Obra de Gounod encerra, com grandiosidade, jovialidade e sucesso, temporada 2022-2023 da Opéra National de Paris.
Roméo et Juliette (1867) Ópera em cinco atos |
Música: Charles Gounod (1818-1893) Libreto: Jules Barbier (1825-1901) e Michel Carré (1821-1872) |
Opéra National de Paris (Bastille), 12 de julho de 2023 |
Direção musical: Carlo Rizzi Direção cênica: Thomas Jolly |
Juliette: Elsa Dreisig, soprano Roméo: Benjamin Bernheim, tenor Capulet: Laurent Naouri, barítono Frère Laurent: Jean Teiltgen, baixo Stephano: Marina Viotti, mezzosoprano Gertrude: Sylvie Brunet-Grupposo, mezzosoprano Mercutio: Florian Sempey, barítono Benvolio: Thomas Ricart, tenor Tybalt: Maciej Kwaśnikowski, tenor Pâris: Sergio Villegas Galvain, barítono Le Duc de Vérone: Jérôme Boutillier, barítono |
Orquestra e Coro da Opéra National de Paris |
É surpreendente, mas o espetáculo que tive o privilégio de ver, no dia 12 de julho, em Paris, com o casal de protagonistas dos sonhos, foi a première da ópera Roméo et Juliette, de Charles Gounod, na Opéra Bastille. De fato, a última vez que a Opéra de Paris levou a obra ao palco – no charmoso e histórico Palais Garnier, com Alfredo Kraus no papel de Roméo – foi em dezembro de 1985, e a Bastille só foi inaugurada em 1989. Na época, sequer havia nascido a parisiense Elsa Dreisig, a Juliette da Bastille; Benjamin Bernheim, o Roméo, também parisiense, ainda estava no berço!
Isso não significa, evidentemente, que o lirismo da obra de Gounod não tenha passado por Paris durante esses anos. Ao contrário: a última produção na cidade é bastante recente, data de dezembro de 2021, na Opéra-Comique. Aliás, a histórica Salle Favart está intimamente ligada à obra. Embora tenha sido criada em 1867 no Théâtre-Lyrique, casa concorrente, na época, da Opéra-Comique e da Opéra de Paris, com o fim desse teatro, seguiu, em 1873, para a Opéra-Comique – e foi a primeira ópera a quebrar com duas das principais regras da casa: não tem diálogos falados e tem um final trágico. A obra estreou na Opéra apenas em 1888. Aproveito, aqui, para observar que tanto a estreia na Opéra-Comique quanto aquela na Opéra Garnier, cada uma com suas características específicas em termos de orquestra, espaço e solistas, representou uma nova edição da partitura. A de 1888, realizada pelo próprio Gounod, que incorporou o ballet, é a normalmente apresentada hoje em dia.
Quando se fala no amor trágico do célebre casal de Verona, logo se pensa em William Shakespeare. De fato, ao contrário do que acontece com a ópera de Bellini (I Capuleti e I Montecchi) e outras adaptações italianas do início do século XIX, para escrever o libreto de Roméo et Juliette, Jules Barbier e Michel Carré se basearam diretamente em Shakespeare. Mais que isso: mantiveram a estrutura de cinco atos da peça, que é uma característica do teatro shakespeareano.
As origens do casal suicida, no entanto, podem ser encontradas no amor proibido entre Píramo e Tisbe, em Ovídio. Além disso, segundo Barbara Heliodora na introdução à sua tradução para o português de Romeu e Julieta, “no século III, em uma historieta grega, pela primeira vez uma mulher recorre à poção que simula a morte para escapar a um segundo casamento com o marido vivo, mas o tema se torna realmente popular na Renascença; em 1476, em ‘Il Novellino’, de Masuccio, o veneno já é ministrado por um frade”.
A história passa a se aproximar dos moldes em que a conhecemos em 1530, com o italiano Luigi da Porto, quando aparecem os Cappelleti (que depois viraram Capuleti) e os Montecchi, que já haviam povoado o capítulo VI do Purgatório da Divina Comédia, de Dante Alighieri. Da Porto, que, aparentemente, estava mais preocupado com suas próprias aventuras amorosas que com questões políticas ou sociais, esclarece, no entanto, que a disputa entre as famílias se dava porque os Cappelleti eram guelfos, partidários do Papa, e os Montecchi, gibelinos, defensores dos poderes do Sacro Império Romano. Pouco mais de vinte anos depois de da Porto, o escritor Matteo Bandello, também italiano, com o objetivo de advertir os jovens sobre o perigo das paixões, publicou a sua versão da história. Em 1562, a obra de Bandello foi traduzida para o inglês, em forma de poema, por Arthur Brooke: The Tragicall Historye of Romeus and Juliet. Foi essa a principal fonte da célebre peça de Shakespeare.
Brooke seguiu a mesma linha de Bandello: em seu prefácio, deixa claro que sua obra se presta a encorajar os homens a evitarem as “afeições loucas”, que sejam contidos em relação aos prazeres da carne. Segundo a tradução de Heliodora, Brooke se dirige ao “bom” leitor, ao qual a tragédia é endereçada: “para descrever para ti um casal de amantes infelizes, que foi escravizado pelo desejo desonesto, desrespeitando a autoridade e o conselho de pais e amigos, constituindo seus principais conselheiros alcoviteiras bêbadas e frades supersticiosos (…), apressando a mais infeliz das mortes”.
O inovador e genial toque autoral de Shakespeare, portanto, não está na criação da trama, mas no olhar que lançou sobre ela, na forma como a contou e a estruturou, no sentido que deu a ela. Shakespeare não está preocupado em condenar os seus jovens heróis ou educar quem quer que seja contra as paixões. Como sempre, a preocupação dele está mais voltada ao funcionamento da sociedade. O amor entre Romeo e Juliet se contrapõe ao ódio que reinava entre as suas respectivas famílias. É, pois, esse ódio, esse conflito, essa desordem a causa das trágicas mortes, e não as paixões.
Nas obras de Shakespeare, sempre há uma desordem social e um antagonismo entre dois grupos. Em Romeo and Juliet, esses dois fatores podem ser encontrados no conflito entre as duas famílias – e na peça, o motivo desse conflito não é sequer mencionado, não importa: o que importa é que a briga é algo que traz um sério distúrbio social, uma divisão, uma animosidade, e é uma clara desobediência à autoridade do príncipe. Nesse sentido, é uma obra que fala muito à nossa sociedade, com suas divisões e conflitos cada vez mais acentuados e alimentados pelas redes sociais.
Em Gounod, fica claro que foi esse antagonismo, esse distúrbio social que gera a tragédia, e também é exposta a desobediência ao príncipe, embora ele não tenha tantas aparições quanto na obra de Shakespeare. No fim da peça, consumada a tragédia, o príncipe reaparece, repreende as famílias e, aí sim, às custas da vida dos jovens, consegue estabelecer a paz. No fim da ópera, a lição é dada, mas não é celebrado um acordo de paz, e nem há uma repreensão tão enfática da autoridade sobre os nobres e insensíveis pais – coisa que não seria bem recebida pela sociedade dos tempos de Gounod.
Outras características das tragédias shakespeareanas já estão presente nessa obra que, segundo estudiosos, deve ter estreado no início da fase lírica do autor, entre 1595 e 1597: o comportamento, as decisões dos personagens levam à tragédia; os sentimentos do herói trágico são extremos, exagerados; um acaso, um incidente, ajuda a piorar as coisas; uma decisão errada, um engano, também conduz à tragédia. É fácil identificar tudo isso em Romeo and Juliet. Romeo é do tipo melancólico, que não tem o menor domínio sobre as suas paixões. Os incidentes, presentes na peça, foram eliminados da obra: por conta de uma suspeita de peste, o monge encarregado de enviar a carta a Romeo, avisando-o sobre a falsa morte de Juliet, não conseguiu chegar a Mântua — na ópera, não fica claro por que a carta não chegou; para curar a profunda tristeza de Juliet, causada supostamente pela morte de Tybalt, Capulet resolve casar a filha — na ópera, esse foi o último desejo de Tybalt, que havia visto Juliette com Roméo, tirando o caráter inusitado da decisão.
Outro ponto muito importante em Romeo and Juliet é a relação entre a noite e o dia, o sol e a lua. Nas palavras de Barbara Heliodora: “O amor e a juventude são luz; a tristeza e a dor são sombrias, são o sol que se põe ou que não quer nascer. Há a imagem do brilho do sol, das estrelas, de luar, velas, tochas, da rapidez da luz do raio; há a imagem da escuridão que chega, de nuvens, sombra, noite. Mas é tudo muito complexo, porque os grandes momentos de felicidade (o encontro, a cena do balcão, a despedida) vêm na noite — e, naturalmente, a iluminam, enquanto os conflitos, mortes e o banimento dão-se de dia. O sol claro parece ser a luz do ódio, não do amor”.
Tanto em Shakespeare quanto em Gounod, contudo, na cena do balcão, o sol é a luz do amor. Nesse momento, Juliette é o sol – é a ela que Roméo se dirige quando canta Ah! lève-toi, soleil!, é esse “sol” que ele busca.
Essa relação da noite com o amor e do dia com a separação, com a impossibilidade do amor, vem bem a calhar à adaptação operística, sobretudo na segunda metade do século XIX: é uma associação cara ao Romantismo e presente em várias obras – a mais emblemática delas, claro, é Tristan und Isolde, de Wagner. Não à toa, Gounod não somente incorpora essa dicotomia à sua obra, mas a explora com maestria. Como explica o maestro Laurent Campellone no programa de sala de dezembro de 2021, da Opéra-Comique, “Na orquestra, as cordas estão associadas à lua, ao feminino, ao elemento líquido, enquanto os sopros de madeira representam o despertar, o dia, o masculino, o calor da respiração”.
Esse jogo de claro e escuro, luz e sombra, é uma das características mais marcantes da produção do diretor cênico francês Thomas Jolly, que contou com a ótima iluminação de Antoine Travert. Nos figurinos de Sylvette Dequest, Juliette estava sempre de branco, iluminada, contrastando com o ambiente um tanto sombrio e cinzento, embora opulento — afinal de contas, ela é o sol! Na cena do balcão, Juliette está na parte superior, iluminada por um feixe de luz que vem de cima, formando um cone, como se lá houvesse uma cúpula, uma fenda, por onde entrasse uma luz celeste. Na parte inferior, terrena, de preto, Roméo a contempla.
Para Jolly, em vídeo publicado no site da Opéra de Paris (https://youtu.be/66QRfgUw24E) e em texto do programa de sala, o oxímoro, essa combinação de opostos, é muito forte na obra: não só luz e escuridão, dia e noite, mas também amor e ódio. Segundo ele, a música de Gounod transmite essa história que mistura amor e morte o tempo todo, alternando cenas de grande conjunto com cenas dos dois amantes quase que isolados do mundo durante longos minutos, como se eles ficassem suspensos – e, para ele, isso se sente mais com a força da música de Gounod que na peça de Shakespeare. A produção salientou esse contraste com cenas de conjunto grandiosas, até empetecadas demais, populosas, com coreografias que remetem a danças modernas, em contraponto a cenas mais intimistas, em que os amantes estão sozinhos. A noite de núpcias, por exemplo, é ambientada sob o balcão de Juliettte e delimitada pelas luzes que formavam a cela de Frère Laurent, que em Jolly era um barco.
A substituição da cela de Frère Laurent por um barco nos conduz a diversos significados: ocorreram-me, quase que simultaneamente, o barco de Pedro, uma referência tão forte na Bíblia, e o de Caronte, que conduz ao Hades, à morte — Juliette não falou que o túmulo seria seu leito nupcial? Será nesse mesmo barco que, no final da ópera, Roméo encontrará Juliette, dentro do mausoléu dos Capulets.
Jolly optou por, logo no início, durante o prelúdio, reintroduzir uma das informações presentes na peça de Shakespeare e eliminada por Barbier e Carré: a peste. Desse modo, Jolly reforça não apenas esse clima de morte que paira pela obra – mesmo com todo o lirismo, seja da poesia de Shakespeare, seja da música de Gounod —, mas também o jogo de contrastes, já que, na produção, as referências à peste ocorrem no mesmo ambiente em que se dará a festa dos Capulets.
Outra acertada escolha de Jolly aproximou mais o espetáculo da obra-prima literária. Quando a mãe comunica a Juliet (a de Shakespeare) que ela deverá se casar com Paris, ela se revolta e é repreendida pelo pai. Em Gounod isso não acontece: Frère Laurent ordena que ela fique quieta e ela não se manifesta. Em Jolly, Juliette não consegue esconder a sua insatisfação com a decisão do pai, o que tornou a personagem mais humana e mais próxima da construção genial de Shakespeare.
Benjamin Bernheim, no vídeo presente no site da Opéra de Paris (https://youtu.be/-XL9O9qtusU), observa que Roméo muda completamente depois de ter visto Juliette pela primeira vez, e a música que Gounod escreve para ele acompanha essa mudança: na primeira metade do primeiro ato, Roméo é pessimista e canta majoritariamente frases em tonalidade menor, com linhas descendentes; a partir do momento em que vê Juliette, a música de Roméo passa a ser quase que totalmente em tonalidade maior, e suas frases passam a ser ascendentes, luminosas, impetuosas. E Bernheim salientou, com seu canto, essa transformação sofrida por seu personagem. No começo, sua voz parecia um pouco opaca e se projetava com certa dificuldade, mas a partir do momento em que Roméo viu Juliette, tudo mudou: a voz de Bernheim ganhou brilho e preencheu toda a Bastille.
Como dito acima, Roméo tem sentimentos acentuados, e esse é um dos fatores que conduz à tragédia. É, pois, fundamental ao intérprete conseguir transmitir esse caráter trágico, ao mesmo tempo apaixonado e meio etéreo, melancólico, fora da realidade. Foi o que fez Benjamin Bernheim. No ano passado, eu o vi como o Duque de Mântua, em Rigoletto, de Verdi, no Metropolitan Opera. Lá, apesar do canto preciso, foi notória a dificuldade que ele teve para encarnar aquele personagem frívolo, terreno e inconsequente de Verdi e Hugo. Como Roméo, seu personagem é quase que o oposto do Duque e o seu sucesso foi total – é verdade, Roméo também muda de paixão com a rapidez do olhar, mas nada impõe, é sincero e se doa a ponto de estar disposto a morrer por seu amor. Ao contrário do Duque, Roméo é introspectivo, sonhador e puro lirismo. Com o seu timbre luminoso na medida certa — claro, mas amadeirado, não metálico — e o seu fraseado refinado, Bernheim deu vida a um Roméo memorável.
Elsa Dreisig, no vídeo da Opéra (https://youtu.be/D5DbFYWik58), diz que Juliette é um personagem que diz muito “não”, o que é tanto genial quanto incomum. Para ela, Juliette busca resolver as coisas, tem ação, mas é surpreendida e, mesmo diante do imprevisto, não perde o rumo. Juliette é vítima do ódio entre as famílias, mas não é passiva. Dreisig conta, também, que Jolly a ajudou muito na interpretação física e carnal do personagem ao adicionar esse estado de constante surpresa – com direito a todas as frustrações e decepções pelas quais os personagens passam. “Nós sentimos os seus caminhos, é muito eletrizante fazer isso em cena: é o jogo de ator que, de fato, nutre o canto”, disse, salientando a importância do aspecto teatral que, segundo conta, não é algo espontâneo, mas demanda trabalho, autocompreensão e experimentação. E, lembra ela, é justamente o que Juliette faz: ela ousa, ela tenta.
Citei tudo isso porque, embora ainda haja espaço para a jovem Dreisig atingir uma interpretação mais profunda, sua preocupação com a construção da personagem, com realmente viver essa personagem, se faz sentir no palco. Além de muito bem construída, sua Juliette foi de frescor e jovialidade contagiantes. Além disso, embora Roméo seja o típico herói trágico, Juliette é a personagem mais interessante, é ela quem toma as decisões, sabe dizer “não”, como observou Dreisig, mas também “sim” — e o seu “sim” para Roméo é um ato de coragem, que muda não somente a sua vida, mas restabelece a ordem em Verona. Antes de conhecer Roméo, Juliette beira a infantilidade; ao descobrir a identidade do amado e a gravidade da situação, enfrenta-a com coragem e maturidade – com medo, com acessos de cólera, mas enfrenta tudo, e o seu processo de amadurecimento é perceptível — é ela quem propõe a Roméo que se casem. No dueto de amor, após a noite de núpcias, sua natureza infantil quer negar a chegada do dia, e quando Roméo resolve ceder e ficar, ressurge a Juliette mais madura, que o faz partir. A interpretação de Dreisig é rica nesses contrastes. Sua jovial arieta Je veux vivre, no primeiro ato, soou com a graciosidade de uma brincadeira infantil (em Shakespeare, Juliet tem 13 anos), enquanto que em Amour, ranime mon courage, no quarto ato, quando ela vai beber a poção, foi possível sentir o desespero de uma jovem exposta a uma situação extrema. Isso sem contar que, do ponto de vista vocal, Dreisig conseguiu vencer com louvor essa segunda ária, que para a soprano representa um desafio bem maior que a primeira. Em suma, o que torna a Juliette de Dreisig especial é a jovialidade que transmite – de uma jovem que está tendo que amadurecer em uma questão de horas –, tanto cênica quanto vocalmente, com o seu timbre belo e brilhante, agudos precisos, com uma movimentação incessante e bem marcada, bem executada, natural, muitas vezes coreografada como uma dança.
Essa foi a segunda vez que tive a oportunidade de ouvir Dreisig ao vivo. A anterior, em abril, foi em Strasbourg, onde a sua Micaëla se destacou em uma Carmen em forma de concerto. Ali, o seu canto e a qualidade da sua interpretação já me haviam chamado a atenção. É uma cantora de pouco mais de 30 anos, que tem tudo para crescer ainda mais e atingir um nível de excelência.
Os quatro duetos de amor são, sem dúvida, os pontos altos da obra, e o foram na Bastille, não apenas graças às excelentes interpretações dos dois protagonistas, mas graças, sobretudo, à perfeita interação entre eles, à autenticidade que conseguiram imprimir às cenas. No primeiro dueto, Ange adorable, uma valsa, quando se conhecem, dançando, durante o baile, foi especialmente feliz a direção de Jolly, que colocou os dois jovens bailando, suas mãos se aproximando sem que se tocassem. E Roméo surgiu, de repente, diante de Juliette, logo que ela terminou de cantar Je veux vivre.
Jolly utilizou como cenário a escadaria do Palais Garnier, colocando, assim, a Opéra Garnier diante da Bastille. Nas entrevistas e no programa, ele justifica isso como parte dessa união de contrários, o que parece não fazer muito sentido — as duas casas não se opõem, mas são parte da mesma instituição. Temos, no entanto, um cenário grandioso, com a escadaria, que se presta bem à trama. Como o Globe Theatre, o cenário de Bruno de Lavenère tem um ambiente mais elevado (como o balcão, onde Juliette brilha como o sol), que representa um espaço, digamos, celeste; um ambiente “chão”; e um ambiente inferior, onde ficam os mortos, criado sob o balcão — lá ocorrem o casamento, a noite de núpcias e, claro, a morte, bem como havia cantado Juliette logo no primeiro ato: Que le cercueil soit mon lit nuptial! Alguns exageros no cenário, nos figurinos e na coreografia? Sem dúvida, mas a ideia geral funcionou muito bem, e houve momentos de real beleza e poesia.
Para o ótimo resultado do espetáculo como um todo, também contribuiu o bom nível dos cantores comprimários. Dentre estes, merece especial destaque o Stephano de Marina Viotti, dona de um belo timbre e de um canto ágil, embora tenha faltado certa masculinidade a seu personagem. Saíram-se muito bem, também, Jean Teitgen, que apresentou um Frère Laurent austero e com voz imponente, Sylvie Brunet-Grupposo como Gertrude, Thomas Ricart como Benvolio, Maciej Kwaśnikowski como Tybalt, Sergio Villegas Galvain como Pâris e Jérôme Boutillier como o Duque de Verona, para citar os principais.
A interpretação de Laurent Naouri como Capulet pareceu ter evoluído entre os dias 26 de junho, quando foi gravado o vídeo (ainda disponível na France TV) e 12 de julho: se no vídeo o seu fraseado estava silábico, com som opaco, no dia 12 esse problema se restringiu ao início, na cena da festa, quando estava com máscara e tendo que vencer uma orquestra mais densa. Cenicamente, porém, pareceu não ter conseguido se adequar bem à movimentação proposta por Jolly (a menos que a intensão do encenador tenha sido ridicularizar o pai de Juliette – hipótese que, de certa forma, é reforçada pelo figurino). Também Florian Sempey, o Mercutio, embora com voz imponente e boa movimentação cênica, truncou um pouco o seu fraseado e empurrou a voz, provavelmente preocupado em se fazer ouvir no teatro, que nada tem de pequeno — preocupação desnecessária, porque a sua voz passava facilmente pela orquestra.
O maestro italiano Carlo Rizzi, a quem coube a direção musical dessa ópera francesa, na França, com direção cênica francesa e elenco predominantemente francês, extraiu da orquestra da Opéra de Paris uma sonoridade homogênea e fluente, com todo o contraste entre os momentos de sutileza e de grandiosidade, e, principalmente, com o lirismo que a música de Gounod exige. Em momento algum os cantores foram encobertos pela massa orquestral.
A qualidade do coro da Opéra, preparado por Ching-Lien Wu, deu um brilho especial ao espetáculo, com sonoridade perfeitamente timbrada, como um só corpo formado por várias vozes, mas não é somente de um belo som timbrado que é feito um bom coro: a sonoridade se adaptava às situações. No momento em que Juliette, caso não tivesse “morrido”, iria se casar com Pâris, a sonoridade do coro mudou totalmente, conferindo certo tom caricato ao canto – ali, eram os convidados de Capulet para o casamento.
A julgar por esse Roméo et Juliette, a Opéra de Paris está conseguindo achar um caminho para solucionar o problema de público que vinha enfrentando. Com bom elenco — ótimos protagonistas — produção grandiosa, clássica, mas com toques modernos (apesar de alguns elementos de gosto discutível), e uma obra de repertório ausente da casa há décadas, a Bastille lotou, ao menos nas últimas récitas — eu tinha a intensão de ver o elenco alternativo, no dia 15, mas não pude, pois os ingressos estavam esgotados e havia longa fila de espera.
Após a récita do dia 12, a última com Dreisig e Bernheim, a Bastille inteira se levantou para aplaudir os dois protagonistas. Uma merecida homenagem!
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Fotos: Vincent Pontet / OnP.
Cofundadora do site Notas Musicais, também colabora com a revista eletrônica mexicana Pro Ópera e com o site italiano L’Ape Musicale. Fez parte do júri das edições 2020 e 2022 a 2024 do Concurso Brasileiro de Canto ‘Maria Callas’ e é membro do conselho de Amigos da Cia. Ópera São Paulo. Em 2017, fez a tradução, para o português, do libreto da ópera Tres Sombreros de Copa, de Ricardo Llorca, para a estreia mundial da obra, em São Paulo. Estudou canto durante vários anos e tem se dedicado ao estudo da história da ópera e do canto lírico.
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