O Conto da Vestal

Após 170 anos, “La Vestale” volta à Ópera de Paris e pode ser vista pelo YouTube.

La Vestale (1807)
Ópera em três atos
Música: Gaspare Spontini (1774-1851)
Libreto: Étienne de Jouy (1764-1846)
Opéra national de Paris – Bastille, 23 de junho de 2024
Direção musical: Bertrand de Billy
Direção cênica: Lydia Steier
Cenografia: Etienne Pluss
Figurinos: Katherina Schlipf
Iluminação: Valerio Tiberi
Julia: Elza van den Heever, soprano
Licinius: Michael Spyres, tenor
La Grande Vestale: Eve-Maud Hubeaux, mezzosoprano
Cinna: Julien Behr, tenor
Le Souverain Pontife: Nicolas Courjal (canto) e Jean Teitgen (cena), baixos
Le Chef des Aruspices / Consul: Florent Mbia, barítono
Orquestra e Coro da Opéra national de Paris

No campo musical, o ano de 2024 está nos oferecendo uma fartura de efemérides: centenário das mortes de Puccini e de Fauré, bicentenários do nascimento de Bruckner e da estreia da Nona Sinfonia de Beethoven, 150 anos do nascimento de Arnold Schönberg, 160 anos do nascimento de Richard Strauss, 120 anos da morte de Dvořák… Foi uma dessas efemérides – os 250 anos de nascimento de Gaspare Spontini (1774-1851) – que serviu de pretexto para que, após 170 anos, La Vestale, obra fundamental do repertório francês, voltasse ao palco da Opéra national de Paris. É de La Vestale, sobretudo da produção da Opéra Bastille, a que assisti no dia 23 de junho e cujo vídeo está disponível até 06 de março de 2025 no Opera Vision, que tratarei nesse segundo artigo sobre ópera francesa.

Uma ponte entre a reforma de Gluck e a ópera romântica do século XIX

Poucos viram La Vestale – são raras as produções e há poucos vídeos. Muitos, no entanto, já ouviram falar na ópera ou, ao menos, ouviram a ária de Julia no segundo ato. Isso se deve, curiosamente, a um resgate feito em 1954, pela divina Maria Callas, para celebrar outra efeméride: os 180 anos do nascimento de Spontini. Contudo, em uma época em que as traduções de óperas eram usuais, Callas cantou (e celebrizou) uma tradução em italiano, e não o original em francês.

Étienne de Jouy (1764-1846) – nascido, pois, há exatos 260 anos – não escreveu o libreto de La Vestale para Spontini: o libreto chegou ao compositor em 1804 pelas mãos da Imperatriz Joséphine, esposa de Napoleão, após ter sido rejeitado por Méhul e por Cherubini. Joséphine conheceu Spontini e se encantou com ele ao assistir, em fevereiro do mesmo ano, à estreia francesa de La Finta Filosofa no Théâtre-Italien. Tão logo Napoleão e Joséphine foram coroados, Spontini foi nomeado compositor particular da imperatriz, o que deu origem a uma longa amizade entre a monarca e o músico.

Boa parte do que foi dito a respeito de Gluck no primeiro artigo sobre ópera francesa, que tratou de Iphigénie en Aulide e Iphigénie en Tauride, vale para Spontini – que, aliás, nasceu no ano da estreia de Iphigénie en Aulide. Italiano de origem e formação, Spontini foi aluno de Cimarosa em Nápoles e se mudou para Paris, onde ingressou na ópera francesa compondo opéra-comique. Desse modo, Spontini, como Gluck, uniu elementos da ópera italiana e da ópera francesa. Evidentemente, Spontini já tinha uma trilha aberta por Gluck para seguir – em La Vestale, sobretudo no primeiro ato, é perceptível a forte influência de Gluck.

Como boa herdeira da tragédie lyrique do século XVIII e da reforma de Gluck, La Vestale tem um enredo simples, baseado em um tema clássico, com poucos personagens principais: a ópera narra o amor proibido entre a vestal Julia e o general romano Licinius. Musicalmente, está presente a sobriedade típica da reforma de Gluck, não há grandes acrobacias vocais, a dramaturgia musical e a orquestra estão a serviço do drama, e o texto cantado é perfeitamente inteligível. Na Bastille, com cantores do mais alto nível, com ótima dicção, acústica privilegiada e orquestra soando na medida certa, foi possível compreender quase tudo o que estava sendo cantado.

Também os recitativos de La Vestale são tipicamente franceses. Enquanto os recitativos italianos são mais livres, mais ágeis, mais próximos da fala, os franceses são precisamente marcados na partitura: “o compositor indica com rigor as variações de tempo e diversifica os valores rítmicos no interior de uma mesma frase”, explica Alexia Cousin no nº 340 de L’Avant-Scène Opéra, sobre La Vestale. “No recitativo francês, o intérprete declama sem recorrer ao parlando”, completa Cousin. Ao contrário, “deve-se manter a plenitude da voz, respeitando a coerência prosódica, conforme indicado pelo compositor. Isso corresponde a um processo de intensificação do som, que se torna possível por meio de uma escrita em valores longos, o que garante a inteligibilidade do texto e permite o desenvolvimento de todo o seu poder dramático”.

Há elementos, contudo, típicos do bel canto italiano. Em determinados momentos, como a primeira ária da cena de Julia, no segundo ato, tanto as linhas quanto os valores dos tempos são longos. A essa amplitude sonora, somam-se a agilidade vocal e as ornamentações, cujo caráter é mais dramático que meramente decorativo.

A abertura começa com um andante que inicialmente evoca o caráter trágico – ou melhor, de tragédie lyrique – da obra. Não demora, porém, para os tempos se encurtarem, e para o staccato tornar-se abundante, de modo que, sobretudo na sessão rápida (presto assai agitato), a peça passe a antecipar as aberturas e o estilo musical de Bellini. Esse estilo se estende por toda a ópera.

Antes de mais nada, é necessário lembrar que, na Roma Antiga, a vestal era uma sacerdotisa dedicada ao culto da deusa Vesta – ou Héstia em grego –, a deusa do fogo sagrado. A principal função das vestais era, pois, zelar pelo fogo sagrado. A jovem vestal era selecionada quando tinha entre seis e dez anos (e o critério de seleção excluía portadoras de quaisquer deficiências físicas), e o sacerdócio durava trinta anos. Após esse período, podia permanecer ou sair para se casar. Durante o sacerdócio, a vestal tinha que se manter virgem e casta, uma vez que o fogo sagrado, símbolo da pureza da deusa Vesta, garantia a pax deorum (o pacto de paz entre os deuses e os homens) e, desse modo, estava ligado à fecundidade e ao bem-estar da sociedade. Quebrar esses votos era, pois, um crime punido com pena de morte – a culpada era decapitada ou sepultada viva.

O Templo da Vesta, onde se passa a ação de La Vestale, era uma construção circular que fazia parte do Fórum Romano. No centro do templo, era mantido o fogo sagrado. Em 394, o fogo sagrado apagou-se para sempre: o imperador romano Teodósio I pôs fim ao culto da Vesta.

Segundo de Jouy, o libreto se baseia em um fato histórico, ocorrido em Roma no ano 269 e que se encontra na obra de Winckelmann intitulada “Monumenti antichi inediti”, publicada em 1767. Em trecho reproduzido no Avant-Scene Opéra, o libretista resume a intriga que o inspirou:

Durante o consulado de Q. Fábio e Servílio Cornélio, a vestal Gorgia, tomada pela mais violenta paixão por Licinius, um sabino de origem, introduziu-o no templo de Vesta em uma noite em que ela estava guardando o fogo sagrado. Os dois amantes foram descobertos; Gorgia foi enterrada viva, e Licinius se matou para escapar da punição por seu crime”.

Na ópera, a vestal se chama Julia. Ela e Licinius haviam se apaixonado antes de ela se tornar uma virgem vestal e de ele partir para a Gália. Quando retorna vitorioso, de nada valem as honrarias em vista do tormento de ver o seu amor por Julia ter se tornado um sacrilégio. Licinius confia a seu fiel amigo Cinna que está disposto a morrer por essa paixão. Também Julia sente-se atormentada com o retorno de Licinius, agora um herói romano, e pede à Grande Vestal que a dispense de seus deveres sacramentais. É ela, no entanto, a escolhida para coroar o herói com uma coroa de louros. A Grande Vestal aproveita para lembrá-la de que o amor é um monstro terrível (L’amour est un monstre barbare). Evidentemente, o reencontro entre Julia e Licinius tem consequências. Após uma monumental cena de dilema trágico (Toi que j’implore), em que Julia deve escolher entre o seu dever de sacerdotisa e o seu amor por Licinius, vence o amor: Julia deixa que ele entre no templo, porém o fogo se apaga. Julia e Cinna convencem Licinius a fugir; o Sumo Pontífice condena Julia à morte (ela será enterrada viva); Licinius volta para defendê-la, mas, quando ela está prestes a ser enterrada, a deusa reacende o fogo – deus ex machina. Em um artificial final feliz, Julia é perdoada.

Michael Spyres (Licinius) e Elza van den Heever (Julia)

Não foi à toa que o libreto agradou a Joséphine: a figura do herói militar que luta pelos interesses da pátria e retorna vitorioso é forte. Um herói justo, forte e que sabe amar. A figura de Licinius foi imediatamente associada à de Napoleão – a ópera serviu perfeitamente à celebração do imperador e de seus feitos.

Só pelo resumo, já é possível identificar elementos não só da tragédie lyrique de Gluck, mas que também antecipam o Romantismo do século XIX. Um deles é o amigo fiel do herói, com juras de amizade e lealdade. Esse elemento já apareceu com Orestes e Pílades em Iphigénie en Tauride (1779) de Gluck, tratado no artigo anterior sobre ópera francesa, e reaparecerá, por exemplo, na amizade entre Don Carlos e o Marquês de Posa em Don Carlos (1867), de Verdi.

Licinius e Julia vivem o conflito entre o amor e o dever para com o estado e a religião – ou seja, entre o pessoal e o coletivo. Em Iphigénie en Aulide (1774), de Gluck, também tratada no artigo anterior, Agamemnon já viveu conflito semelhante ao se ver entre o seu dever de rei, de sacrificar a sua filha, obedecendo à ordem da deusa Diana, e o amor de pai, que deve zelar pela filha. Também Aida e Radamés, em Aida (1870), de Verdi, vivem conflitos entre o seu amor e os seus respectivos deveres para com os seus respectivos reis e povos; novamente em Don Carlos, Elisabeth de Valois tem que escolher entre o seu amor por Carlos e o fim da guerra que tanto sofrimento trouxe ao seu povo.

Como general e herói romano, Licinius representa o poder do estado. Vemos, em seu confronto com o Sumo Pontífice, um conflito entre o estado e a religião – ou entre o trono e o altar, como dirá o rei Philipe II em Don Carlos. Em ambas as óperas, aliás, o poder religioso (e também o do estado) oprime e mata; o fanatismo, o fundamentalismo religioso está presente tanto na obra de Spontini quanto na de Verdi.

Mais que qualquer outra ópera, contudo, é Norma (1831), de Bellini, que a trama e várias características da música de La Vestale antecipam. Na obra de Bellini, Norma e Adalgisa, duas sacerdotisas druidas supostamente virgens, que fizeram voto de castidade, apaixonaram-se por Pollione, um procônsul romano na Gália. A grande diferença é que, em Norma, Pollione é um inimigo estrangeiro, um conquistador, uma ameaça, enquanto em La Vestale o conflito é interno. Outra diferença é que há uma disputa entre Norma e Adalgisa, o que leva à descoberta do descumprimento do juramento. Além disso, em Norma, o final é trágico, e não feliz.

La Vestale e O Conto da Aia

Lydia Steier, que assinou a produção da Bastille, transportou a trama de La Vestale para o universo distópico de The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia), de Margaret Atwood. Foi uma ideia que, a meu ver, funcionou bastante bem.

Em entrevista publicada no programa de sala, Steier conta que ela e o cenógrafo Etienne Pluss, após um período de pesquisa e reflexão, encontraram em O Conto da Aia uma situação que se adequava de maneira eficaz à história de La Vestale, e é algo que nos diz muito sobre o nosso mundo atual.

Na distopia de Atwood, os Estados Unidos sofrem uma guinada semelhante àquela que, em 1979, pôs fim ao Irã liberal. Após um ataque terrorista, os Estados Unidos sofrem um golpe de estado por um grupo fundamentalista cristão. O país passa a se chamar República de Gileade (uma região mencionada na Bíblia) e a ser governado por um regime teocrático cristão militar. Um grupo de mulheres – as servas ou aias – é mantido pela classe dominante sob forte vigilância e cuidadosa doutrinação, para fins reprodutivos.

O centro do governo teocrático de Gileade é a Universidade de Harvard. “Trata-se de um cenário ao mesmo tempo elegante e trágico, já que este lugar é o coração da pesquisa intelectual nos Estados Unidos (…)”, aponta Steier. “E, de repente, em um único golpe, todas as ambições humanas são exterminadas. Vemos o esqueleto dessa formidável instituição no seio de um regime brutal, que só se interessa pela guerra e por Deus”. A Sorbonne é o análogo francês de Harvard e, por isso, Steier escolheu a célebre universidade parisiense para abrigar suas vestais. O enorme, bem-feito e funcional cenário de Pluss reproduz o grande anfiteatro da Sorbonne, é lá o templo da Vesta; o fogo sagrado é alimentado por livros queimados – uma atividade típica de regimes autoritários e fundamentalistas.

O grande anfiteatro da Sorbone: ao centro, Michael Spyres (Licinius)

Ao lado do anfiteatro, vemos um muro com vestais executadas penduradas de cabeça para baixo. No muro, a frase Talis est ordo Deorum (“esta é a vontade dos deuses”). A frase reaparece diversas vezes durante a ópera, indicando que o fanatismo, o fundamentalismo religioso, é a raiz dessa sociedade violenta, na qual a mulher nada mais é do que um reservatório de pureza e fertilidade.

Nos figurinos de Katherina Schlipf, as vestais usam vestes pretas, e não vermelhas como na obra de Atwood – que em francês ganhou o título de “La Servante écarlate”. Valerio Tiberi iluminou o interior do templo com uma luz mais amarelada, mais quente, e deixou o exterior com luz mais fria. Quando o fogo se apaga, apagam-se também, abruptamente, todos os abajures que iluminavam o anfiteatro.

Se o final feliz de La Vestale é, por si só, algo um tanto artificial, no universo distópico de Steier ele se torna insustentável. Steier não alterou nem a partitura e nem o libreto: resolveu o problema apenas por meio do teatro, adicionando uma cena após o final oficial do drama, durante a música do balé que encerra a ópera. Cinna entra em cena, sussurra algo para a Grande Vestal, que sai e retorna com uma coroa: na versão de Steier para essa ópera napoleônica, como Napoleão, Cinna se autoproclama imperador. Há, desse modo, um deslocamento da figura de Napoleão do herói laureado para aquele que reinstaura a monarquia.

A Grande Vestal parece feliz ao lado de Cinna (como Joséphine?), mas a sua alegria dura pouco: ela é levada pela porta que fica no fundo da cena e fuzilada. A música toma um caráter militar. Ele assume exatamente o mesmo papel do Sumo Pontífice, cujo reinado havia sido derrubado no final feliz – da mesma forma que, pouco antes da estreia de La Vestale, a Revolução Francesa havia derrubado a monarquia. A ópera termina com a frase de Voltaire projetada no muro: “O fanatismo é um monstro que ousa se dizer filho da religião”. Steier nos lembra, assim, que o monstre barbare é o fanatismo, e não o amor, como cantou a Grande Vestal.

Talis est ordo Deorum (“esta é a vontade dos deuses”)

No dia 23 de junho, o relativamente pequeno papel do Sumo Pontífice foi interpretado vocalmente por Nicolas Courjal (que participou da recente gravação da ópera realizada pelo Palazzetto Bru Zane, sob a direção musical de Christophe Rousset) e cenicamente por Jean Teitgen, o titular do papel, que estava doente e atuou usando máscara. Como o papel do Pontífice – o típico ditador teocrático na produção de Steier – é pequeno e relativamente simples do ponto de vista cênico, podemos supor que Courjal tenha chegado em cima da hora e sequer tenha tido tempo de ver as marcações. Apesar da distorção sonora que esse tipo de arranjo traz – o som não vem de onde está o personagem –, o canto de Courjal compensou. Com voz poderosa, impactante, até o acentuado vibrato contribuiu com a consistência vocal do personagem.

Com uma postura imponente, Eve-Maud Hubeaux deu vida a uma ótima Grande Vestal tanto cênica quanto vocalmente. Steier e Hubeaux construíram uma figura austera, mas um tanto sádica, que consegue conciliar o zelo pelas vestais com uma crueldade quase doentia. Hubeaux tem uma voz encorpada e uma dicção extremamente clara. Embora em alguns momentos o papel pareça um pouco pesado para a jovem mezzosoprano, as suas qualidades se sobressaem a essa carência. Sua ária de bravura, L’amour est un monstre barbare, que interpretou de forma impactante, é repleta de coloraturas que parecem expor a irracionalidade de amaldiçoar o amor em função do fanatismo religioso e da reação exacerbada a que esse fanatismo conduz.

Eve-Maud Hubeaux (La Grande Vestale)

Os papéis de Licinius e Cinna foram escritos em clave de Sol – portanto, supostamente para tenores –, em uma região bem central: Licinius vai até um , e Cinna, apenas até o Fá#. Desse modo, barítonos agudos conseguem interpretar os papeis, sobretudo o de Cinna – e (para Cinna) essa escolha tem sido usual.

Na Bastille, contudo, Cinna, o amigo fiel – que na produção de Steier não se mantém tão fiel assim –, foi vivido pelo tenor Julien Behr. Uma voz com um bom centro, que serviu muito bem ao papel e, no dueto inicial, timbrou muito bem com a de Michael Spyres, que deu vida a um excelente Licinius.

Spyres, para mim, foi um dos pontos altos da produção, e Licinius foi o melhor papel em que o vi ao vivo – talvez, justamente, por ser um papel para baritenor. Sua dicção foi perfeita e sua voz projetou-se com fartura, de modo que foi possível compreender cada palavra de um canto sólido. Licinius, o herói, aparece em cena sob os traumas da guerra e sob a angústia de seu amor por Julia ter se tornado proibido; a postura cênica de Spyres foi perfeitamente adequada a esse herói emocionalmente ferido.

Embora já fosse a terceira récita, aquela tarde de domingo teve cara de estreia na Bastille. Elza van den Heever estava subindo ao palco pela primeira vez nessa produção, após dois cancelamentos em decorrência da Covid. Van den Heever é uma grande artista, que felizmente já tive a oportunidade de ver diversas vezes ao vivo – neste ano mesmo, em março, como Crisóstemis na Elektra do Festival de Baden-Baden. E é a segunda vez que a vejo em uma produção de Steier – a primeira foi no ano passado, também no Festival de Baden-Baden, em Die Frau ohne Schatten (A Mulher sem Sombra), quando ela cantou o papel-título. Ficou claro, em ambas as produções, que Steier sabe explorar as qualidades cênicas da soprano.

Van den Heever tem um canto direto – o que não significa total ausência de ornamentos –, com fraseado seguro e o legato necessário para cantar as longas frases de Spontini. Sua voz homogênea, penetrante e ampla serve muito bem ao papel, que exige um centro seguro e agudos precisos. Cenicamente, como sempre, encarnou de forma convincente a vestal que, atormentada pela culpa de um amor proibido, vivia sob os maus tratos e sob a tortura de um regime autoritário. A primeira parte da sua grande cena (Toi que j’implore) foi interpretada mais como um devaneio do que como uma prece, provavelmente para enfraquecer o elemento religioso – afinal de contas, ela era a vítima de um autoritarismo que se fundava no fanatismo religioso.   

Elza van den Heever (Julia)

Nas notas do programa, o regente da produção, Bertrand de Billy escreveu que o ideal é fazer La Vestale com uma orquestra de formação moderna e que seja capaz de tocar de forma leve – uma sonoridade mozartiana. Foi essa sonoridade que imprimiu, com êxito, à Orquestra da Opéra national de Paris. Em Toi que j’implore, destaca-se um solo de trompa, que dobra o canto de Julia – uma orquestração admirada e comentada por Berlioz. Com instrumentos de época, há uma sonoridade meio instável, que transmite bem a instabilidade emocional de Julia. Isso se perde com a trompa moderna, de válvula.

Como em Gluck, o coro é um personagem que por vezes exalta a deusa, com um canto harmonioso, luminoso, mas também anuncia as ameaças vindas da sua fúria – Ô terreur! Ô disgrâce!. Preparado por Ching-Lien Wu, o sempre ótimo Coro da OnP entregou um canto com nuances, em meio a uma sonoridade coesa e uniforme.

Ao escrever esse texto, dei-me conta de uma feliz coincidência. Fui apenas três vezes à Bastille, e nessas três vezes tive a oportunidade de ver importantes obras do repertório francês com elencos extremamente bem escalados. Das experiências anteriores, a primeira foi em 2011: Faust, de Gounod, com Roberto Alagna e Inva Mula, em versão semiencenada em virtude de uma greve. Em vez de lamentar a falta de cenário, prefiro lembrar o êxtase a que Inva Mula levou a plateia ao interpretar, em puro estado de graça, Il ne revient pas sozinha sobre o palco vazio e escuro, com um foco de luz. No ano passado, foi a vez de Romeo et Juliette, também de Gounod, protagonizado pelos excelentes Elsa Dreisig e Benjamin Bernheim, que também rendeu um artigo para Notas Musicais. Após La Vestale, espero poder ver em breve, quem sabe, um Meyerbeer na Bastille.

Assista a La Vestale pelo Opera Vision


Fotos: Guergana Damianova.

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