Rigoletto, um Parasita

Nadine Sierra brilha como Gilda no Teatro alla Scala

Rigoletto (1851)
Música: Giuseppe Verdi (1813-1901)
Libreto: Francesco Maria Piave (1810-1873)
Ópera em três atos, a partir da peça Le Roi s’Amuse, de Victor Hugo.

Teatro alla Scala, 05 de julho de 2022

Direção musical: Michele Gamba
Direção cênica: Mario Martone

Gilda: Nadine Sierra, soprano
Duque de Mântua: Piero Pretti, tenor
Rigoletto: Amartuvshin Enkhbat, barítono
Sparafucile: Gianluca Buratto, baixo
Maddalena: Marina Viotti, mezzosoprano
Giovanna: Anna Malavasi, mezzosoprano
Monterone: Fabrizio Beggi, barítono
Marullo: Costantino Finucci, barítono

Orquestra e coro do Teatro alla Scala

De Victor Hugo a Verdi

— Un roi qui s’amuse est un roi dangereux.
(…)
— Cossé, vous avez tort. Il est très important
De maintenir le roi gai, prodigue et content
.
(“ O rei que se diverte é um rei perigoso. (…)
Cossé, você está enganado. É muito importante manter o rei feliz, pródigo e contente”.)

Era justamente às custas da esposa do M. de Cossé que se divertia, na festa que abre a peça Le Roi s’Amuse, de Victor Hugo (1802-1885), o Rei François I (François d’Orléans, 1494-1547) da França, que reinou de 1515 até a sua morte. A ele, que contraiu sífilis e não escondia sua infidelidade nem suas diversas amantes, é atribuída a frase “Uma corte sem mulheres é como um jardim sem flores”, e ainda: “Souvent femme varie. / Bien fol est qui s’y fie” (A mulher muda de ideia frequentemente. É louco quem nela confia.), utilizada na obra de Victor Hugo como a canção entoada pelo rei. Em italiano, poderia ser reescrita como: “La donna è mobile / qual piuma al vento,/ muta d’accento e di pensiero” – a célebre ária do tenor da ópera Rigoletto, de Giuseppe Verdi (1813-1901), com libreto de Francesco Maria Piave (1810-1873), baseada na peça de Hugo.

François I, contudo, não foi o único rei a ficar marcado na história da peça. Na manhã de 23 de novembro de 1832, dia seguinte à estreia na Comédie Française, durante o reinado de Luís Filipe I, “O Rei Cidadão”, o autor recebeu do diretor cênico um bilhete: “São 10:30h, e eu acabei de receber a ordem de suspender as apresentações do Roi s’Amuse. (…)”. Era uma ordem por parte do ministro. A primeira reação do Hugo, segundo conta no prefácio da obra, escrito apenas uma semana após o ocorrido, foi de incredulidade: a Constituição francesa garantia o “direito de publicar”, o que, segundo argumenta, era o direito de tornar público, e não apenas imprimir, o que inclui a encenação teatral. Além disso, a lei proibia o “restabelecimento da censura”. Após recurso, as coisas só pioraram: a suspensão tornou-se proibição (a peça só voltaria ao palco parisiense cinquenta anos mais tarde); a censura, na prática, havia sido restabelecida. “Onde está a lei? Onde está o direito?”, questiona o autor.

Segundo Hugo, a peça, que narra a história de Triboulet, o bobo do rei, havia revoltado o pudor dos militares, que a consideraram obscena. “Triboulet é disforme, Triboulet é imoral, Triboulet é bufão da corte; tripla miséria que lhe torna cruel. Triboulet odeia o rei porque ele é o rei, os senhores porque eles são os senhores, os homens porque nem todos possuem uma corcunda nas costas. Seu único passatempo é jogar os nobres contra o rei (…). Ele deprava o rei, ele o corrompe (…); ele o encoraja à tirania, à ignorância, ao vício. Nas mãos de Triboulet, o rei não é mais que um boneco todo poderoso que destrói as vidas de todos aqueles que o seu bobo lhe aponta. Um dia, no meio de uma festa, no preciso momento em que Triboulet incita o rei a raptar a esposa de M. de Cossé, M. de Saint-Vallier irrompe diante do rei e o censura fortemente pela desonra sofrida por [sua filha] Diane de Poitiers. Triboulet zomba e insulta esse pai de quem o rei tomou a filha. O pai ergue os braços e amaldiçoa Triboulet. Disso resulta toda a peça. O verdadeiro tema do drama é a maldição de M. de Saint-Vallier. (…) Essa maldição cai sobre quem? Sobre o Triboulet bobo do rei? Não. Sobre o Triboulet que é homem, que é pai, que tem um coração, que tem uma filha [Blanche]. (…) Triboulet tem apenas a sua filha no mundo; ele a esconde de todos os olhos (…). Quanto mais ele ajuda a devassidão e o vício a se espalharem pela cidade, mais ele mantém a sua filha isolada e protegida”.

Triboulet encoraja o rei a seduzir as filhas e esposas dos nobres – até o dia em que chega a vez da sua própria filha, Blanche. Após descobrir que a sua filha, sequestrada, havia sido levada ao palácio e estava no quarto do rei, Triboulet dispara:

Courtisans! courtisans! démons! race damnée!
(“Cortesãos! Cortesãos! Demônios! Raça maldita!”)

No fim da peça, ao pegar o saco que supunha conter o cadáver do Rei, ainda sem saber que lá estava, na verdade, sua própria filha, Triboulet exclama:

“Une des majestés humaines les plus hautes,
Quoi, François de Valois, ce prince au cœur de feu,
Rival de Charles-Quint, un roi de France, un dieu (…).”
(“Uma das mais altas majestades humanas,
Qual, François de Valois, esse príncipe de coração de fogo,
Rival de Carlos Quinto, um rei da França, um deus (…).”)

E, mais adiante, completa:

“(…) dans cette lutte entre nous suscitée,
Lutte du faible au fort, le faible est le vainqueur.”
(“(…) nessa luta suscitada entre nós,
Luta do fraco contra o forte, o fraco é o vencedor.”)

Sem dúvida a peça era incômoda para a monarquia da conturbada França pós-napoleônica, que, sob os efeitos das Revoluções Francesa e Industrial, se sentia ameaçada pela tensão sociopolítica e pelo apelo por liberdades individuais resultante do Iluminismo. Havia, por parte dos governos, uma paranoia, um medo exagerado de qualquer ideia que, segundo suas suspeitas, pudesse minar o seu poder. E a censura era o meio de que dispunham para controlar as ideias expressas na arte.

Vinte anos mais tarde, Verdi foi contratado pelo Teatro La Fenice, em Veneza, para produzir uma ópera para o carnaval de 1851. Ele escreveu a Piave que o que lhe vinha à mente era uma obra imensa: Le Roi s’Amuse, para ele o maior drama do teatro moderno. Além disso, “nela há um personagem que é uma das maiores criações de que o teatro de todas as nações e de todos os tempos pode se gabar”. Verdi se referia a Triboulet, o seu futuro Rigoletto.

Conforme esperado, Verdi e Piave também tiveram problemas com a censura italiana. Contando com o seu prestígio junto às autoridades, preferiram negociar algumas mudanças a ver a ópera banida. O rei François I virou um genérico Duque de Mântua (Vincenzo Gonzaga?); Triboulet, Rigoletto, fazendo alusão ao verbo francês rigoler, rir; Blanche, Gilda; Saint-Vallier, o pai ofendido e autor da maledizione, Monterone; o matador, de Saltabadil para Sparafucile; Madguelonne, Maddelena. O título, que originalmente seria La Maledizione, também teve que ser alterado. Verdi e Piave conseguiram impedir mudanças que descaracterizassem ou enfraquecessem o libreto. Foram mantidas, inclusive, as ásperas falas de Triboulet, agora Rigoletto, acima transcritas. Para Julian Budden, o grande estudioso de Verdi, “um espantoso triunfo da paciência e da diplomacia”.

Pouca coisa foi cortada da peça original. Desapareceram alguns trechos da festa, no início; o importante diálogo de Blanche com o rei, nos aposentos reais, quando ele lhe revela que é o rei e que o seu pai é o seu bobo e, em seguida, faz com que ela se entregue a ele; o falso consentimento de Triboulet para a filha namorar o rei (enquanto, na verdade, preparava a vingança); o momento em que Blanche chega a consentir com a vingança do pai, após ver que o rei a traía; e o final, quando algumas pessoas aparecem para, sem sucesso, tentar ajudar Triboulet a salvar Blanche. A obra de Hugo termina com Triboulet gritando “J’ai tué mon enfant”!; Verdi interrompe antes a sua obra, com Rigoletto exclamando: “Ah! La maledizione!”

Rigoletto em 2022: Teatro alla Scala

Para a produção que estreou em 20 de junho de 2022 no Teatro Alla Scala, em Milão, o diretor cênico italiano Mario Martone, que também é diretor de cinema, e a cenógrafa Margherita Palli foram buscar inspiração em um filme contemporâneo e de enorme sucesso. Trata-se do sul-coreano Parasita, de 2019, que, após ter ganho a Palma de Ouro em Cannes, foi o grande vencedor do Oscar 2020, com quatro estatuetas: a de melhor diretor para Bong Joon-ho, a de melhor roteiro original e – algo inédito! – acumulou as de melhor filme e melhor filme estrangeiro.

Parasita conta a história de duas famílias em condições socioeconômicas opostas, que habitam mundos absolutamente distintos: os Park, abastados, e os Kim, que vivem em condições precárias. A situação da família Kim muda quando um amigo chega com um talismã – introduzindo o elemento sobrenatural, como em Rigoletto, só que com sinal trocado de maldição para uma suposta sorte – e a proposta de que Ki-woo, o filho da família, se passe por professor e o substitua, dando aulas de inglês para a filha dos Park. A partir daí, a família Kim consegue se infiltrar no habitat dos Park como parasitas.

Embora se passe na Coreia do Sul, Parasita aborda um problema social que, bem sabemos, não se restringe àquele país. A imensa desigualdade econômica cria discrepâncias imensas e a certeza de que não há possibilidade de ascensão social dentro das regras do jogo. A partir dessa realidade, Parasita abandona o realismo e abraça a distopia, de forma violenta e irreverente. Bong conseguiu, assim, criar um thriller tragicômico sob medida para conquistar um amplo público: dos que gostam de crítica social aos que buscam tiros, suspense, humor.

Tanto em Rigoletto quanto em Parasita, não há personagens feitos sob medida para serem idolatrados ou condenados. Não são obras politicamente corretas, que simplesmente santificam as vítimas sociais.

Em Rigoletto, o personagem-título, conforme acima exposto, é disforme e sofre preconceito, é vítima da natureza e da sociedade; por outro lado, incita o rei a cometer abusos, é cruel, tenta proteger a sua família, sua filha, do mal que ele próprio ajuda a provocar na casa alheia. Gilda, a vítima de dois homens, deu a vida por amor. Nada mais nobre, porém enganou o pai. O Duque – infiel, mentiroso, autoritário, libertino, que seduz mulheres e delas abusa – também tem o seu momento de real afeto, embora efêmero, e lamenta quando fica sabendo que Gilda havia sido raptada. Maddalena, a irmã de Sparafucile, prostituta, que atraía homens para a morte, também sabe amar e tenta salvar o Duque. Estamos diante de uma exposição das contradições, misérias e da complexidade humana – não por acaso é de Victor Hugo, não por acaso Verdi a escolheu.

Em Parasita, os integrantes da família Kim, como Rigoletto, são vítimas da sociedade, mas, também como ele, odeiam os Park, agem de forma criminosa, exploram a sociedade que os explora, mentem, falsificam, roubam, fazem toda a espécie de mal. Como Rigoletto, os Kim querem proteger os seus filhos dos males que provocam nos filhos dos outros. Ao contrário de Rigoletto, Ki-taek consegue matar o patrão, mas nem por isso, e nem com todas as manobras e trapaças feitas, consegue melhorar de vida. Ao contrário: como Gilda, sua filha também é assassinada.

Parece, pois, razoável a apropriação feita por Martone com o filme de Bong. O problema é que, para um bom teatro, não basta a apropriação de cenário, figurino e sucesso alheios. A impressão que dá é que o paralelo entre as situações acabou levando Martone a usar o filme como estratégia de marketing, sobretudo no verão europeu, quando turistas que estão passando por Milão incluem no programa uma noite no famoso Teatro alla Scala. Uma ópera popular com cenário de Parasita, sucesso garantido!

O lado positivo disso tudo é que a referência ao blockbuster possibilita que o público não habituado ao teatro de ópera se identifique com a obra de Hugo-Piave-Verdi e a veja como algo vivo, atual, que faz parte do seu mundo, e não como algo antiquado que os avós escutavam em toca-discos. Também é verdade que o cenário sul-coreano aponta para a atemporalidade e generalidade de Rigoletto: a crueldade da sociedade continua a mesma em todo o mundo, os vícios continuam os mesmos, as consequências dessa tensão social continuam trágicas.

Martone , contudo, apresenta algumas ideias interessantes. Uma delas foi a cena inicial, em que Rigoletto entrega a filha de Monterone ao pai após ter sido abusada pelo Duque. No segundo ato, Gilda praticamente repete a cena ao ir ao encontro de Rigoletto vestida com o mesmo roupão branco, explicitando o paralelo entre as duas filhas, entre os dois pais. 

Outra boa ideia, esta da cenógrafa, foi que a primeira coisa que se vê, quando a cena passa da casa rica do Duque para a residência pobre de Rigoletto, é o lixo. É ele que fica em primeiro plano, como cartão de visita daquela gente que vive em um submundo.

Como Monterone, Fabrizio Beggi se destacou tanto vocal quanto cenicamente, dando visibilidade a um personagem que fica apagado em boa parte das produções. O mesmo vale para o Sparafucile de Gianluca Buratto, sobretudo em relação à sua poderosa voz de baixo. Também não se pode reclamar da eficiente Maddalena de Marina Viotti.

Como o Duque, Piero Pretti entregou um belo timbre e uma bela linha de canto, com admirável legato. Apenas nos graves a sua voz sumia sob a orquetra do la Scala, dirigida pela pesada batuta de Michele Gamba. A única coisa a se lamentar é que voz tão quente, canto tão brilhante, não tenham sido acompanhados por iguais brilho e calor cênicos. Faltou-lhe, como canta o próprio Duque no inicio da ópera, la fiamma d’amore.

No papel-título, o mongol Amartuvshin Enkhbat demonstrou um consistente timbre de barítono, que se projeta bem, com bom peso e agradável delicadeza. Ao seu canto, porém, faltou teatralidade, faltou o caráter complexo e repleto de nuances do “personagem que é uma das maiores criações de que o teatro de todos as nações e de todos os tempos pode se gabar”. Deixou-se guiar, em sua interpretação, pela leitura pesada de Gamba. No segundo ato, seu ”Cortigiani, vil razza dannata”, um dos momentos mais fortes da atuação de Rigoletto, foi exageradamente rápido e inexpressivo.

Foi, sem sombra de dúvida, Nadine Sierra a grande estrela da noite. Gilda experiente, Sierra já cantou o papel no la Scala em outra produção, em 2016, já contracenou com Leo Nucci, o grande Rigoletto dos últimos anos, já tem há anos o papel como um de seus cartões de visita. No último dia 5, fez música e fez teatro: fez Verdi e Hugo. Quando ela atuava, a cena fluía; quando ela cantava, o maestro a seguia, a batuta ficava mais leve, os seus lindos pianíssimos eram acompanhados pela orquestra, o seu andamento era respeitado, era ela quem mandava. A riqueza do seu canto deu o colorido da noite. Sua personagem foi devidamente construída: da mesma forma que Verdi apresenta primeiro a Gilda infantil, ingênua, virgem, com o solo de flauta, e no segundo ato, com o solo de oboé, a Gilda violentada e que já conhece a verdade tanto sobre o pai quanto sobre o amante, também a voz de Sierra evoluiu de uma leveza quase infantil para uma voz mais encorpada. É bem verdade que aqui a cena de Martoni, que pinta Gilda desde o início como uma adolescente rebelde, não a ajudou, mas mesmo assim ela conseguiu trabalhar a importante evolução psicológica da personagem. “Tutte le feste al tempio”, quando Gilda narra o ocorrido ao pai, foi um especial momento de emoção e sensibilidade. Foi o ponto alto da noite.

Michele Gamba, jovem maestro, ex-assistente de Daniel Barenboim, deu pulso à orquestra. Não se pode negar, dominou a orquestra e o coro masculino do la Scala. O problema é que a sua regência é pesada, sem nuances , sem poesia. Só funciona com uma solista do porte de Nadine Sierra, que sabe interpretar com personalidade. Esse tipo de leitura compromete a teatralidade.

De qualquer modo, um Rigoletto no Teatro alla Scala não é pouca coisa. É uma experiência impactante.

A récita da estreia, com direito a todas as vaias a Gamba e Martone – se assim não fosse, não seria la Scala! – foi filmada e está disponível na Medici.tv.

Piero Pretti e Nadine Sierra

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