O Grão da Voz de Bruno de Sá

No início de outubro, o Theatro São Pedro, de São Paulo, apresentou o espetáculo O Grão da Voz, com o célebre sopranista brasileiro Bruno de Sá. O espetáculo já não está mais em cartaz, mas segue disponível no YouTube.

O ‘grão’ é o corpo na voz que canta, na mão que escreve, no membro que executa”, escreve Ronald Barthes em seu ensaio “Le grain de la voix” (1972), publicado no terceiro volume de ensaios críticos do autor. Antes de qualquer coisa, o texto serve de alerta aos críticos musicais quanto ao uso de adjetivos: excessivo e, quase sempre, vazio. Ele nos remete, ainda, à essência da voz, à sua característica física, corpórea. O conceito parece fascinante, mas, para mim, há algo no ensaio que dificulta a compreensão do “grão da voz”: Barthes escolheu Dietrich Fischer-Dieskau como exemplo de um cantor cuja voz não tem “grão”. Um exemplo de voz com grão? A de Charles Panzéra – mestre da canção francesa no período entre guerras e professor de canto do próprio Barthes, por quem ele sentia uma admiração tão profunda que beirava a obsessão.

No programa, Ligiana Costa, diretora e idealizadora do espetáculo, escreveu que Bruno ainda era estudante quando ela o ouviu pela primeira vez. A ideia que lhe veio imediatamente à cabeça foi o conceito de Barthes de “grão da voz”. Naturalmente, ao dirigir um espetáculo com Bruno, ela escolheu “O Grão da Voz” por título e a voz como tema.

Bruno de Sá entrou no palco cantando a ária que, na voz da grande diva Maria Callas, se tornou símbolo da voz, do canto: Casta Diva, da ópera Norma, de Vincenzo Bellini. Da Orquestra do Theatro São Pedro, regida pelo excelente André dos Santos, veio um som delicado e homogêneo que permitiu que a voz de Bruno flutuasse lindamente. Aliás, durante todo o concerto, foi marcante a qualidade da orquestra – a precisão, a coesão, a dinâmica. Por isso mesmo foi uma pena que, ao menos na estreia em 04 de outubro, por vezes o conjunto tenha soado forte, chegando a encobrir um pouco a voz de Bruno.

Bruno tem uma voz brilhante, pura, que se projeta bem, mas que é delicada, uma voz de porcelana. É por isso – e não por uma questão de gênero – que essa voz funciona tão bem nos repertórios barroco e clássico e com instrumentos de época. A orquestra romântica, mais densa, desenvolvida para espaços maiores, tende a encobrir um pouco os detalhes do canto sutil do sopranista.

Durante essa primeira ária, diante do cantor havia uma tela onde Vic von Poser fez belas e dinâmicas projeções, que pareciam galhos brotando. Esse início de pura magia foi o ponto alto do espetáculo, o momento mais emocionante: era a voz de Bruno, essa voz de que o Brasil tanto se orgulha, florescendo do “grão”.

A teoria e a prática

Casta Diva não trata da voz, a voz não faz parte da temática de Norma. Nessa ária em especial, no entanto, é a voz que importa, é o apoio, é o legato que Bruno manejou tão bem. Não é a teoria, é a prática da voz. Foi uma pena que, como boa musicóloga, o lado acadêmico de Ligiana Costa tenha vencido durante a elaboração do espetáculo, e as citações e teorias sobre a voz e o canto não tenham tardado a prevalecer. A utilização de gravações, de sons digitalizados, se por um lado trouxe conteúdo ao espetáculo, por outro atrapalhou esse contato físico, direto, íntimo com a voz não amplificada, com a voz que brota do corpo dos cantores e atinge nosso aparelho auditivo sem sofrer nenhum processo de digitalização. Em outras palavras: a descoberta empírica do “grão da voz”.

Mesmo que cantores e orquestra não tenham sido amplificados, as gravações que se alternaram aos números musicais quebraram esse clima – especialmente a gravação de Pronta pra cantar, de Caetano Veloso, nas vozes de Nina Simone e Maria Bethânia, por mais grão que tenham as vozes de Simone e Bethânia. No final, após Bruno cantar Die Nachtigall, de Alben Berg, o espetáculo foi encerrado com a gravação da canção At least for now, de Benjamin Clementine: quem deu a palavra final não foi uma voz cujo corpo estava presente no palco.

Francisco Campos Neto e Bruno de Sá

Entre as palavras acadêmicas e o canto, fico com o segundo. Mesmo quando na gravação está uma lição de Francisco Campos Neto, professor de Bruno. A presença de Campos Neto no palco foi muito mais forte e significativa do que o seu áudio. Ele ficou sentado, na postura de um professor orgulhoso e receptivo, enquanto Bruno cantava o Solfeggio (K 393) de Mozart, com arranjo de Juliana Ripke. Uma melodia sem palavras, onde a voz reina absoluta.

Levar Campos Neto ao palco em um espetáculo sobre a voz – especialmente sobre a voz de Bruno – foi uma ótima ideia de Ligiana Costa. Ele simboliza o trabalho exitoso do professor de canto. Além de Bruno, Campos Neto também foi o professor de outra cantora brasileira que está dando passos largos em sua carreira internacional: a mezzosoprano Marcela Rahal, vencedora do Concurso Tenor Viñas em janeiro e que, só neste ano, já está participando da sua segunda produção no Teatro alla Scala. Nesse sentido, a presença do professor trouxe aos holofotes o valor e a importância do trabalho feito fora dos palcos: não só o estudo que precede uma carreira bem-sucedida, mas também o que sustenta essa carreira e que deve acompanhar o artista durante toda a sua trajetória. A única coisa que fiquei me perguntando foi: em vez da gravação, não poderíamos ter ouvido Campos Neto falar na hora, como faz nas salas de aula?

E por falar em formação de cantores, esse foi o segundo espetáculo que Bruno apresentou com cantores da Academia do Theatro São Pedro, encerrando um período de colaboração entre o renomado cantor e o teatro. Nem faz tanto tempo assim, Bruno fez parte da mesma academia, o que torna essa colaboração ainda mais significativa. Participaram do espetáculo Débora Neves (soprano), Laleska Terzetti (mezzosoprano), Ariel Bernardi (baritonista) e Wilian Manoel (tenor).

Não podemos perder de vista que a academia de um teatro de ópera é o passo intermediário entre a vida de estudante e a carreira profissional. Embora o resultado dos números de conjunto tenha sido muito bom – especialmente a linda Abendesegen, de Hänsel und Gretel, de Humperdinck, muito bem cantada por Débora Neves e Laleska Terzetti – os números individuais revelaram que há uma cantora que ainda precisa estudar muito para poder pensar em se apresentar profissionalmente. Fico me perguntando: será que o ingresso em uma academia de ópera realmente ajuda ou apenas ilude e atrapalha cantores com sérios problemas de técnica vocal?

Estritamente do ponto de vista do concerto, contudo, se é a voz que está no foco, é interessante essa mistura de vozes em graus diferentes de estudo e maturidade. Se de um lado estava no palco aquela que é a mais importante voz lírica brasileira da atualidade, de outro também estavam estudantes em diferentes níveis, alguns próximos da vida profissional, outros distantes. Isso deu o “grão” do espetáculo.

Toda a vida é um mar

Voltemos ao Bruno. Além das obras já citadas, ele interpretou duas árias barrocas – Aux langueurs d’Apollon da ópera Platée, de Rameau, e Siam navi all’onde algenti, de L’Olimpiade, de Vivaldi – e o Martelo das Bachianas nº 5 de Heitor Villa-Lobos.

Bruno de Sá em Siam navi all’onde algenti, de L’Olimpiade, de Vivaldi

Especialmente na aria di paragoneSiam navi all’onde algenti” – na qual Aminta nos compara a navios sobre ondas prateadas, entregues à própria sorte, onde os nossos afetos são ventos impetuosos – o interessante e contemporâneo arranjo de Juliana Ripke distorceu o acompanhamento nas últimas repetições, introduziu dissonâncias, ritmos, promovendo um diálogo entre o Barroco e o contemporâneo. “Toda a vida é um mar”, canta Aminta, e o mar ganhou uma eficiente representação cênica. Bruno pôde, aqui, demonstrar a agilidade do seu canto e o brilho dos seus sobreagudos.

O espetáculo contou com um belo acabamento visual. Isso se deve, em grande parte, ao cuidado e à dedicação de Costa, que parece ter se entregue de coração a esse espetáculo, e também à ótima equipe que a cercou. Além dos já mencionados, Renato Bolelli Rebouças (direção de arte e cenografia), Alma Negrot (figurinos), Aline Santini (iluminação) e Roberto Alencar (coreografia).

Vale destacar, ainda, que tanto o cenário quanto os figurinos foram elaborados a partir dos acervos dos dois teatros da cidade: o próprio Theatro São Pedro e o Theatro Municipal de São Paulo. Além de uma saudável reutilização das peças, isso é um sinal da também saudável cooperação entre os teatros.

Após o espetáculo, perguntei a Bruno o que significava o anúncio de que esse terceiro concerto fechava um ciclo com o Theatro São Pedro. A resposta foi exatamente a que eu temia: os concertos que ele havia tratado com o São Pedro já foram realizados e, até o momento, nenhum outro teatro o contatou. Na entrevista que Bruno e Ligiana Costa concederam a João Marcos Copertino, do Opera Wire, essa informação é confirmada. No ano que vem, ao que tudo indica, não teremos, no Brasil, esse que é o orgulho nacional, a estrela internacional. Enquanto isso, no dia 25 de outubro, será lançado, pela Erato (Warner), um dos selos mais importantes do mercado, o segundo disco solo de Bruno: Mille Affetti, dedicado a autores do Classicismo. Não me espanta. Eu soube desde a primeira vez que o ouvi, em 2016, quando ele venceu o Concurso de Canto Maria Callas: o lugar de Bruno é o mundo, não o Brasil.


Fotos: Íris Zanetti.


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