Na tempestade “Guarani”, trovejou e não choveu

A quatro mãos, Danielle Crepaldi Carvalho e Leonardo Marques analisam nova produção de ópera de Carlos Gomes no Theatro Municipal de São Paulo.

Il Guarany (O Guarani), 1870
Ópera em quatro atos

Música: Antônio Carlos Gomes (1836-1896)
Libreto: Antonio Scalvini (1835-1881) e Carlo D’Ormeville (1840-1924)
Base do libreto: O Guarani, romance de José de Alencar (1829-1877)

Theatro Municipal de São Paulo

12 e 14 de maio 2023

Direção musical: Roberto Minczuk
Direção cênica: Cibele Forjaz (com base em concepção de Ailton Krenak)

Elenco:
Peri: Atalla Ayan, tenor
Cecilia: Nadine Koutcher, soprano
Gonzales: Rodrigo Esteves, barítono
Cacique: Licio Bruno, baixo-barítono
Don Alvaro: Guilherme Moreira, tenor
Don Antonio de Mariz: Andrey Mira, baixo-barítono
Ruy-Bento: Carlos Eduardo Santos, tenor
Pedro: Orlando Marcos, baixo
Alonso: Gustavo Lassen, baixo
David Vera Popygua Ju, ator
Zahy Tentehar Guajajara, atriz

Coro Lírico Municipal
Orquestra Sinfônica Municipal
Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá Kyre’y Kuery

Andrey Mira, Nadine Koutcher e Atalla Ayan

Música irregular

Por Leonardo Marques

A ópera Il Guarany (O Guarani), de Antônio Carlos Gomes sobre libreto de Antonio Scalvini e Carlo d’Ormeville, paira em alto grau no imaginário brasileiro: guarda certa mística, talvez pela enorme popularidade dos acordes iniciais da sua abertura, conhecida no país inteiro por meio do programa radiofônico A Voz do Brasil; talvez pela dimensão alcançada em sua estreia mundial (1870) no mítico Teatro alla Scala, de Milão, onde obteve grande sucesso. Por quaisquer que sejam os motivos, Il Guarany é um grande marco para a música brasileira.

Talvez por isso tenha causado certo estardalhaço a notícia de que a encenação da ópera no Theatro Municipal de São Paulo teria um viés decolonial – fato que gerou reclamações de uma parcela do meio lírico brasileiro e de melômanos em geral. E aí, não deu outra:

A Folha de São Paulo publicou uma matéria com claro objetivo de polemizar a questão; a dramaturgista do TMSP, Ligiana Costa, respondeu a matéria em artigo publicado no site da Revista Concerto; e, a essa altura, as redes sociais, como costuma acontecer nos tempos atuais, já estavam agitadíssimas, com muita gente querendo defenestrar quem pensa diferente de si. Uma verdadeira “tempestade”.

Se esse tipo de coisa costuma acontecer muitas vezes entre polos opostos (direita x esquerda, por exemplo), o Theatro Municipal de São Paulo conseguiu a proeza de criar uma disputa ideológica entre pessoas que se dizem pertencentes ao mesmo polo político (vai entender…).

Sim! Porque o próprio TMSP, a organização social que o administra (Sustenidos) e quem mais fala por esses dois entes também têm a sua parcela de responsabilidade na criação de toda essa celeuma. Ora, quantas vezes tais dirigentes já encheram a boca para dizer “estamos fazendo história” ou coisa que o valha? Basta pensar na produção de Aida do ano passado, e hoje o que se lembra dela é que a soprano brasileira trazida do exterior para ser a primeira mulher negra a cantar a personagem-título da ópera de Verdi em São Paulo ainda não estava vocalmente pronta para assumir o papel. De que adianta “fazer história” desse jeito?

Foi o caso novamente agora. Quando se diz e se enfatiza esse tipo de coisa, cria-se uma expectativa acima do normal, e, em tempos ansiosos com esses que vivemos, isso acabou gerando críticas a um espetáculo que nem havia subido ao palco!

Rodrigo Esteves (centro da foto), Gustavo Lassen e Carlos Eduardo Santos

Quando a ópera finalmente estreou, o que se viu em cena não foi nada além de uma encenação como outra qualquer, de qualquer outra ópera, com erros e com acertos – como ocorre na grande maioria das produções realizadas no Brasil. No caso, trata-se de uma encenação que faz uma releitura da obra, mas que não chega a deturpá-la como muitos temiam. Uns gostarão mais, outros torcerão o nariz. Nada diferente do habitual, portanto.

A única “novidade” real inserida na presente encenação, para além da releitura, foi a inclusão de grupos musicais indígenas, a Orquestra e o Coro Guarani do Jaraguá Kyre’y Kuery, que tocam e cantam em algumas poucas intervenções ao longo da récita, e mais uma vez depois de encerrada a ópera. Aqui, sim, pode haver um incômodo maior por parte do público melômano mais tradicional, pois a música realizada pelo grupo, ainda que detenha o seu valor e o seu interesse, não tem absolutamente nada a ver com a da ópera. São linguagens musicais totalmente distintas e que não dialogam.

Dessas intervenções, a que mais me incomodou foi a última, que aconteceu quando a ópera propriamente dita já havia terminado, e o principal motivo do incômodo foi a utilização de uma amplificação exagerada em um ambiente acusticamente projetado para se ouvir a voz humana ao natural. Para além disso, tudo leva a crer que a utilização de música diferente daquela originalmente composta para a ópera é um fato isolado, específico desta produção. É difícil imaginar que algo semelhante possa ocorrer em outras obras tradicionais, como as que se verão ainda este ano no mesmo teatro (La Fanciulla del West e O Navio Fantasma).

Minha amiga Danielle Crepaldi Carvalho, que me honra com a sua parceria nesta resenha, esmiuçará adiante as questões relativas à encenação. Atenho-me aqui à interpretação musical. E o que pude perceber na estreia do dia 12 de maio é que, enquanto quase todos se preocupavam com a encenação, a qualidade musical deixou a desejar, e o resultado final foi um tanto irregular.

A Orquestra Sinfônica Municipal abriu a noite com uma belíssima intepretação da abertura da ópera. Foi um bom presságio que durou pouco. Logo no começo do primeiro ato, pôde-se perceber claramente desencontros entre o conjunto e o Coro Lírico Municipal. Além de não conseguir resolver esse tipo de problema, Roberto Minczuk empregou em boa parte da récita de estreia um andamento acelerado que não valorizou a música de Gomes, além de voltar a pecar pelo excesso de volume do conjunto.

O regente, inclusive, parece ser totalmente desinformado sobre a ópera em São Paulo a.M. (antes de Minczuk), pois, em seu texto no programa de sala, afirmou que o TMSP “não realiza uma produção de Carlos Gomes há décadas (…)”. Ou seja, ele simplesmente ignora que, em 2016, a casa apresentou a ópera Fosca em montagem completa, com regência de Eduardo Strausser e encenação de Stefano Poda.

Descontados os desencontros e acelerações, o Coro Lírico exibiu boa sonoridade em passagens como L’oro è um ente sì giocondo (dos aventureiros) e Aspra, crudel (dos Aimorés), além da grande cena de invocação ao Deus dos Aimorés.

Guilherme Moreira e Coro Lírico Municipal

Nas partes terciárias, o baixo Orlando Marcos foi um Pedro discreto, enquanto o também baixo Gustavo Lassen não repetiu na pele do aventureiro Alonso o seu belo desempenho do ano passado em O Amor das Três Laranjas. Aproveitaram mais as suas pequenas partes os tenores Carlos Eduardo Santos (um Ruy Bento seguro) e Guilherme Moreira, que, como Don Alvaro, exibiu um material vocal que, com a devida lapidação, pode lhe levar a alçar grandes voos.

O baixo-barítono Andrey Mira exibiu um bonito timbre e boa presença como Don Antonio, mas nitidamente carece de melhor preparo técnico, o que resultou em dificuldades tanto na região mais grave quanto naquela mais aguda do seu registro.

Já o também baixo-barítono Licio Bruno utilizou bem a sua experiência para interpretar uma estranha espécie de Cacique antropólogo, mas, vocalmente, não esteve em um bom dia, dando a impressão de certa rouquidão, além de apresentar dificuldades para emitir adequadamente as notas mais graves do personagem.

A parte do vilão Gonzales não me pareceu ter se encaixado perfeitamente à voz do barítono Rodrigo Esteves, mas, também se utilizando da sua vasta experiência, o artista cantou com segurança, ainda que limitado durante boa parte da récita por ter que ficar parado em cima de uma espécie de carrinho. A canção do aventureiro, Senza tetto, senza cuna, foi bem defendida.

A soprano bielorrussa Nadine Koutcher demonstrou-se uma intérprete inexpressiva como Cecilia. Ela tem as notas e bom domínio técnico, mas só. Como a própria personagem, por suas características, também não chega a ser um exemplo de expressividade, Koutcher ficou na média. Talvez aqui a questão que mais se deva colocar seja: era mesmo necessário trazer uma cantora do exterior para interpretar uma parte como a de Cecilia?

Por fim, Atalla Ayan. O tenor é dono de uma voz privilegiada, e é esta voz que garante a sua interpretação de Peri, a melhor da noite de estreia. O problema é que Ayan cantou forçando o tempo todo, aproximando-se demais do limite. Isso ocorreu pelo óbvio motivo de que a parte de Peri é mais pesada que o seu instrumento. Assim, passagens como o dueto Sento una forza indomita e a ária Vanto io pur até tiveram um resultado satisfatório, mas sem apresentar nem o brilho, nem o frescor que geralmente observamos em sua voz.

Atalla Ayan, David Vera Popygua Ju e Rodrigo Esteves

Do romance à encenação

Por Danielle Crepaldi Carvalho

Como Leonardo Marques já pontuou acima, rios de tinta (ou de bits) foram gastos nas últimas semanas a respeito da encenação de Il Guarany no Theatro Municipal de São Paulo.

A celeuma é compreensível. A obra adapta o romance histórico homônimo de José de Alencar, o qual dialogava diretamente com o esforço de construção de uma identidade nacional que tinha como elemento chave o indígena, desenhado para tanto com traços europeus, de modo a simbolicamente atrelar-se a nacionalidade brasileira à civilização do Velho Mundo. A violência desta imposição cultural vem sendo levantada pela historiografia de forma contundente nas últimas décadas, e é sistematizada de forma clara numa obra fundamental a este respeito, O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930, publicada por Lilia Moritz Schwarcz em 1993.

A literatura teve um papel fundamental na elaboração e na circulação de uma mítica atrelada às origens do Brasil, nas décadas subsequentes à sua Independência, assim como a ópera italiana cooperou no esforço de unidade nacional daquele país. No Brasil, as diretrizes formuladas pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foram seguidas com afinco pedagógico por José de Alencar na elaboração do romance indigenista O Guarani (1857).

A história se passa num rincão do Rio de Janeiro no princípio do século XVII. Seus protagonistas são Peri, um indígena do povo Goitacás (que, a propósito, não pertencia à etnia Guarani), e Cecília (ou Ceci), mocinha cândida filha de um dos próceres da nação, Dom Antônio de Mariz, fidalgo português que participara da fundação do Rio de Janeiro. Peri salva Ceci dos Aimorés e se apaixona por ela tal e qual um cavaleiro medieval. A tópica e os traços dos personagens remetem a esse modelo anterior de abnegação e entrega, que culmina, no livro de Alencar, na cristianização de Peri e na fuga de ambos, no interior de um frágil bote em meio a ondas bravias – a mítica da fundação da nacionalidade segundo Alencar constrói-se aí, entre esse indígena europeizado e a brasileirinha filha de europeus, tendo como lume o Deus do cristianismo.

Outro par romântico da história, que também coloca em movimento o ideário de nação defendido por Alencar, é a mestiça Isabel, filha bastarda de Dom Antônio, e Álvaro de Sá, antigo apaixonado de Ceci, cavaleiro e capataz do fidalgo – casal este que sucumbe tragicamente também segundo a tópica dos romances de cavalaria: ele morre em combate, o que a leva ao suicídio. Na economia da obra, esta jovem descrita como amorenada e sensual, filha de uma indígena, também não poderia restar para compor o ideário de nação almejado. Pregava-se, então, o completo apagamento do elemento negro, e mesmo o mestiço era repudiado: naquela época, vigorava um pseudo-cientificismo segundo o qual o branco ocupava o topo da escala evolutiva; o preto, a sua base; e a mestiçagem levava invariavelmente à degenerescência. Por isso Peri é um indígena com tantos traços físicos e psicológicos europeus.

Ter tudo isso em mente é necessário para que compreendamos as complicações que uma encenação da versão operística dessa história pode apresentar para um encenador contemporâneo. E então, embora os traços gerais da trama sejam mantidos, o Peri de Scalvini e d’Ormeville e da música de Gomes perde ainda mais a carnadura indígena presente no romance de Alencar. Entregues um ao outro, em meio ao primeiro e principal dueto, Sento una forza indomita, os amantes estão descobrindo o amor como os protagonistas de Roméo et Juliette, de Gounod (1867), que os antecede em apenas três anos.

Sucesso europeu, essa ópera de Carlos Gomes participa de uma tradição operística vicejante, que desenha os caracteres de forma tipificada – Ceci é a mocinha frágil, e Peri, o seu herói –, impregnando-lhes da substância mais fluida e profunda que existe, a música (e de sua contraparte, o canto). Nós, o público, somos levados de roldão por essa tempestade de música de moldes italianos (embora composta por um brasileiro) que dilui a personagem de Peri de forma ainda mais contundente do que fizera José de Alencar.

Licio Bruno, Atalla Ayan, Nadine Koutcher e Coro Lírico Municipal

Dadas essas questões, o encenador que se propõe a encenar Il Guarany na contemporaneidade depara-se com um rol de problemas. Como caracterizar Peri? Reviso a encenação da ópera ocorrida em 2007 no Teatro da Paz, em Belém, em que se estereotipa o indígena, fazendo-o vermelho, de cabelo tigelinha e com um cocar de espanador que já irritara o cronista Oscar Guanabarino no recôndito ano de 1909, quando ele resenhou um filmezinho carioca protagonizado pelo personagem.

Hoje, em que estão felizmente em voga debates sobre decolonialidade, está fora de cogitação dobrar-se a esta tipificação nefasta, ou acachapar os muitos povos indígenas brasileiros numa caracterização unívoca. A diretora Cibele Forjaz e o líder indígena, ambientalista e filósofo Ailton Krenak propõem a fuga desta cilada, realizando-a com relativo sucesso, ao menos do ponto de vista antropológico.

Na encenação em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo, imagens de Denilson Baniwa atravessam a cena e impregnam as bordas do palco e o teto do teatro, envolvendo o canto lírico com a arte dos povos originários. Por vezes, há grande beleza nesta intervenção, como quando o desenho faz nascer uma árvore do seio da índia morta e ressuscitada no palco, chancelando a simbiose que os povos indígenas têm com a natureza.

A encenação, no entanto, por vezes desliza do poético ao panfletário. Começa com um questionamento pertinente, exposto em um banner (“O que é ser civilizado?”), para chegar, no fim da récita, à demanda pela demarcação da reserva Yvyrupa.

Do ponto de vista dos figurinos (de Simone Mina), há acerto de modo geral. Trajes tecidos com cordas que remetem a vestimentas indígenas, sem calcarem numa etnia específica, vestem a personagem de Peri (tanto o duplo, interpretado pelo ator indígena David Vera Popygua Ju, quanto o tenor responsável por cantar a parte do protagonista, Atalla Ayan), e também a atriz indígena Zahy Tentehar Guajajara, que interpreta a personagem antropomorfizada proposta pela encenação, metade onça, metade índia, e que é uma espécie de entidade protetora de Ceci, inexistente na trama operística. Ambos os indígenas usam pinturas faciais, mas não o tenor.

No terceiro ato, surge em cena o retumbante coro dos vitoriosos Aimorés, que se gabam da sua força – aquele povo acabara de capturar Ceci e, em seguida, Peri, depois de um combate cruento cuja origem remete ao assassinato acidental de uma indígena dessa etnia por parte de um homem branco não identificado (no romance de Alencar, o assassino é o próprio filho de Dom Antônio, inexistente na ópera). É muito interessante a maneira como os Aimorés, aqui, são apresentados não como vilões, mas também como vítimas.

Não se justifica, todavia, por que parte dos aventureiros se imiscui no coro dos Aimorés, cantando como se integrassem este grupo indígena. Se se impõe a necessidade de mais vozes, era preferível que eles ficassem no fundo do palco, distantes dos olhos do público, pois a sua presença ali não tem qualquer sentido dramático nesta que é a cena mais bela da ópera.

À frente, Andrey Mira e Atalla Ayan; atrás, representação de Cecília como Santa, lembrando o romance de José de Alencar

Além dos já mencionados Aimorés e Guaranis, há um compreensível gesto crítico ao tecer-se Ceci ora como uma bonequinha de porcelana, com lágrimas de glicerina coladas às faces e vestidos brancos de babados feitos de cetim, ora como santa (lembrando que, no romance, Peri a vê como a personificação de uma santa). Já os aventureiros vestem ternos camuflados alusivos à ganância dos figurões das altas rodas mundanas – afinal, como assevera um dos trechos da obra de Alencar projetados em cena, eram homens que faziam de tudo por dinheiro.

Zahy Tentehar Guajajara e Nadine Koutcher

A preocupação de Krenak, exacerbada nas reportagens que antecederam a estreia do espetáculo, era de desmitificar Peri, dar-lhe carnadura humana. Isso inegavelmente acontece nesta montagem, em que indígenas guaranis estão objetivamente em cena. Há, sem dúvida, boas intenções na sua concepção do espetáculo, mas que nem sempre se revelam escolhas precisas do ponto de vista da economia cênica. Introduzir-se como contraponto a uma ária apaixonada de Ceci trechos de filmes dos Bororós com intertítulos alterados, é de um cômico que resvala ao mau gosto, e, motivando o riso do público, chega a ser ofensivo com a soprano que está a se digladiar com complicadas coloraturas.

Retirarem-se do palco os rebatedores é outra violência para com os cantores. Embora seja salutar a intervenção na cena operística de diretores oriundos da cena teatral, esta obra torna patente o quanto faz falta, entre os encenadores, alguém que conheça profundamente o canto lírico e as suas necessidades de natureza acústica.

No que diz respeito à direção cênica, observamos uma certa rigidez, sobretudo no que concerne à personagem de Gonzales, que entra e sai de cena montado num carrinho conduzido por contrarregras. O objetivo da direção era transformar a personagem num monumento facilmente derrubável, mas esse sentido é esvaziado na encenação. Ao público resta a impressão de que o jogo cênico caminha na contracorrente do libreto, que caracteriza Gonzales como um ser passional, desejoso da posse carnal de Ceci. A propósito, o entra e sai de contrarregras várias vezes ao longo do espetáculo contribui para poluir bastante a cena, explicitando alguma deficiência da cenografia.

Coro Lírico Municipal

A presença dos duplos em cena, se funciona para trazer aos olhos do público um indígena como indígena, em não raras vezes interrompe a curva dramática da história. Separar Peri e Ceci em algumas cenas por meio de uma grande broca de exploração mineral, e entremeá-los pelos olhares críticos e blasés dos seus duplos indígenas, se funciona do ponto de vista crítico, atrapalha o mergulho do público na emoção da música.

Em entrevista, Cibele Forjaz deixou claro que o seu desejo era realizar em cena um contraponto entre a idealização do indígena proposta na ópera de Carlos Gomes e o indígena real. Ao fazê-lo, em diversos momentos coalhou a cena de elementos heterogêneos, sem lhes dar organicidade.

Assim, entre alguns erros e outros tantos acertos, na verdadeira tempestade que se criou a respeito desta nova montagem de Il Guarany, pode até ter trovejado, mas a chuva ficou para outra ocasião.

Fotos: Stig de Lavor.

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