Maria Callas e Anna Bolena: heroínas trágicas.

Com Anna Bolena, o Festival Amazonas de Ópera celebra o centenário de Maria Callas.

Anna Bolena (1830)
Ópera em dois atos
Música: Gaetano Donizetti
Libreto: Felice Romani
Teatro Amazonas, 20 de maio de 2023
Direção musical: Marcelo de Jesus
Direção cênica: André Heller-Lopes
Anna Bolena: Tatiana Carlos, soprano
Giovanna Seymour: Luisa Francesconi, mezzosoprano
Enrico VIII: Sávio Sperandio, baixo
Riccardo Percy: Francisco Brito, tenor
Smeton: Juliana Taino, mezzosoprano
Lord Rochefort: Murilo Neves, baixo
Hervey: Wilken Silveira, tenor
Amazonas Filarmônica
Coral do Amazonas

No centenário de Maria Callas, o 25º Festival Amazonas de Ópera (FAO) teve a feliz ideia de homenagear ‘a divina’ não apenas com uma gala, mas também com uma ópera. O título escolhido não podia ter sido mais feliz: Anna Bolena, o primeiro sucesso de Gaetano Donizetti, ausente dos palcos brasileiros desde os anos 1840.

Como é sabido dos amantes da ópera, foi Maria Callas, em 1957 no La Scala, sob a direção musical de Gianandrea Gavazzeni e cênica de Luchino Visconti, a grande responsável por reintroduzir este Donizetti no repertório dos teatros – e, de certa forma, a história se repete no Brasil de 2023. Hoje, quando ouvimos a imbatível gravação, realizada ao vivo, nos esquecemos de que, na época, isso representou muito mais que o resgate de um título: consolidou o resgate de uma forma de se fazer bel canto, que padecia sob as distorções dos intérpretes veristas. Foi Callas, ao longo da década de 1950, que reacendeu a chama do bel canto.

Outro aspecto que liga Callas a Anna Bolena é que, tanto no palco quanto na vida, Maria Callas foi uma espécie de heroína trágica, como a heroína de Romani e Donizetti. No palco, as inúmeras gravações, com suas intensas interpretações, nos dão testemunha disso. Na vida, assim era encarada e tratada pela mídia, que não deixava de noticiar os seus conflitos, as suas paixões, os seus amores. Sua grande tragédia pessoal foi, sem dúvida, a relação com Aristóteles Onassis, que a abandonou para se casar com Jacqueline Kennedy.

Segunda mulher do rei Henry VIII (1491-1547), Anne Boleyn (150?-1536), coroada rainha em 1533, era irmã de uma dama de companhia de sua antecessora, a rainha Catherine de Aragon, primeira esposa do rei. Impaciente com a incapacidade de Catherine de dar-lhe um sucessor, Henry resolveu trocá-la pela jovem Anne. Caso famoso, o divórcio e o novo casamento real trouxeram complicações políticas e religiosas, culminando no rompimento com Roma e na fundação da Igreja Anglicana.

Anne não resolveu, contudo, o problema do rei. O único fruto do casamento foi Elizabeth I (1533-1603), que viria a se tornar rainha da Inglaterra. Além disso, Anne não era tão submissa quanto o desejado. Acusada de traição, Boleyn foi condenada à morte e executada em 1536, três anos após a sua coroação. Dez dias depois, o rei já estava casado com Jane Seymour (1508-1537), antiga dama de companhia das suas duas antecessoras. O reinado de Seymour durou pouco mais de um ano: ela morreu após o parto de Edward, o futuro Edward VI, sucessor de Henry VIII.

Para escrever o libreto de Anna Bolena, Felice Romani se inspirou em duas tragédias: Henri VIII (1791), de Marie-Joseph Chénier, e Anna Bolena (1787), de Alessandro Pepoli. Romani e Donizetti mantiveram o caráter trágico em sua obra, sua Bolena é a típica heroína trágica que logo de saída é apresentada como tal: a sua primeira cena já prenuncia um desenlace trágico. Além disso, a personagem suscita a compaixão do público, como é comum no gênero.

Inocente? Culpada? Cada autor segue um caminho. Romani não deixa muito espaço para esse tipo de julgamento: Anna reluta, mas o rei é inflexível e tirano a ponto de levar a sua mente a se distanciar da realidade.

E é justamente nesse desfecho que, segundo afirma William Ashbrook em Donizetti and his Operas, reside uma das mais importantes inovações da ópera: em Anna Bolena, “pela primeira vez, Donizetti criou uma cena final suficientemente ampla para suportar todo o peso do clímax musical e emocional da obra. (…) O escopo da ‘aria-finale’ é expandido para preencher quase uma cena inteira; combinando aspectos da cena da loucura e da cena da morte, ela apresenta de forma vívida os estágios da retirada de Anna da realidade insuportável, passando pelo desejo de libertação, até o triunfo, uma vez que a sua razão é restaurada, enquanto ela encontra a força espiritual não para amaldiçoar, mas para perdoar aqueles que a levaram à morte”.

Também Maria Callas encontrou força para perdoar Onassis. Após a separação, voltaram a se comunicar e a ter uma relação de amizade. Isso durou até a morte de Onassis, em Paris, em 1975. Callas nunca se recuperou dessa perda, e morreu dois anos depois, na mesma cidade, aos 53 anos.

Maria Callas como Anna Bolena (1957)

Com genialidade, fazendo uso de uma abordagem psicológica, o diretor cênico André Heller-Lopes conseguiu entrelaçar, no palco, Maria Callas e Anna Bolena, mantendo o caráter clássico da obra e a teatralidade do bel canto. E ele o fez deixando a ideia clara desde o primeiro momento. Durante a abertura, foram projetadas primeiro fotos de Callas e Onassis; depois de Callas, Jackie Kennedy e Onassis; em seguida, o cartaz e algumas imagens da produção de 1957, com Callas; por último, Callas usando um vestido preto com flores vermelhas, com o qual a protagonista da ópera haveria de aparecer dali a poucos minutos.

Para concretizar esse entrelaçamento, Heller-Lopes reuniu imagens do La Scala, elementos da legendária produção de Visconti, conhecidas roupas usadas por Callas e Jackie Kennedy e uma delimitação no palco, como se fosse um tabuleiro, separando a realidade do jogo de cena.

Tatiana Carlos, no vestido igual ao de Callas

Foram eficientes e muito bem confeccionados os figurinos de Melissa Maia. Enquanto os personagens masculinos usam roupas de época, Anna entrou usando o vestido de Maria Callas exibido nas projeções da abertura. Trata-se de um vestido de passeio, não figurino, de modo que se construiu a imagem de Callas revivendo aquele momento histórico.

Usando no primeiro ato um vestido vermelho (com toda a simbologia que essa cor carrega) e, no segundo, um verde, Giovanna Seymour destaca-se dos demais personagens, apontando para o seu futuro real (logo que entra, antes da sua sortita, contempla o trono vazio). No final, ela aparecerá com o tailleur de Jackie Kennedy, de modo que Giovanna e Jackie se confundem.

Smeton é caracterizado como uma espécie de joker americano triste e ingênuo, um Pierrot americano: seu figurino traz, nas mangas, a bandeira dos Estados Unidos. Funciona como um elemento de ligação entre a tragédia “americana” de Callas e a palaciana de Bolena, na qual o ingênuo e apaixonado pajem se deixou enganar pelo rei, mentiu e acabou por entregar a rainha que queria salvar.

De camisa branca, calça preta e botas, no segundo ato, após ter se reencontrado com Anna, Percy se revela o herói romântico preso à sua memória e ao amor de juventude.

Juliana Taino como Smeton

O cenário inteligente e bem-acabado de Renato Theobaldo delimita o ambiente da ópera, do jogo cênico, em um retângulo de luzes de LED. Ao fundo, no início aparece a imagem dos camarotes do La Scala pendente em um tecido, uma imagem distorcida, com rugas bem definidas nas laterais, remetendo a uma memória distorcida, que vem a partir da cortina de um teatro. Entre as cenas, a excelente iluminação de Fábio Retti muda, alterando um pouco o aspecto dessa imagem, que depois é virada de lado, tornando-se circular, ainda mais distorcida, como que vinda de uma memória vertiginosa.

Tatiana Carlos e Luisa Francesconi

No segundo ato, não há imagem no fundo do palco. Durante o dueto entre Anna e Giovanna, velas formam um X. No centro, a cama de Anna, dentro de cortinas vermelhas. Referência ao impasse religioso gerado pelo casamento do rei com Anna? Referência ao sacrifício que se estava preparando, no qual a própria Anna seria a oferenda? Dessa vez, Anna está com o vestido usado por Giuditta Pasta na estreia da ópera, em 1830. Cama e velas somem e o palco fica frio, sombrio, preparando-nos para a apoteose da última cena.

Na cena final, de grande beleza, o cenário da mesma cena na mítica produção de Visconti aparece sobre telas ou tecidos transparentes, em camadas, formando uma imagem que ao mesmo tempo cria um efeito de profundidade e de falta de nitidez, uma imagem nebulosa, cujos contornos foram deformados pela memória, e na qual diversas memórias se misturam. É uma cena fantasmagórica, toda feita de transparências, de vultos, de projeções. Combina perfeitamente com os delírios de Anna, que mistura o seu passado ao presente do qual quer fugir, que revive suas culpas, seus amores, mas tudo de forma distorcida, como a imagem. Combina, também, com o turbilhão que se abateu sobre Callas, que convivia com a lembrança de um passado glorioso, enquanto a sua vida amorosa desmoronava, e a artística praticamente não existia mais. O belo coro feminino entra com todas as cantoras usando véus escuros, tornando a cena ainda mais forte e reforçando o caráter fantasmagórico: a tragédia já está anunciada, ou melhor, as tragédias: de Anna e de Callas.

O coro feminino na cena final

Para a sua cena final, Anna chega usando o vestido que Callas usou na produção do La Scala. Em seu belo cantabile Al dolce guidami, ela dialoga com um corne inglês obbligato, que foi tocado do palco, aumentando ainda mais a beleza da cena, e salientando a linha melancólica e triste do instrumento.

Por meio do mesmo casal, casam-se Giovanna e Enrico, Jackie Kennedy – com o seu inconfundível tailleur rosa – e Onassis. Entre as transparências do cenário, misturam-se as imagens do casal, que parece ter vindo do além, de uma memória vultuosa, do final da Anna Bolena de 1957, e aquelas da morte de Bolena e da morte de Callas. As mesmas flores do casamento são as flores do velório.

Para fechar com chave de ouro, a foto da grande diva é projetada.  

Francisco Brito e Murilo Neves

O elenco contou com um bom time de comprimários. Tanto o tenor Wilken Silveira quanto o baixo Murilo Neves tiveram um eficiente desempenho como Hervey e Rochefort, respectivamente. A talentosa mezzosoprano Juliana Taino e o tenor argentino Francisco Brito brilharam como Smeton e Percy: deles vieram os melhores momentos de bel canto. Brito encantou o público com a sua agilidade, o brilho do seu timbre e o seu belo fraseado. Taino estava em ótima forma tanto vocal quanto cênica: a cavatina de Smeton nos aposentos de Anna (Un bacio ancora) foi um dos melhores números musicais da noite.

Sávio Sperandio

No trio protagonista, destacou-se o Enrico VIII de Sávio Sperandio. Com voz poderosa, afinação precisa e expressividade no fraseado, seu Enrico não teve um único momento de fraqueza: foi um personagem solidamente construído e que se fez presente do começo ao fim, cênica e vocalmente. Encarnou um Enrico frio, sarcástico, que beira a grosseria e chega até a esboçar um certo prazer pelo mal que estava preparando para Anna.

Tatiana Carlos em vestido igual ao usado por Callas na cena final.

No papel-título, a soprano Tatiana Carlos, com problemas de afinação principalmente na região aguda e apresentando falta de homogeneidade entre os registros, não conseguiu defender a contento a linha de sua heroína. Sua voz tem evidentes qualidades, sobretudo na região central, mas parecia ter vontade própria, corria desordenada. Um papel de bel canto foi para ela, certamente, um importante passo, talvez um alerta, e haverá de guiá-la na busca de aprimoramento técnico e de um maior controle sobre o seu instrumento.

No elenco de uma produção brasileira homenageando Maria Callas, é difícil imaginar um nome mais adequado que o de Luisa Francesconi. Evidentemente, não o digo fazendo uma risível comparação, mas sim porque a mezzosoprano é uma artista séria, que ocupa o mais alto nível no cenário nacional. Inteligente, está sempre atenta à construção da sua personagem; cuidadosa, está sempre atenta ao texto (e a sua dicção clara testemunha isso) e ao fraseado. Como Seymour, exibiu uma voz firme, bem projetada. Lamentavelmente, em decorrência de uma forte gripe, no dia 20 ela apresentou alguma dificuldade para sustentar os agudos. Ao longo das quase quatro horas de uma ópera feita na íntegra, sem qualquer corte, sua voz deu sinal de cansaço. Some-se a isso a impressão de que a sua voz parece ter evoluído se tornado um pouco pesada para o papel, aumentando a dificuldade nesse momento de adversidade. De qualquer forma, como sempre, sua personagem conseguiu se impor.

Luisa Francesconi

À frente da Amazonas Filarmônica, Marcelo de Jesus demonstrou intimidade com o repertório de bel canto. Seu trabalho com as madeiras foi admirável. Também o Coral do Amazonas foi um dos pontos altos da noite, sobretudo o coro feminino da cena final. Faltou, apenas, alguma atenção com os cantores, que estavam enfrentando papeis cujas dificuldades não eram pequenas. Em alguns momentos, como na sortita de Seymour, o andamento foi um tanto lento, dificultando uma administração do ar por parte de Luisa Francesconi. Também no dueto entre Seymour e Enrico, houve um desacerto entre o regente e os dois cantores.

A opção de Marcelo de Jesus por fazer a ópera na íntegra, sem cortes, é louvável, mas parece ter sido demasiado para o elenco que tinha em mãos e, consequentemente, para o público. Uma parte do público condenou Anna antes mesmo do seu julgamento, perdendo uma bela cenografia, perdendo toda a poesia da cena final. Não podemos nos esquecer que estamos tratando de uma ópera de bel canto e, como dizia Maria Callas, bel canto é canto!

Confesso ao leitor que me foi um tanto penoso escrever sobre a Anna Bolena do FAO. Isso porque senti uma discrepância grande demais entre os aspectos cênico e musical, e, em um espetáculo lírico, me é difícil isolar esses dois aspectos. Para mim, o drama lírico é o resultado do conjunto, da cena que brota da música, da música que emerge da cena. Não consigo ver um bom ator em um mau cantor, por exemplo. No caso dessa Anna Bolena, para conseguir assistir à ópera até o fim, tive que me prender à cena, buscando nela um apoio – o que é uma atitude quase “anti bel canto“. Não à toa, na imagem projetada no final da ópera, Maria Callas apareceu levando a mão à cabeça! Por isso, essa produção deveria viajar para outros teatros, de preferência com outro elenco (principalmente uma Anna tecnicamente mais bem preparada). Se estivéssemos na Europa, isso certamente aconteceria. Será que algum dia a mentalidade brasileira, que descarta as produções tão logo se fechem as cortinas, vai mudar?

Fotos: Saleyna Borges.

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