Topografia de um delírio – “O Gabinete do Dr. Caligari” no Theatro São Pedro

O filme silencioso de Robert Wiene foi acompanhado pela Orquestra do Theatro São Pedro.

O Theatro São Pedro vem eventualmente retomando a sua vocação ao cinema – o espaço foi inaugurado em 1917 como um cineteatro – e exibindo filmes silenciosos com acompanhamento musical ao vivo. Viver esta experiência é visitar nostalgicamente as sessões de cinema do passado: entre fins de 1910 e a década de 1920, existia uma variedade de estabelecimentos como o São Pedro, servindo ao público tanto espetáculos teatrais quanto cinematográficos, à medida de suas necessidades, ou ambos os espetáculos, já que, eventualmente, uma curta cena teatral antecedia a exibição de um filme, muitas vezes recuperando a temática da película a ser exibida.

A experiência não é apenas nostálgica, mas também pedagógica. Acompanhar um desses programas cuidadosamente organizados pelo São Pedro colabora para a compreensão de como se organizavam as sessões de cinema na época em que a música desempenhava um papel capital durante a exibição – na ausência do texto falado, cabia à música dar voz às personagens, daí os grandes investimentos feitos neste âmbito, fazendo com que as orquestras consumissem, neste recorte de tempo de que falamos, grande parte das verbas empregadas na manutenção dos cinemas. A presença de músicos ao vivo na sala de espetáculo explicita outra característica deste cinema cuja produção foi descontinuada há quase um século: o seu hibridismo, a convivência existente entre o material já pronto e aquele gerado no calor da hora, enfim, o seu caráter teatral, já que nenhum espetáculo era igual ao outro.

A exibição de O Gabinete do Dr. Caligari pelo Theatro São Pedro tem, além disso, uma função histórica inegável, entrando no escopo de esforços realizados a partir de, sobretudo, os anos de 1980, no intuito de se recuperar a espectatorialidade do cinema silencioso. Desta época em diante, além da contratação de compositores para a escrita de acompanhamento orquestral para filmes específicos, pesquisas historiográficas passam a ser desenvolvidas visando a recuperação dos acompanhamentos originalmente escritos para os filmes.

Em 1920, embora estúdios compusessem partituras para os seus filmes mais relevantes e as comercializassem juntamente deles, as salas de cinema tinham autonomia para decidir a natureza da música que apresentariam, o que levava em consideração, por exemplo, o número de integrantes da orquestra – não era incomum que certos cinemas abrissem mão das partituras disponíveis, deixando ao pianista o papel de improvisador da música que acompanharia determinado filme.

Das Cabinet des Dr. Caligari é uma obra paradigmática da presença do expressionismo no cinema. É uma obra de vanguarda, que busca romper com o realismo do cinema comercial, fazendo-o não do ponto de vista da construção cinematográfica (ou seja, de enquadramentos ou cortes inusitados, que surpreendam o público), mas sim da cenografia. Deste modo, abre mão da profundidade de campo oriunda da arte renascentista, em prol de cenários pintados que dão destaque às sombras e à deformação. Ao invés da realidade construída pelo cinema clássico, que se quer um recorte objetivo da realidade do mundo, o cinema expressionista procura fazer emergir as almas torturadas dos seus personagens. Não casualmente, esta estética é empregada por Robert Wiene na Alemanha recém-saída da 1ª Grande Guerra, momento em que o hediondo emerge como realidade comezinha.

O Gabinete do Dr. Caligari é também tributário dos estudos de Freud sobre a alma humana, que seriam depois apropriados por artistas mais comerciais ou menos – mesmo Alfred Hitchcock, que se une a Salvador Dali, em Quando fala o coração (Spellbound, 1945), para criar as sequências dos herméticos sonhos do protagonista, os quais, interpretados, desvendariam a autoria do assassinato de que ele era culpado.

A obra de Wiene narra em flashback, a partir do ponto de vista de um jovem rapaz, a história de um suposto médico insano que exibe o sonâmbulo Cesare numa feira – o exibicionismo de indivíduos atípicos foi algo comum até os primeiros decênios do século XX. Para além da mera exibição, todavia, Caligari (Werner Krauss) instrumentalizava Cesare (Conrad Veidt) para que cometesse uma série de assassinatos nos locais por onde passava.

A história acompanha o percurso de um jovem para provar às autoridades que o artista de feira era um criminoso. Cronologicamente apresentam-se ao público duas ações vis de Cesare: o assassinato do amigo deste rapaz e o sequestro da moça que ambos amavam. As investigações culminam na fuga de Caligari e na descoberta, pelo jovem, de que o homem usava o sonâmbulo para repetir os experimentos de um certo Caligari que vivera no século XVIII. As buscas levam o jovem ao hospital psiquiátrico do qual ele julgava que o criminoso era interno, ali descobrindo que Caligari se tratava, na verdade, de um médico.

Ao fim e ao cabo, o homem desprovido de razão não era Caligari, mas sim o jovem que o investiga – o que o público descobre quando a câmera passa a assumir o ponto de vista do médico, que surge em cena sem os traços lúgubres com que fora pintado ao longo de todo o filme, traços que o jovem lhe atribuía. Assim, a cenografia do filme reproduz o olhar que o rapaz voltava ao mundo. O filme não é apenas ousado no que diz respeito à cenografia. Ele o é porque ludibria o espectador, fazendo-o aderir ao ponto de vista do jovem desprovido de razão, já que praticamente toda a história é contada por ele.

A ação é acompanhada por uma música de cunho melodramático, que procura ressaltar a dramaticidade encenada e dar voz aos sentimentos das personagens. O som incidental também está presente – a exemplo, o soar da sineta com que Caligari convida o público a assistir ao seu espetáculo –, como acontece nos cânones desta música, que se espraia não só para as obras concertantes, mas também para a ópera e para o cinema, como se vê. A finalidade deste acompanhamento musical é realista, não havendo nele espaço para a ironia ou para uma leitura a contrapelo das imagens, que leve o público a questioná-las.

De acordo com o release do espetáculo publicado no cultura.sp, o acompanhamento faz uso da música originalmente composta para o filme, de autoria de Giuseppe Becce, a qual soma música original do compositor e temas pré-existentes oriundos de Berlioz, Schumman e Wagner (música romântica, como se observa, grosso modo, no cinema desde meados da primeira década de 1900).

O maestro Marcelo Falcão foi o responsável pelo arranjo da obra musical para a sua execução pela Orquestra do Theatro São Pedro. O resultado foi tão bem-sucedido quanto os melhores acompanhamentos musicais realizados para o cinema silencioso ao redor do mundo (a exemplo das Giornate del Cinema Muto de Pordenone, Itália). Como pesquisadora do tema que sou, só tenho a comemorar esforços como este realizado no Theatro São Pedro, no intuito de novamente dar voz às sombras silenciosas, levando-as ao encontro do público.


Foto: divulgação.