Macbeth (1865) |
Música: Giuseppe Verdi Libreto: Francesco Maria Piave Ópera em 4 atos. |
Bayerische Staatsoper, 18 de julho de 2022 |
Direção musical: Antonino Fogliani Direção cênica: Martin Kušej Cenários: Martin Zehetgruber Figurino: Werner Fritz Luz: Reinhard Traub |
Lady Macbeth: Ekaterina Semenchuk, mezzosoprano Macbeth: George Petean, barítono Banco: Christian Van Horn, baixo-barítono Macduff: Giovanni Sala, tenor |
Bayerisches Staatsorchester Bayerischer Staatsopernchor |
Embora o libreto de Francesco Maria Piave seja bastante próximo da tragédia de William Shakespeare, e ainda que Giuseppe Verdi tenha tentado ser o mais teatral e shakespeareano possível, a primeira versão da ópera Macbeth data de 1847, fase em que as cenas normalmente terminavam em cabaletta, sem contar que a música de Verdi ainda não possuía a profundidade que viria a adquirir mais tarde. Por conta disso, mesmo com a posterior revisão, em 1865 (versão utilizada pela Bayerische Staatsoper), é comum que se acuse a obra de transmitir um estado de espírito muito diverso daquele apontado por Shakespeare em sua tragédia. Não foi essa a sensação, porém, com que saí do Nationaltheater, em Munique, após ter visto a obra a partir da produção de Martin Kušej, no dia 18 de julho, como parte do Münchner Opernfestspiele. A cena devolveu o espírito shakespeareano à obra.
The night has been unruly: where we lay,
Our chimneys were blown down; and, as they say,
Lamentings heard i’ the air; strange screams of death,
And prophesying with accents terrible
Of dire combustion and confus’d events
New hatch’d to the woeful time. The obscure bird
Clamour’d the livelong night: some say the earth
Was feverous and did shake.
(A noite toda foi desassossegada. Onde dormimos o vento derrubou a chaminé. Dizem que no ar se ouviram muitos prantos, gritos de morte estranhos, profecias, em terríveis acentos, de horrorosas devastações, confusos acidentes, ninhada destes tempos ominosos. Durante toda a noite a ave das trevas não deixou de piar. Dizem que a terra teve febre e tremeu. – Tradução de Carlos Alberto Nunes)
Assim Lennox descreve, na terceira cena do segundo ato, a noite em que o rei Duncan foi assassinado por Macbeth. É essa a sensação transmitida, mesmo antes da abertura, pela encenação de Kušej. Do cenário escuro, enevoado, os primeiros sons que nos chegam aos ouvidos são o vento, gemidos, choros femininos e o barulho de algo (uma faca?) caindo. Aparentemente todos esses sons vêm de dentro de uma barraca na parte da frente do palco. Um homem (o próprio Macbeth) está do lado de fora. Quando tem início o prelúdio, ele espia, tenta entrar, mas é derrubado por seis crianças que saem lá de dentro (três meninos e três meninas) justamente no momento em que os metais entoam o forte tema que, no terceiro ato, virá a anunciar as aparições dos espíritos (veja foto acima). Quando do prelúdio se ouve o tema do sonambulismo, sai da barraca uma mulher (Lady Macbeth) com sangue no vestido e faca na mão, sugerindo um aborto, ou que a criança foi arrancada do seu ventre. Ela caminha com os sentidos quase lhe faltando, abraça o homem e é por ele amparada e carregada para dentro da barraca. Tudo isso ocorre durante o prelúdio e de uma forma que o que se vê no palco está fortemente vinculado aos temas tocados pela orquestra.
As figuras da mulher ensanguentada e da criança arrancada aparecem também no final, da cena do sonambulismo de Lady Macbeth até a morte de Macbeth. Há, portanto, um ciclo que sugere que talvez tudo tenha se dado apenas na mente de Macbeth. Pela forma como se deu a morte de Macbeth, ocorreu-me que talvez Kušej tenha optado por fazer uma referência edipiana: Macduff seria o filho arrancado do ventre da Lady Macbeth e, posteriormente, o assassino do próprio pai. São indagações para as quais não tenho resposta – e prefiro ficar assim, pois uma resposta desse tipo tiraria boa parta da riqueza do teatro.
O que é certo é que Kušej traz ao palco a famosa especulação em torno de Lady Macbeth ter tido ou não filhos. Há os que dizem que, segundo as crônicas, ela havia tido filhos em um casamento anterior; há os que creem que ela teve filhas, mas não filhos, com Macbeth; há os que afirmam que ela não teve filhos; há os sábios, que reconhecem que não se sabem. Freud se interessou pela questão, sugerindo, mas depois negando por falta de evidências, uma relação entre os crimes cometidos e a impossibilidade de Macbeth de gerar filhos. A questão não tem resposta em Shakespeare, é um mistério não resolvido na obra, qualquer resposta é mera especulação. No palco, Kušej, felizmente, também não sugere uma resposta clara – pelo menos aos meus olhos.
Não tenho a pretensão, aqui, de desvendar todos os enigmas da encenação, ainda mais a tendo visto ao vivo apenas uma vez – e como ocorre na obra de Shakespeare, isso não é possível. Como a peça, a produção é repleta de enigmas, de dualidades, de ambiguidade – equivocation. Como na peça, o ambiente parece dominado pela inversão de valores (ou até a ausência deles) e por uma desordem não natural – a cena acima descrita, que ocorre durante o prelúdio, já deixa evidente essa violação da ordem natural. O excelente desenho de luz de Reinhard Traub cria uma atmosfera sombria e misteriosa. Os figurinos de Werner Fritz são rudes, despojados. No cenário de Martin Zehetgruber, o suntuoso lustre do palácio convive com a barraca. A parte de trás da cena é, muitas vezes, separada por uma cortina de plástico, o que cria o efeito de uma transparência embaçada, brilhosa, de uma realidade nebulosa e distorcida — quando Macbeth é derrotado, o plástico é derrubado, como que revelando a realidade e trazendo esperança. O chão é coberto por milhares de crânios, como se fossem pedregulhos: os atores pisam em crânios, com direito a toda a simbologia que isso traz e toda a instabilidade por eles causada – “Nature seems dead”, diz Macbeth ao se preparar para o crime. Como escreveu L. C. Knights em How many children had Lady Macbeth? (1933): “Macbeth is a statement of evil”.
Na peça, não sabemos ao certo quem são as bruxas, essas weird sisters, esses seres que aparecem e somem como bolhas da terra, imersos em dualidade, que não são nem mulheres e nem homens, que trazem em sua denominação (weird) tanto a estranheza quanto o poder que possuem sobre o destino. Na produção de Kušej, elas não são menos misteriosas: suas vozes vêm do coro fora do palco; o que vemos são as seis crianças que haviam saído da barraca.
Em Kušej, não vemos caracteres bem definidos, suas ações não são passíveis de uma narrativa realista, verossímil, suas atitudes são estranhas, muitas vezes incompreensíveis, não vemos Macbeth com roupa de rei, ou Lady Macbeth com a de rainha – apenas a coroa circula pelo cenário. Como aponta Knights no ensaio já citado, no qual questiona a interpretação extremamente realista e pautada em personagens que a crítica literária tradicional fazia da obra de Shakespeare, as peças shakespeareanas são poemas dramáticos que lidam com palavras, símbolos e ideias a fim de obter uma resposta emocional complexa, e não com personagens perfeitamente verossímeis e igualáveis a seres humanos:
“A Shakespeare play is a dramatic poem (…). To stress in the conventional way character or plot or any of other abstractions that can be made is to impoverish the total response. ‘It is in the total situation rather than in the wrigglings of individual emotion that the tragedy lies.’ [M. C. Bradbrook, Elizabethian Stage Conditions] ‘We should not look for perfect verisimilitude to life’, says Mr. Wilson Knight [in The Wheel of Fire], ‘but rather see each play as an expanded metaphor, by means of which the original vision has been projected into forms roughly correspondent with actuality (…). The persons, ultimately, are not human at all, but purely symbols of a poetic vision’”.
Quanto ao aspecto teatral, segundo Knights o drama elizabetano deve ser não realista. E não realista é algo que se aplica perfeitamente à produção que a Bayerische Staatsoper levou ao palco.
A combinação dessa força cênica com a excelente e vigorosa Bayerisches Staatsorchester, sob a direção musical de Antonino Fogliani, mais um elenco de grande qualidade, conferiu teatralidade e intensidade à música de Verdi. O único aspecto da produção que me causou algum desconforto foram as inúmeras mudanças de cena, quando a cortina caía e havia uma pausa de poucos minutos, interrompendo a continuidade do espetáculo.
Em plena crista da sétima onda de covid, houve uma verdadeira lista de substituições. Como Macduff, o jovem tenor italiano Giovanni Sala, de apenas trinta anos, entrou, na última hora, substituindo Evan Leroy Johnson, que estava doente. Com uma interpretação consistente, conquistou o público.
Como Banco, Vitalij Kowaljow foi substituído pelo excelente baixo-barítono americano Christian Van Horn. Com seu carisma e sua voz imensa e muito bem colocada, fez de Banco um dos grandes destaques da noite desde o começo, quando, junto com Macbeth, se encontrou com as bruxas. Seu Come dal ciel precipita, uma ária onde a música parece estar contradizendo o texto, foi cantada com um legato consistente.
A mais importante substituição ocorreu no papel título. Artur Rucinski, que se recuperava da covid, foi substituído pelo barítono romeno George Petean. Petean se adaptou muito bem à ambientação cênica, foi um Macbeth com a força, mas também as fragilidades que o papel demanda. Em seu dueto com Lady Macbeth, no primeiro ato, poderia ter feito sotto voce, com voz que inspirasse terror, como Verdi desejava, já que é noite, estão todos dormindo. Também a sua voz, em alguns momentos, perdeu um pouco a qualidade na região aguda, mas, detalhes à parte, de um modo geral foi um convincente e competente Macbeth.
Felizmente, o papel de Lady Macbeth foi interpretado, conforme programado, por Ekaterina Semenchuk. Falemos, pois, um pouco sobre essa figura central e essa excelente cantora.
“Come, you spirits / That tend on mortal thoughts! unsex me here, / And fill me from the crown to the toe top full / Of direst cruelty”, diz Lady Macbeth após ter recebido a notícia de que o rei se hospedaria em sua casa. Unsex me: após receber a notícia, a Lady Macbeth de Kušej se põe a cortar seus longos cabelos alaranjados com uma faca. Apesar do salto alto, que lhe confere autoridade, mas também instabilidade, ela é uma figura desprovida de feminilidade. Desse modo, Kušej atendeu a Shakespeare, mas igualmente a Verdi, que queria uma Lady Macbeth feia e maligna.
A produção, que estreou em outubro de 2008, foi concebida para Nadja Michael, que é, acima de tudo, uma atriz visceral, que parece possuída quando está atuando. Apesar disso e da sua voz penetrante, a construção do fraseado e o cuidado com o texto não estão entre as suas muitas qualidades. Tive a oportunidade de vê-la ao vivo em outros papeis e no vídeo dessa produção, gravado em 2013. Com Semenchuk, a Lady Macbeth perdeu a absoluta entrega cênica de Michael, mas ganhou em profundidade interpretativa tanto do ponto de vista musical, quanto em relação à expressividade do texto. Samenchuk tem boa dicção e sabe dar o devido peso às palavras: serviu ao poeta, como recomendou Verdi. Cenicamente, respondeu bem à concepção de Kušej, onde uma movimentação irrequieta, meio atormentada, sem qualquer traço de feminilidade, vale mais que gestos precisos e verossímeis.
Na verdade, houve sim um momento em que Lady Macbeth transmitiu feminilidade: quando estava fingindo sofrimento, ao receber a notícia do assassinato de Duncan. Aí ela se disfarçou de mulher enlutada, uma senhora frágil e sofredora. Foi um contraste muito bem estabelecido por Kušej e muito bem executado por Semenchuk, cuja poderosa voz, aliás, se sobrepôs a todo o conjunto.
Nas diversas vezes que em que vi Macbeth ao vivo, a Lady sempre foi interpretada por um soprano: Anna Pirozzi, Liudmyla Monastyrska, Anna Netrebko… Antes de ouvir Semenchuk, o fato de ela ser mezzosoprano (e das que têm voz pesada) causou-me certa apreensão, mesmo conhecendo as gravações das grandes mezzos do passado. Essa apreensão se dissipou completamente tão logo ela terminou a leitura da carta (o que fez muito bem, aliás) e começou o seu recitativo “Ambizioso spirto / Tu sei Macbetto…”. Vocalmente, sua primeira cena foi marcada pela agilidade, sobretudo na cabaletta, e por uma voz que fluiu livre, sem peso excessivo. Também os seus agudos brotaram com liberdade, e essa liberdade lhes conferiu um vibrato com um toque diabólico, certa aspereza, como desejado por Verdi. Ela o fez, é bom deixar claro, sem perder o controle sobre o canto, sem que as notas perdessem a afinação.
Um momento muito especial, verdadeira aula de articulação de texto, de dinâmica, de legato, de uso dos diversos coloridos da voz, de emissão de agudo, foi o fim do seu dueto com Macbeth, no segundo ato, quando ele diz que será necessário matar Banco. “La luce langue, il faro spegnesi / Ch’eterno corre per gli ampi cieli”, canta Lady Macbeth. Conforme essa luz que corre eternamente pelos largos céus foi se tornando lânguida, foi se extinguindo, conforme a noite desejada, que vela a mão que ferirá, foi caindo, a voz de Semenchuk foi ficando escura, misteriosa. Seu “A loro un requiem, l’eternità” em pianíssimo (sobretudo o requiem), delicadíssimo, com andamento mais lento, como se já estivesse cantando o requiem, foi de um refinamento incrível – e refinamento, em se tratando de Lady Macbeth, sempre quer dizer refinamento macabro. Para coroar a bela interpretação, um “O voluttà del soglio!” com forte agudo, contrastando a volúpia ao requiem e encerrando a cena de forma majestosa.
Não se pode falar sobre Lady Macbeth sem mencionar a cena do sonambulismo. E aqui houve um problema. Ao longo da ópera, Somenchuk fez, e muito bem, os vários dós presentes na partitura. No fim da cena do sonambulismo, porém, há um cruel ré bemol com un fil di voce, um agudo delirante. Não são todas as sopranos que o fazem: já vi, em gravações, sopranos fazendo o ré bemol uma oitava abaixo. Semenchuk não fez isso, mas o que saiu foi próximo a um grito. Foi uma pena, pois o restante da ária foi de grande beleza e riqueza dinâmica. Foi forte, intensa: mais uma vez, ela foi adequando o colorido da voz às sensações e ideias musicais que queria transmitir, foi da delicadeza extrema ao mais terrível som sombrio. Ela não tem o ré bemol, mas tem tudo o que uma grande intérprete precisa ter.
Não preciso me alongar discorrendo sobre a importância dos coros em Verdi, é assunto mais que conhecido, mas, quando o coro tem um desempenho como o da Bayerische Staatsoper, essa importância atinge maior relevo. Destaco Patria oppressa, cantada com rara beleza e delicadeza: uma sentida marcha fúnebre. No final da ópera, o brilho e o vigor de Macbeth, Macbeth ov’è? / Dov’è l’usurpator?
Foi um espetáculo instigante, envolvente e de grande qualidade cênica e musical em Munique! Verdi e Shakespeare em grande estilo.
Fotos (exceto a última): Bayerische Staatsoper.
Cofundadora do site Notas Musicais, também colabora com a revista eletrônica mexicana Pro Ópera e com o site italiano L’Ape Musicale. Fez parte do júri das edições 2020 e 2022 a 2024 do Concurso Brasileiro de Canto ‘Maria Callas’ e é membro do conselho de Amigos da Cia. Ópera São Paulo. Em 2017, fez a tradução, para o português, do libreto da ópera Tres Sombreros de Copa, de Ricardo Llorca, para a estreia mundial da obra, em São Paulo. Estudou canto durante vários anos e tem se dedicado ao estudo da história da ópera e do canto lírico.