Obra-prima de Mozart recebe encenação repleta de erros dramatúrgicos em meio à interpretação musical irregular.
Don Giovanni (1787)
Ópera em dois atos e nove quadros
Música: Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791)
Libreto: Lorenzo da Ponte (1749-1838)
Bases do libreto: outro libreto então já existente, escrito por Giovanni Bertati (1735-1815) para uma ópera de Giuseppe Gazzaniga (1743-1818), e a tragicomédia Dom Juan ou le Festin de Pierre, de Molière (1622-1673) / O libreto de Bertati foi, por sua vez, baseado na peça teatral El Burlador de Sevilla Y Convidado de Piedra, de Tirso de Molina (1579-1648)
Theatro Municipal de São Paulo
02 e 03 de maio de 2025
Direção musical: Roberto Minczuk
Direção cênica: Hugo Possolo
Cenografia: Vera Hamburger
Figurinos: Elisa Faulhaber
Iluminação: Miló Martins
Elenco (02 e 03/05, respectivamente):
Don Giovanni: Hernán Iturralde, baixo-barítono / Homero Velho, barítono
Leporello: Michel de Souza, barítono / Saulo Javan, baixo
Donna Anna: Camila Provenzale, soprano / Ludmilla Bauerfeldt, soprano
Donna Elvira: Luisa Francesconi, mezzosoprano / Monique Galvão, mezzosoprano
Don Ottavio: Anibal Mancini, tenor / Jabez Lima, tenor
Zerlina: Carla Cottini, soprano / Raquel Paulin, soprano
Masetto: Fellipe Oliveira, baixo-barítono / Rogério Nunes, baixo
Comendador: Savio Sperandio, baixo / Sérgio Righini, baixo
Coro Lírico Municipal (Hernán Sánchez Arteaga)
Orquestra Sinfônica Municipal
Confesso: nunca vi um encenador aproveitar o seu texto de apresentação de uma montagem de ópera em um programa de sala para externar, ao mesmo tempo, toda a sua insegurança e toda a sua arrogância. Começo esta resenha citando dois parágrafos do referido texto de Hugo Possolo, diretor responsável pela encenação da ópera Don Giovanni, de Wolfgang Amadeus Mozart, no Theatro Municipal de São Paulo:
“Oferecer uma versão que ligue o público à sua atualidade é um gesto político que, certamente, encontrará resistências. Enfrentar a sisudez faz parte do ofício de palhaço, assim como ter paciência com a mediocridade. Porém, quando a graça desmonta mitos, o prazer do riso é ainda mais prazeroso. Talvez seja até um estímulo ver que gera efeitos incômodos naqueles que se acreditam ser os viúvos e as viúvas de Mozart”.
“Também não é novidade que, em muitos países, trechos ou mesmo a ópera inteira sejam traduzidos para a língua local, na intenção de se comunicar melhor e mais diretamente com a plateia, o que somente valoriza a obra. Ou seja, não há inovação no que estamos fazendo nesta encenação, apenas não estamos nos submetendo a uma visão provinciana que se acredita intelectualmente superior, que gera debates infrutíferos e não está preocupada com o sentido público da arte”.
Como se pode verificar, a preocupação antecipada do encenador com “resistências” e a citação irônica a “viúvos” e “viúvas” de Mozart (provavelmente se referindo a quem gostaria de assistir à obra original do compositor austríaco e do libretista Lorenzo da Ponte) parecem já demonstrar a sua insegurança em relação à mutilação parcial e aos enxertos que ele promoveu em Don Giovanni.
Pior é a arrogância: quando considera quem quer que discorde da sua “versão” uma pessoa sisuda, medíocre e provinciana, Hugo Possolo (que, a julgar por todo o seu discurso, parece militar no campo político da esquerda) comete o mesmíssimo erro de parte considerável da chamada “direita”: demonstra não aceitar contestações nem questionamentos. Pelo visto, o diretor não está nem disposto a debater, já que os debates, segundo as suas próprias palavras, seriam “infrutíferos”. Para ele, é a sua visão que vale; é ela a certa. E não se toca mais no assunto.
A própria citação de que outros países também traduzem “trechos ou a ópera inteira” é uma autodefesa antecipada para possíveis questionamentos do público e da crítica, além de ser também um argumento vago, sem qualquer exemplo prático de países ou grandes teatros que tenham utilizado tal expediente recentemente. Vale registrar que, via de regra, costumam ser traduzidas apenas operetas e os trechos falados de obras no estilo do Singspiel alemão, ou seja, obras que mesclam passagens faladas/declamadas aos números musicais (árias, duetos, etc.). Há poucos dias, aliás, tivemos exemplos perfeitos: no Rio de Janeiro (TMRJ), a opereta A Viúva Alegre foi totalmente cantada em português; e em São Paulo (T. São Pedro), Fidelio (um Singspiel) teve os seus trechos falados traduzidos e ligeiramente adaptados para atender à proposta cênica. No caso das óperas totalmente cantadas, no entanto, é bem mais raro haver traduções.
Se o problema da presente produção de Don Giovanni no TMSP fosse apenas o discurso de Hugo Possolo, este seria um problema menor. A questão é que a sua proposta cênica não se sustenta de pé.
Encenação abusa de graves falhas dramatúrgicas

O Don Giovanni em cartaz no Municipal paulistano não é o de Mozart/da Ponte, mas uma obra manipulada, alterada e, em vários momentos, sem sentido dramático. Em sua “versão”, Hugo Possolo corta todo o recitativo secco da ópera (aquele acompanhado pelo cravo), substituindo-o por diálogos falados em português, enquanto os números musicais continuam em italiano. O diretor utiliza nos diálogos uma parte do texto original dos recitativos (traduzido para o português), e acrescenta enxertos da sua própria autoria.
A maioria desses enxertos busca um riso fácil, por vezes utilizando piadas baratas – em contraste com o humor sofisticado de Lorenzo de Ponte. Alguém poderia ter avisado a Possolo que Don Giovanni não é uma ópera-bufa, mas um dramma giocoso, ou seja, um drama no qual o humor também se faz presente. Trechos importantes da obra, como as duas árias de Donna Anna, as duas de Don Ottavio, as duas de Donna Elvira e todo o final da ópera a partir da entrada da estátua do Comendador deixam isso muito evidente. Há por parte do diretor uma falta absoluta de entendimento do gênero, que leva a graves falhas de natureza dramatúrgica. Listemos as principais:
- Entre a abertura sinfônica e a introdução Notte e giorno faticar (que normalmente são executadas sem pausa para aplausos devido à engenhosa arquitetura musical do compositor), Possolo quebra o clima dramático e musical enxertando uma fala totalmente desnecessária para Leporello.
- Logo em seguida, Don Giovanni e Donna Anna saem da casa desta, após a tentativa de estupro, por portas distantes uma da outra, cada qual em uma lateral do palco. O texto cantado, no entanto, sugere que eles deveriam estar juntos (ela, chamando pela criadagem em socorro; ele, tentando calá-la).
- Logo depois da cena em que Donna Elvira salva Zerlina de cair nas garras de Don Giovanni (ária Ah fuggi il traditor), sem nenhum dos personagens da ópera no palco, Possolo enxerta uma cena muda na qual um figurante faz malabarismos por um ou dois minutos em mais uma quebra da narrativa. O sentido disso, se é que existe um sentido, tem função dramática nula.
- Durante a primeira ária do tenor, Dalla sua pace, talvez achando que o público precisasse de uma distração (como se a música de Mozart fosse uma chateação), Possolo inclui na parte mais elevada do cenário algumas figurantes fazendo evoluções com fitas.

- Durante a cena final do primeiro ato, duas esquisitices: quando Zerlina pede socorro, Masetto já está ao lado dela, enquanto Don Giovanni não está mais ali; e, ao cair da cortina, quando Don Giovanni deveria fugir junto com Leporello do cerco dos demais personagens, vemos pistolas apontadas para ele, e assim o ato termina – ora, se termina assim, com o libertino encurralado, qual o sentido do segundo ato? (Foto acima)
- Nele, o segundo ato, logo após a cena em que Don Giovanni disfarçado de Leporello espanca Masetto, os personagens deixam a cena, vemos no fundo do palco uma pantomina de espancamento, e em seguida volta Masetto todo enfaixado e amparando-se em uma muleta. Onde ele arrumou as ataduras e a muleta, não se sabe, porém o que mais importa é que novamente Hugo Possolo enxertou na obra uma cena desnecessária.
- Ah pietà, signori miei, ária de Leporello, é cortada, e substituída por um breve diálogo. Para que música em uma ópera, afinal?

- Mais adiante, outro enxerto, novamente sem pé nem cabeça: resgatando uma cena da chamada “versão de Viena” da ópera, mas sem o dueto entre Zerlina e Leporello (de novo: música para que?), estes comparecem em cena apenas para que a camponesa, usando apetrechos de sadomasoquismo, espanque Leporello, punindo-o por suas ações. Detalhe sádico deste autor: tais apetrechos estavam guardados em uma mala que, desde a primeira aparição de Donna Elvira, é um elemento cênico ligado a esta personagem, e não a Zerlina – os pais do nonsense perderiam fácil para Hugo Possolo. (Foto acima)
- A penúltima cena é idealizada pelo diretor (segundo o seu texto no programa de sala) como uma “reviravolta”, na qual a vingança contra Don Giovanni não vem pelo elemento sobrenatural, religioso e patriarcal da estátua do Comendador, mas sim pelas mãos das mulheres. Vemos, porém, mais esquisitices: quando a estátua do comendador comparece ao jantar na casa de Don Giovanni, todos os demais personagens também dão pinta por lá, e se tornam espectadores privilegiados da cena fantasmagórica. Em vez de ir para o inferno, Don Giovanni é preso. Ninguém fica com medo da estátua e, pelas suas expressões faciais, parece até que foram eles, os demais personagens, que invocaram o espírito do comendador. Se a ideia era dar protagonismo às mulheres nesta conclusão, não funcionou. (Foto principal)
- Para fechar o caixão, o sexteto final (Ah, dov’ è il perfido) foi quase todo cortado, restando apenas o seu trecho derradeiro (Questo è il fin di chi fa mal). “Esse negócio de ópera tem música demais”, deve ter pensado alguém da produção.
Se o leitor viu em algum lugar que a montagem teria uma estética circense e ficou preocupado, saiba que esse foi o menor problema da encenação concebida por Hugo Possolo. Em casos assim, as falhas geralmente provêm menos da simples junção de linguagens, e mais de como esse entrelaçamento é realizado. Claro, houve bobagens como a utilização de ilusionismo com o único objetivo de entreter o público, mas a grande questão aqui é a total falta de observância por parte do diretor a necessidades básicas do desenvolvimento de uma obra dramática. E é sempre bom lembrar que a comédia, assim como a tragédia, é uma forma de drama.
A toda essa demonstração de falta de cuidado dramatúrgico, somam-se também falhas cênicas e técnicas: a morte do Comendador é uma cena extremamente artificial; o catálogo de Leporello das conquistas do seu patrão, exibido ao público, apresenta cerca de duas dúzias de mulheres, enquanto o personagem informa que foram mais de duas mil; há cenas em que os solistas cantam ou falam posicionados de lado, prejudicando a projeção das suas vozes; e a iluminação de Miló Martins é um desastre na maior parte da encenação, com várias falhas simplesmente inacreditáveis nas duas primeiras récitas – por exemplo, quando a luz não acompanha os solistas quando estes se movimentam, deixando-os no escuro, ou então quando ilumina quem deveria estar escondido.
Os figurinos de Elisa Faulhaber são muito irregulares, até mesmo entre os dois elencos, e cada um faz o que quer: o intérprete de Don Giovanni no elenco da estreia, por exemplo, usa menos a sua peruca do que o intérprete do elenco alternante. Os figurinos dos camponeses e o de Leporello são mais convincentes, enquanto os dos demais personagens ou são exagerados ao extremo, como o de Donna Anna, ou simplesmente são muito feios, como o de Donna Elvira.
Os cenários de Vera Hamburger têm pontos positivos e negativos. Se são funcionais e passam por várias alterações eficientes ao longo da récita, alcançando o melhor efeito na cena do cemitério, nem sempre, no entanto, são esteticamente agradáveis aos olhos. E ainda exigem que cenotécnicos poluam a cena em vários momentos para ajustar os seus módulos – inclusive durante a segunda ária de Donna Anna.
Não posso concluir essa análise da encenação de Don Giovanni sem citar a cereja podre do bolo estragado de Hugo Possolo: a partir da cena em que Zerlina, Masetto e os demais camponeses entram no palco pela primeira vez, os enxertos do diretor passam a abusar do prefixo “agro” (em termos como “agromoços” e “agromoças”, e em frases como “o agro é pop”). Sua intenção evidente é ironizar a conotação negativa que o agronegócio desfruta atualmente, sobretudo nos nichos mais à esquerda do espectro político, mas… os personagens camponeses de Don Giovanni não são os donos da terra. Eles são gente do povo, trabalhadores, pessoas que são exploradas pelos verdadeiros donos da terra – tanto que, à primeira ameaça de Don Giovanni, Masetto responde: “Entendi sim, senhor. Baixo a cabeça e vou-me embora”.
Por tudo o que foi relatado, na atual montagem assinada por Hugo Possolo, a obra-prima de Mozart, mutilada sem critério e enxertada com textos e humor dispensáveis, foi transformada em uma opereta de muito mau gosto. Tal encenação é, sem quaisquer dúvidas, uma das mais desqualificadas que vi no Theatro Municipal de São Paulo sob o aspecto dramatúrgico nos mais de 20 anos em que frequento a casa.
Interpretação musical irregular

Assisti às récitas de Don Giovanni dos dias 02 (estreia) e 03 de maio. Em ambas, o Coro Lírico Municipal, preparado por Hernán Sánchez Arteaga, apresentou-se vocalmente muito bem nas suas poucas intervenções.
O regente Roberto Minczuk empregou andamentos quase sempre acertados à frente de uma Orquestra Sinfônica Municipal que apresentou boa sonoridade geral. Se houvesse por parte do regente um trabalho mais cuidadoso de dinâmica, a sonoridade do conjunto poderia ter atingido níveis ainda melhores. Como de costume, no entanto, o volume esteve muitas vezes excessivo, especialmente na estreia.
Enquanto diretor musical da ópera, para além de decepcionante, é assustador que Roberto Minczuk tenha aceitado a mutilação e os enxertos promovidos por Hugo Possolo. Em depoimento ao Episódio 36 do Podcast Theatro Municipal, o encenador afirma com todas as letras que combinou com o regente tais alterações. Ora, se o regente titular de um teatro de ópera abre mão de primar pelo rigor da interpretação musical e pela integralidade da estrutura dramática das obras musicais (se é que sabe o que isso significa), quem o fará dentro desse teatro? Já faz muito tempo que o TMSP anda carente de um regente de ópera de verdade, sem que haja qualquer movimento por parte da gestão da casa para buscar esse profissional no mercado.
Em relação ao desempenho dos solistas das duas récitas, é preciso destacar que a impressão geral foi a de que eles careceram de uma orientação cênica mais qualificada. E sendo assim, cada um atuou com a bagagem (experiência) que possuía. Na parte do Comendador, o baixo Savio Sperandio (02/05) apresentou voz potente nos agudos, mas a região mais grave da sua voz vem apresentando há algum tempo problemas de projeção. Já Sérgio Righini (03/05) não foi consistente em nenhuma região.

O baixo-barítono Fellipe Oliveira (02) compôs um Masetto bem caipira nas partes faladas, além de seguro e sempre audível nos números musicais. O baixo Rogério Nunes (03), por sua vez, interpretou o mesmo personagem sem tintas caipiras e com boa projeção, mas com a linha de canto praticamente “reta”, sem nuances.
A soprano Carla Cottini (02) foi uma Zerlina sensual, nada caipira e vocalmente correta, enquanto a sua colega Raquel Paulin (03), que precisa atentar para a qualidade da projeção, optou por uma linha interpretativa que resvalava no caipira e que apelava a um humor de gosto duvidoso.

A sempre consistente mezzosoprano Luisa Francesconi não estava em um dia inspirado na estreia. Sua atuação cênica como Donna Elvira foi correta, mas abaixo do seu potencial, e sua performance vocal também deixou a desejar, sobretudo nos agudos mal calibrados. Já Monique Galvão, que cantou no dia seguinte, mostrou uma verve interpretativa cativante, além de uma voz de timbre belo e quente. Sua afinação, porém, oscilou em alguns momentos. Foi a primeira vez que a ouvi cantar, e essa primeira impressão foi bem positiva. Em defesa das duas artistas, registre-se que o regente não optou pela transposição do tom da ária Mi tradì quell’alma ingrata (procedimento desejável quando a personagem é interpretada por mezzosoprano, em vez de soprano).
O tenor Anibal Mancini (02) ofereceu uma récita vocalmente consistente como Don Ottavio, com belas interpretações das suas duas árias, Dalla sua pace e Il mio tesoro intanto. Cenicamente, faltou a expressão que o artista tem de sobra na voz. Por sua vez, Jabez Lima mostrou-se mais desenvolto em cena. Sua técnica, porém, ainda necessita de aprimoramento, e, na região mais grave, a projeção foi bem insatisfatória.
O excelente baixo-barítono argentino Hernán Iturralde (02), que já nos brindou com performances de alto nível em outras oportunidades, certamente não encontrou em Don Giovanni o seu melhor personagem. Sua performance começou muito bem, mas foi ficando morna ao longo da noite. A ideia estapafúrdia da direção de enxertar diálogos falados em português certamente deve ter lhe prejudicado. No dia seguinte, o barítono Homero Velho, que costuma ser um bom ator, apresentou uma performance cênica razoável (por vezes com declamação um tanto artificial), e, assim como há alguns anos em Belém, novamente não me convenceu vocalmente como o libertino de Sevilha. Sua voz, inclusive, pareceu-me mais opaca que de costume neste tipo de repertório.

Uma diferença importante na atuação dos dois intérpretes do personagem-título foi que Homero Velho simulou um ato sexual de Don Giovanni com a Zerlina do seu elenco (Raquel Paulin), enquanto Iturralde, pelo menos de onde eu estava na plateia, não me pareceu ter feito a mesma simulação com Carla Cottini. Essa é mais uma evidência das deficiências da direção de Hugo Possolo, sobretudo quando lembramos que uma das principais ironias do libreto original de Lorenzo da Ponte é que, durante a ação da ópera, por mais que tente, Don Giovanni não “pega” ninguém.
Assim como Iturralde, o ótimo barítono Michel de Souza (02) também ofereceu uma récita decrescente como Leporello: começou bem, apresentando ótima agilidade, titubeou na célebre ária do catálogo, voltou a melhorar, mas, no segundo ato, apagou-se de vez, apresentando projeção modesta. Já o baixo Saulo Javan (03) apresentou-se com maior regularidade durante toda a récita, com a sua voz sempre muito bem projetada, ótima agilidade e boa presença. O artista defendeu muito bem a ária do catálogo e contribuiu positivamente em vários dos números de conjunto.

Donna Anna, pelo menos para o gosto deste autor, não é a personagem que mais bem se “encaixa” na voz da soprano Ludmilla Bauerfeldt, que cantou no dia 03. Mesmo assim, a qualidade técnica da artista é tão superlativa que ela alcançou, com facilidade, a melhor atuação geral das duas récitas. Sua performance cênica mostrou-se bastante segura – mesmo partindo da leitura equivocada do encenador. Sua voz potente, sempre expressiva e com afinação imaculada, abordou a coloratura no trecho final da ária Non mi dir com precisão sofisticada. O contraste com a intérprete da mesma personagem que havia cantado na estreia foi abissal: Camila Provenzale (02) mostrou-se o tempo todo insegura, pouco expressiva e com afinação vacilante. A sua performance na mesma ária Non mi dir foi, para ser muito comedido, constrangedora.
A interpretação musical da ópera, tal qual a encenação, também teve a sua cereja podre: um pianissimo bem feio, que pareceu mais um “miado” que qualquer outra coisa, emitido pelas três cantoras no começo da cena final, Questo è il fin di chi fa mal. Na segunda récita foi menos pior que na estreia, e, segundo pude apurar, esta foi uma exigência da “direção musical” do espetáculo.
Está virando moda?
Eu gosto de dizer que se moda servisse para alguma coisa, não mudaria de tempos em tempos, mas… parece que está virando moda no Theatro Municipal de São Paulo a mutilação e os enxertos em óperas consagradas. Aconteceu em Il Guarany (enxertos – aqui, talvez, com alguma justificativa minimamente plausível); aconteceu de novo em Nabucco (cortes e enxertos – aqui sem qualquer justificativa aceitável); e volta a acontecer agora em Don Giovanni (mais uma vez com cortes e enxertos) da pior maneira possível.
Que a maioria do público de ópera no Brasil não tem educação musical é fato inquestionável. É bem provável que não tenha também grande conhecimento teatral. Cabe à direção do TMSP decidir: a gestão da Sustenidos na casa pretende contribuir, mesmo que minimamente, para a educação musical desse público, ou pretende deseducá-lo de vez?
PS: Um dos argumentos muito utilizados hoje em dia para justificar cortes em óperas é a duração do espetáculo. Acredita-se que o público não teria paciência com espetáculos muito longos. Uma apresentação de Don Giovanni não costuma passar de 3h de duração, incluindo o intervalo. Mesmo com os cortes da “versão” de Hugo Possolo, seus enxertos fizeram com o que o espetáculo, além de arrastado em alguns momentos, durasse 3:30h no dia 03/05. Prefiro nem comentar. Digo apenas que, quando o espetáculo é de alto nível, o público não costuma reclamar da duração.
Nota do Editor: Após a publicação da resenha acima, o agente da soprano Camila Provenzale, Eser Menezes, entrou em contato com Notas Musicais para informar que, no dia da estreia (02/05), a artista se apresentou doente, e que, inclusive, precisou cancelar a sua segunda récita, no domingo (04/05), quando foi substituída por Ludmilla Bauerfeldt. Registramos ainda que não recebemos qualquer comunicado formal do TMSP de que a cantora se apresentaria fora de condições ideais de saúde. Nem mesmo foi feito um comunicado pelo sistema de som da sala de espetáculos antes do início da referida récita.
Fotos: Larissa Paz (na foto principal, a cena do jantar com o elenco da estreia).

Leonardo Marques nasceu em 1979, é formado em Letras (Português/Italiano e respectivas literaturas) e pós-graduado em Língua Italiana. Participou de cursos particulares sobre ópera e foi colaborador do site Movimento.com entre 2004 e 2021.
Concordo quase integralmente com as avaliações do crítico. Infelizmente, esse Don Giovanni foi coalhado de erros. O pior é a quebra da música de Mozart, estraçalhada em meio a diálogos ruins, que buscavam riso fácil. Eu não tive vontade de rir, só de chorar.
Se Ludmilla cantou bem, porque o papel não seria exatamente pra sua voz? Fiquei confuso.
Olá, Julio. Esse trecho inicial do parágrafo em que eu cito a soprano Ludmilla Bauerfeldt talvez não tenha ficado muito claro mesmo, e a sua pergunta me permite esclarecer melhor. É óbvio que ela tem a voz adequada para cantar a parte de Donna Anna, e a análise que vem depois desse trecho inicial comprova a alta qualidade da sua interpretação. Tendo já visto a artista interpretar a personagem duas vezes (a primeira no TMRJ em 2022), o que eu quis dizer é que, para o meu gosto pessoal (e fiz questão de frisar isso no texto), há outras personagens que me encantaram mais na sua voz, como, por exemplo, Violetta (TMRJ, 2023) e Rusalka (TMRJ, 2024). Um abraço!
Infelizmente a avaliação do critico procede! Felizmente a orquestra esteve bem e a parte cantada salvou o espetáculo . Eu simplesmente IGNOREI toda a palhaçada que foi adicionada. Mas a duração de 3 horas e meia foi um abuso !
O que mais me indigna é o TMSP ter aceitado toda essa palhaçada e o pior ter utilizado a verba pública para produzir um lixo. Quem pagou para assistir tem todo o direito de pedir o seu dinheiro de volta, é conforme o código do consumidor rege a Lei.
Realmente a gente sai meio decepcionado com a ópera modificada, melhor seria já divulgarem que trata-se de uma obra adaptada de Mozart, pois o diretor enxertou criações próprias. Acabei de sair da apresentação e vim ver se a questão era minha em ter visto tantos problemas, mas vejo que não. Horríveis as falas em português, não sei se a dicção dos atores ou a acústica do teatro atrapalhou q entendêssemos várias frases, deveriam ter mantido as legendas nessas horas.
As vezes falam baixo e olhando uns para os outros, o som não chega direito à plateia. Além disso são várias as digamos “intervenções musicais” de outros gêneros que atravessam a ópera que nos propusemos a assistir, e à qual transformaram em ópera-buffa.
O pior de tudo a meu ver foi mesmo na esperada e famosa cena final da estátua, aquele figurino de cavalo vestido por dois homens e q em geral aparece em comédias e circos, tirou a atenção e o glamour da cena final, a gente fica se perguntando o que pretenderam com a inserção daquela figura , se queriam que ríssemos ou ficássemos perplexos, pois além de ridículo não parava de se movimentar no palco e ainda sobe uma escada, distraindo as pessoas no gran finale. Parece que a política realmente agora está interferindo e modificando os valores da cultura e da arte, pelo menos nas operas deste ano do TMSP, vide no Il Guarany. Frequento as temporadas de ópera neste teatro desde muito antes da pandemia, e posso dizer que nunca presenciamos tanta “adaptação” dessas operas famosas, querendo colocar o ponto de vista e militância do diretor. A Arte seria para todos,mas não está sendo, o povo não está saindo feliz dessas apresentações.
Oi, Leonardo! Como sempre, seus textos são completíssimos e vão direto ao ponto: o desprezo cada vez mais frequente do TMSP às obras que se propõe a apresentar.
Para mim, foi uma noite de “estreias pessoais”. Foi a primeira vez que eu fui embora de uma ópera sem aplaudir (eu e mais ou menos 70% do público da plateia), a primeira vez em que fui tomado o tempo todo por uma vergonha alheia enorme e também a primeira vez que cochichos paralelos ou toques desavisados de celulares nao me atrapalharam. Afinal, o que vinha do palco era bem mais incômodo.
Além de todos os pontos que você levantou, queria citar um outro exemplo de quebra no sentido dramático da obra, causada pela retirada dos recitativos: a substituição do “Calmatevi Idol Mio”, que precede o “Crudele (…) Non mi dir”. No novo trecho enxertado, Donna Anna declara para Don Ottavio que ele “nao é protagonista da vida dela”, conferindo à personagem, por meio desse clichezinho de quinta, uma imponência rasa e artificial que em nada combinavam com o recitativo “Crudele” e com a ária “Non mi Dir”, nos quais Donna Anna expressa o conflito que sofre ao se dividir entre a paixao pelo pérfido Don Giovanni e o mero carinho fraternal que sente pelo amoroso Don Ottavio. A perda dramática nesse trecho foi imensa! Aliás, tentar aproveitar a música na récita de hoje (7/5/25), foi um esforço permanente para mim, pois ela competia com muitas distrações e incoerências o tempo todo. No fim das contas, confesso que fiquei com pena dos músicos, que tiveram que embarcar nesse vexame. E o mais triste de tudo é que uma nova oportunidade para assistir Don Giovanni ao vivo no TMSP talvez leve mais de uma década para surgir, o que reforça ainda mais o desperdício que foi essa encenação.
Análise perfeita. Fui ontem, saí bastante aborrecido, mesmo me comportando como adulto ao ouvir piadas infantis sobre agronegócio, frases lapidares nas redes sociais como “respeita as mina”, e, é de pasmar, tentativa de fazer o público rir com palavrões, mácula que julgava desaparecida das artes cênicas brasileiras. E, como dito, durou uma eternidade, chatíssimo, parte do público saiu assim que baixadas as cortinas, sem se deter para os aplausos finais. Creio que o diretor considera que o público brasileiro é constituído inteiramente de pessoas infantis e incapazes de entender a dualidade do personagem Don Juan. Aconselho substituir o libreto por uma cartilha .