos de interesse, procurando refletir sobre a sua interrelação.
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