“Retorno à intimidade”: um espetáculo para quem está com os ouvidos abertos.
O pai do compositor Charles Ives (1874-1954) costumava dizer ao filho: componha de modo que os seus ouvintes abram os ouvidos. Dito isso, sejamos sinceros: música contemporânea é um gosto adquirido. Há obras que certamente não irão nos agradar, mesmo que as escutemos dez vezes seguidas. E mais: sabemos também que existe uma enormidade de partituras praticamente desconhecidas ou, quando muito, conhecidas apenas nos meios acadêmicos. São objetos de estudo nas faculdades de música, interpretadas quase que exclusivamente em exames de avaliação ou recitais de formatura. Basicamente, um repertório acessado por poucos. Território desconhecido para a maioria dos mortais.
Cabe ao ouvinte destemido descobrir tais obras. Faz bem para os nossos ouvidos, que precisam de uma espanada periódica. Faz bem para a nossa mente, que se vê obrigada a trabalhar para entender os porquês de cada composição. Faz bem para os músicos que interpretam esse repertório – que, via de regra, demanda horas e horas de estudos e ensaios – e que merecidamente buscam o reconhecimento do público. E, vá lá, até que há obras bem interessantes por aí…
No concerto Trio de madeiras: retorno à intimidade, que assisti em 16 de novembro de 2024, na Casa da Música Sônia Cabral, em Vitória/ES, como parte da 12ª Edição do Festival de Música Erudita do Espírito Santo (iniciativa da Companhia de Ópera do Espírito Santo – COES, comandada por seu diretor geral Tarcísio Santório), três jovens músicos da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo – Oses encararam um repertório pouco conhecido e bastante desafiador. O flautista Lucas Rodrigues da Costa, a fagotista Ariana Mendonça e o clarinetista Cristiano Costa apresentaram solos, duos e trios para a numerosa audiência presente na sala de concertos.
Seria muita pretensão da minha parte discorrer profundamente sobre aspectos técnicos das obras apresentadas. Ou, pior ainda, usar expressões como “a conhecida obra…” ou “do celebrado compositor…”, as quais certamente não se aplicam à maioria do repertório da noite (em um caso desses, quando o crítico as emprega, geralmente o faz para exibir de forma farsesca toda a sua suposta erudição acima da média – e aqui vale citar a frase de Schopenhauer: “o fato de fingir uma qualidade, de vangloriar-se dela, é uma confissão de não possuí-la”). Assim, o presente texto trará opiniões sinceras de um ouvinte esforçado e que, após o concerto, fez algumas pesquisas despretensiosas.
A noite se iniciou com o Dueto n° 3, para fagote e clarinete, de Beethoven (compositor conhecidíssimo – já a peça, para mim, era novidade). Uma obra do início da carreira do gênio alemão, ainda fortemente influenciado por Haydn e Mozart, executada com bastante precisão técnica e graciosidade pelos dois músicos.
Daí em diante, o verdadeiro desafio auditivo começou: de Guilherme Bauer, ouvimos Interferências, para clarinete. Em uma bela execução do solista, que já havia demonstrado habilidade em trechos de maior velocidade na peça anterior, foi possível desfrutar de uma obra cuja escrita é mais lírica e reflexiva, ainda que empregando uma linguagem contemporânea. Ressalte-se a bela sonoridade obtida pelo músico ao longo da execução.
Na sequência, de Jennifer Higdon, rapid.fire, para flauta. Peça mais impactante do concerto, esta não pode ser definida como agradável aos ouvidos. É até incômoda na realidade. Provoca uma sensação de desconforto, que se estende por minutos, pois, por vezes, a obra parece estar por terminar, mas se renova. Apesar disso – e eis o ponto principal dessa análise –, é justamente esse incômodo que torna a experiência interessante. Vale dizer que boa parte da experiência foi visual: era perceptível o esforço do flautista, que enfrentava com bastante precisão os imensos desafios técnicos trazidos pela compositora, demandando considerável controle da respiração, do fraseado e do emprego de efeitos sonoros pouco usuais para a flauta. A própria movimentação do músico no palco ao longo da interpretação, enérgica, mas sem excessos, contribuiu para o brilhantismo da apresentação.
Em seguida, de Henrique de Curitiba, o Estudo aberto. Primeira obra em que os três músicos tocaram juntos, em uma execução de nível satisfatório, com boa alternância de sonoridades ao longo da partitura, na qual há conjuntos e solos baseados em um mesmo tema. Os três artistas permaneceram em suas respectivas cadeiras ao longo da execução, sendo que há indicações no sentido de que eles deveriam se movimentar pelo palco. Não creio, contudo, que tenha ocorrido qualquer prejuízo à percepção da obra pela plateia: o teatro é relativamente pequeno, e a acústica havia sido ajustada adequadamente. Inclusive, uma eventual movimentação poderia prejudicar a transmissão que era feita ao vivo pelo YouTube. O fato é que foi possível acompanhar normalmente as alterações sonoras e as nuances de cada instrumento.
A fagotista apresentou na sequência duas composições de Francisco Mignone: a Valsa declamada e a Valsa ingênua. São obras cuja audição foi agradável: o fagote é, por natureza, um instrumento de sonoridade melancólica, e Mignone sabia bem como traduzir em notas esse sentimento. Ambas as valsas foram muito bem executadas pela instrumentista, com uma bela e cheia sonoridade, escolhas corretas de andamento e de alternância nas dinâmicas. De se registrar também o acerto de ter as duas valsas na parte central do concerto, permitindo ao público um momento de respiração.
Variações, de Marisa Rezende, composta para flauta, inicia-se com uma melodia simples que é desconstruída e reconstruída várias vezes. Demandou virtuosismo técnico por conta do uso de recursos incomuns, quase que percussivos.
Na sequência, ouvimos novamente uma obra de Guilherme Bauer para clarinete, desta vez denominada Gradações. Mais virtuosística que Interferências, demandando maior articulação em frases rápidas, recebeu uma ótima interpretação do solista, principalmente no controle de algumas notas na extensão sobreaguda do instrumento.
Foi bastante acessível a obra do compositor Ian Deterling (nascido em 1990), chamada Dueto. Trata-se de uma peça para fagote e flauta, agradável de ouvir e muito bem executada pelos dois intérpretes, que remonta às obras de câmara de Villa-Lobos.
Encerrou a noite o Trio Op. 92, de Charles Koechlin, em três movimentos. Uma composição de 1924 que, apesar de ter apresentado alguns desencontros no último movimento (uma fuga relativamente complicada) – faltas que podem ser atribuídas ao cansaço dos músicos, agravado pelo calor que fazia no palco -, esteve bem inspirada na primeira e na segunda partes, interpretadas com lirismo e inspiração. Assim, se no terceiro movimento houve essa única nota metaforicamente dissonante da noite em termos técnicos, ela se perdeu dentre as demais, dissonantes ou não, que harmonicamente construíram uma exibição admirável em todas as dez composições apresentadas.
Ao final, ficou uma impressão extremamente positiva: temos nos quadros da nossa orquestra músicos que, ainda jovens, já demonstram uma capacidade técnica que, décadas atrás, raramente presenciávamos nos palcos capixabas. E há compositores contemporâneos cuja obra precisa ser melhor explorada por nós, ouvintes.
O Festival prossegue ao longo do mês de novembro, com ingressos gratuitos e programação disponível em site próprio: https://www.festivaldemusicaerudita.com.br.
O concerto aqui descrito pode ser assistindo pelo YouTube, em:
Fotos: Lorenzo Savergnini.
Colaborador do site Movimento.com e de A Gazeta. Frequentador assíduo de espetáculos de música clássica e ópera há mais de 20 anos. Graduado em Odontologia e Direito. Delegado de polícia e pai de gêmeos.
Boa crítica e leitura do Érico. Com este tipo de descrição sobre as apresentações eruditas fica mais fácil entender e acompanhar.