“Rusalka”: música e encantamento

Ópera de Dvořák estreou no TMRJ com bela produção de André Heller-Lopes e Ludmilla Bauerfeldt no papel-título.

Rusalka (1901)
Ópera em 3 atos
Música: Antonín Dvořák (1841-1904)
Libreto: Jaroslav Kvapil (1868-1950)
Theatro Municipal do Rio de Janeiro, 16 de novembro de 2024
Direção musical: Luiz Fernando Malheiro
Direção cênica: André Heller-Lopes
Cenografia: Renato Theobaldo
Iluminação: Gonzalo Cordova
Figurinos: Marcelo Marques
Desenho de vídeo: Derek Pedros
Design gráfico: Carla Marins
Coreografia e direção de movimento: Bruno Fernandes e Mateus Dutra
Rusalka: Ludmilla Bauerfeldt, soprano
O Príncipe: Giovanni Tristacci, tenor
Vodník, o Senhor das Águas: Licio Bruno, baixo-barítono
Ježibaba, a Feiticeira: Denise de Freitas, mezzosoprano
A Princesa Estrangeira: Eliene Coelho, soprano
O Guarda Florestal e o Caçador: Geilson Santos, tenor
O Ajudante de Cozinha: Hebert Campos, contratenor
Ninfas:
Carolina Morel e Mariana Gomes, sopranos
Lara Cavalcanti, mezzosoprano
Julia Cobas, Manoela Leopoldino e Gabriela Mendes, bailarinas
Orquestra Sinfônica e Coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

Neste ano que marca os 120 anos da morte de Antonín Dvořák (1841-1904), Rusalka, a grande ópera do compositor tcheco, subiu pela primeira vez ao palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Antes de chegar à “cidade maravilhosa”, a (literalmente) brilhante produção do diretor cênico brasileiro André Heller-Lopes, que fica em cartaz no Rio até este domingo, 24 de novembro, navegou pelas Ilhas Canárias: estreou em março de 2024 no Auditório de Tenerife.

O libreto do poeta e dramaturgo tcheco Jaroslav Kvapil (1868-1950) baseia-se, em parte, no conto A Pequena Sereia (1837), de Hans Christian Andersen, mas não só. Também figuram entre as fontes de Kvapil Ondine (1811), de Friedrich de La Motte Fouqué, A Ondina do Lago (1857), dos irmãos Grimm, O Sino Afundado (1896), de Gerhard Hauptmann, Undine (1845), de Robert Lortzing e Mélusine (Melusina), uma lenda medieval francesa. De cada uma dessas fontes vem um aspecto do libreto: de Andersen, vieram a trama amorosa, a bruxa e o punhal com o qual Rusalka deveria matar o Príncipe (mas se recusou); de La Motte Fouqué, a natureza da personagem de ondina (uma rusalka), e não de sereia; dos irmãos Grimm, a corça e a lua; de Melusina, o destino; de Lortzing, o Guarda Florestal e o Ajudante de Cozinha.

Em Rusalka, como no conto de Andersen, há dois mundos que se contrapõem: o mundo aquático de Rusalka e o mundo humano do Príncipe. A comunicação entre esses dois mundos é impossível. Perfeito personagem romântico, Rusalka nega a sua natureza, o seu mundo, e parte, a qualquer custo, para o outro mundo em busca do amor ideal e de uma alma imortal. Como um artista, Rusalka acaba por não encontrar o seu lugar nem em seu mundo, nem no mundo com o qual sonha.

Qual é o mundo “real”, se é que algum desses mundos merece esse adjetivo? O de Rusalka ou o do Príncipe? Para nós, é natural responder que o mundo real é o mundo do Príncipe, nosso mundo humano e concreto. O resto é tudo ilusão — afinal de contas, espíritos aquáticos não passam de fantasia.

Do ponto de vista da narrativa da ópera (e do conto de Andersen), contudo, a lógica é inversa. A história é contada a partir da personagem-título, é ela que sonha com um amor impossível, um príncipe encantado de uma espécie que lhe é totalmente estranha; é ela que pede à feiticeira que lhe ajude a se transformar em outra pessoa e ir para um outro mundo, onde poderá viver esse grande amor. Em outras palavras, Rusalka quer sair desse seu mundo concreto e buscar a ilusão em outra parte. Por isso, para André Heller-Lopes, é o mundo de Rusalka que é o “mundo real” e o do Príncipe, pura fantasia.

Na produção de Heller-Lopes, no entanto, Rusalka é bem mais que uma menina em busca do príncipe encantado: não são os seus devaneios que a levam ao mundo da fantasia, mas o encantamento produzido pela música. Os personagens são músicos de uma orquestra, da qual a feiticeira é o maestro. Desse modo, são salientados o poder da música sobre os nossos sonhos e desejos, e sobre o artista deslocado, ao qual me referi acima.

No primeiro e no terceiro atos, o belo e funcional cenário de Renato Theobaldo retrata uma orquestra na iminência de receber os músicos e iniciar um concerto. Lá estão as cadeiras, as estantes e alguns instrumentos. Como pequenas luas — afinal de contas, Rusalka também está ligada à noite e à lua —, esferas metálicas pendentes espelham por todo o teatro a linda iluminação de Gonzalo Cordova. Os vídeos de Derek Pedros, projetados como cenário em uma tela no fundo do palco, ajudam a nos transportar para um ambiente marítimo sem deixar a cena sobrecarregada — como é tão comum acontecer quando há projeções.

Ludmilla Bauerfeldt no terceiro ato de Rusalka

Além da orquestra retratada sobre o palco, também está presente um gramofone. Desse modo, além da imagem daquela música que está sendo preparada, também está presente a música que já foi tocada e registrada, a música que vem de um outro tempo. A música — imaterial e atemporal — assume, definitivamente, o papel de protagonista.

Em um momento de grande beleza, no início da ópera, as ninfas cantam e dançam em volta do gramofone. No final do primeiro ato, Rusalka e o Príncipe se encontram pela primeira vez perto do gramofone. Na última cena, também é junto ao gramofone que eles se reencontram.

No segundo ato, o palácio do Príncipe é montado com painéis meio transparentes: nada é definido, tudo é um sonho. A cena nos situa em países orientais (mais especificamente no Irã), onde as mulheres são ricamente vestidas, mas não têm voz — como Rusalka no meio dos humanos. Com extremo bom gosto, Marcelo Marques soube explorar bem esse toque oriental e ficcional nos figurinos.

Além da situação da mulher, o mutismo de Rusalka também tem outros aspectos. Na edição de L’Avant-Scene Opéra sobre Rusalka (nº 205), Jean-Fraçois Candoni escreve que o mutismo “é revelador do descrédito no qual caiu a língua dos homens, instrumento de comunicação e de manipulação posto a serviço da duplicidade, da mentira, da infidelidade, ligado à vaidade do mundo e ao artifício”. Para ele, em contrapartida, “o canto que Rusalka dirige à lua é (…) a expressão de sua busca por um amor absoluto e sem concessões: não é manipulador, mas, antes de tudo, expressão da interioridade, daquilo que não se pode dizer apenas com palavras”.

Só a música pode transmitir esse sentimento praticamente utópico: a música levada à cena de forma tão inteligente e a poesia da partitura de Dvořák, com os seus motivos que expressam o fantástico, a delicadeza de Rusalka, a natureza, a lua… Felizmente, graças a um elenco homogêneo e bem escalado e a uma regência cuidadosa e segura, o resultado musical fez jus ao protagonismo dado à música.

A música exercendo o seu protagonismo

Descontados alguns problemas pontuais nos metais, na récita de 16 de novembro a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal teve um ótimo desempenho sob a regência do experiente maestro Luiz Fernando Malheiro. Com sensibilidade, Malheiro extraiu da orquestra as nuances e a poesia da partitura de Dvořák, em uma edição crítica executada na íntegra. Das vezes em que estive no Municipal do Rio, foi, sem dúvida, aquela em que a orquestra se saiu melhor.

Também foi muito bom o desempenho do Coro do Theatro Municipal — ou coro dos convidados do baile — no segundo ato. Em uma bela e colorida cena, o coro foi posicionado dentro de limites traçados no chão espelhado (que produziu um bonito efeito). Por um lado, esses limites indicavam que os convidados cantavam na sala, como apontado no libreto, mas, mais importante que isso, nos lembravam de que esses convidados estavam dentro do castelo de fantasia criado por Rusalka.

Em Rusalka, o duplo está sempre presente. Além dos dois mundos que se contrapõem, há a contraposição de, mais que duas personagens, duas formas de ser e amar: Rusalka, fria, mas profunda e verdadeira, e a Princesa Estrangeira, ardente, mas que não sabe o que é o amor verdadeiro. Nesse ambiente do duplo, na produção de Heller-Lopes, as três ninfas (as sopranos Carolina Morel e Mariana Gomes e a mezzosoprano Lara Cavalcanti) encontraram os seus duplos em três bailarinas (Julia Cobras, Manoela Leopoldino e Gabriela Mendes) que executaram a coreografia de Bruno Fernandes e Mateus Dutra. O conjunto formado foi belo e harmonioso.

Eliane Coelho e Giovanni Tristacci no segundo ato

O elenco, todo formado por cantores brasileiros, foi bem escalado desde os comprimários, como o tenor Geilson Santos (Guarda Florestal e Caçador) e o contratenor Herbert Campos (Ajudante de Cozinha). Eliane Coelho, a grande dama do canto lírico brasileiro, fez uma marcante participação especial no papel de Princesa Estrangeira.

A ótima mezzosoprano Denise de Freitas destacou-se como uma Feiticeira (ou Ježibaba) com graves consistentes, agudos certeiros e brilhantes, e ótima presença cênica. Muito bem dirigida cenicamente, soube encarnar essa feiticeira-maestro com um toque de cinismo na medida certa, sem ser caricata, sem exageros.

Denise de Freitas: Ježibaba

O Senhor das Águas (Vodník) é, em geral, um personagem cruel. Na ópera de Dvořák, contudo, é um bom pai que lamenta o destino da filha. O baixo-barítono Licio Bruno exibiu um timbre quente e não muito escuro, nada áspero, que se adequou perfeitamente a esse Senhor das Águas que sofre junto com a filha. Ótimo intérprete, soube criar um personagem envolvente e comovente.

Ludmilla Bauerfeldt e Licio Bruno no segundo ato

Ao ótimo tenor Giovanni Tristacci coube o difícil papel de Príncipe. E ele foi um Príncipe perfeito: emissão ampla, timbre bonito e brilhante, linha de canto segura e com uma ótima postura cênica. Soube, na última cena, cantar com legato e doçura inclusive o agudo. Do momento em que entrou vestido de caçador — um daqueles típicos heróis de conto de fadas, com uma brilhante armadura — até a cena final, o personagem sofreu uma interessante transformação, de certa forma semelhante à sofrida por Rusalka. Do estereótipo do herói, foi se tornando mais “real” (na ótica de Rusalka) e se aproximando do mundo dela.

O papel-título ficou com Ludmilla Bauerfeldt, uma das principais sopranos brasileiras da atual geração. Com o seu timbre lírico, deu vida a uma Rusalka sensível e comovente. Na célebre canção à lua — que interpretou, em uma cena que esbanjou romantismo, estirada sobre um piano — empregou um legato e um fraseado que transmitiram toda a poesia do sonho de Rusalka. No segundo ato, após ter demonstrado os seus dons de atriz ao atuar por mais de meia hora sem poder recorrer à voz, Bauerfeldt empregou a potência dos seus agudos na cena com o Senhor das Águas. No terceiro ato, Rusalka já estava vagando entre os dois mundos: não pertencia mais ao mundo do Príncipe e não podia voltar ao seu. Foi representada com cabelos brancos, desbotada — ou com a cor da espuma das ondas que explodem na praia: seu lugar é a superfície das águas. Neste ato e em seu dueto com o Príncipe, mais que boa intérprete, Bauerfeldt foi verdadeira a ponto de conseguir fazer com que as águas do mundo de Rusalka brotassem de nossos olhos. Felizmente para nós, paulistas, Ludmilla Bauerfeldt vai estrear no Theatro Municipal de São Paulo na próxima temporada: será Donna Anna no Don Giovanni, de Mozart.

Ludmilla Bauerfeldt e Giovanni Tristacci no terceiro ato

Sem dúvida, a Rusalka que encerrou a temporada 2024 do Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi uma das melhores produções que vi nos últimos anos no Brasil, uma produção na qual a arte se fez presente, essa arte que atinge os nossos sentimentos e provoca reflexão. Isso graças a um elenco bem escalado e homogêneo, sem altos e baixos, dirigido cênica e musicalmente com inteligência, competência e sensibilidade.

Os paulistas que, como eu, foram ao Rio para ver a Rusalka só estavam lamentando não poder ver mais uma récita. Foi uma pena quando as quase quatro horas de ópera, com praticamente três horas de música (que passaram tão rápido!), chegaram ao fim. Do grupo de paulistas que não se animou a encarar o Rio na época de encontro do G20, o que ouvi foi: “Não vem para São Paulo?”. Como a atual direção do Municipal de São Paulo tem demonstrado disposição de fazer um saudável intercâmbio com outros teatros e de valorizar o trabalho de diretores brasileiros que obtêm boa repercussão no exterior (como foi o caso do Nabucco deste ano), tenho muita esperança de, em breve, ver a Rusalka em São Paulo.


Fotos: Daniel Ebendinger (na foto principal, a soprano Ludmilla Bauerfeldt).