“Songs and Fragments”: música e teatro no Festival d’Aix-en-Provence

Em “Songs and Fragments”, os desafios cênicos e musicais são levados ao limite, em um espetáculo digno de um importante festival.

Songs and Fragments
Théâtre du Jeu de Paume (Aix-en-Provence), 07 de julho de 2024
Direção cênica: Barrie Kosky
Iluminação: Urs Schönebaum
Eigth Songs For a Mad King (1969)
Música: Peter Maxwell Davis (1934-2016)
Libreto: Randolph Stow (1935-2010)
Direção Musical: Pierre Bleuse
Um homem: Johannes Martin Kränzle, barítono
Ensemble Intercontemporain
Kafka-Fragmente (1987)
Música e libreto: György Kurtäg (1926)
Uma mulher: Anna Prohaska, soprano
Uma violinista: Patricia Kopatchinskaja

Na edição de 2023 do Festival d’Aix-en-Provence, o simpático e acolhedor Théâtre du Jeu de Paume foi palco do ponto alto do evento: a estreia mundial de Picture a Day Like This, de George Benjamin. Neste ano, foi a vez de a música do século XX e do mais refinado e envolvente teatro colocarem, uma vez mais, o pequeno palco no centro do Festival. Em uma dobradinha que ganhou o nome de Songs and Fragments, foram apresentados Eigth Songs For a Mad King (1969), de Peter Maxwell Davis (1934-2016) com libreto de Randolph Stow (1935-2010), e Kafka-Fragmente (1987), de György Kurtäg (1926). A primeira obra é um teatro musical, um monólogo para um cantor (que precisa ser ótimo ator) e orquestra de câmara; a segunda, um ciclo de quarenta curtas canções para soprano e violino.

Em Eight Songs são encadeadas oito canções entoadas pelo rei inglês Georges III (1738-1820) sob os efeitos da demência. As canções se baseiam em frases ditas pelo rei e em melodias que ele tocou. A música estava presente na corte de Georges III: a rainha Charlotte, sua esposa, foi aluna de Johann Christian Bach, a quem apoiou, e Mozart, aos oito anos de idade, dedicou-lhe seu Opus 3. Evidentemente, a música de Händel também fazia parte da vida do casal.

Composta em 1969, em um período em que os traumas deixados pela Segunda Guerra Mundial se misturavam às manifestações estudantis do ano anterior e aos protestos contra a guerra do Vietnã — época em que a psicanálise já havia dado importantes passos, e a demência ganhava nova dimensão —, a obra representa o olhar dessa sociedade em ebulição sobre uma memória de mais de 150 anos. Desse modo, sons típicos de Händel, tocados ao cravo, misturam-se a outros característicos do século XX, como o jazz e o foxtrote. A linha do cantor mistura fala e canto, frases e sons, abrange cinco oitavas e exige do intérprete uma sólida técnica que vai além do canto lírico.

Kafka-Fragmente, por sua vez, foi composta a partir de fragmentos de cartas e diários de Franz Kafka: são quarenta fragmentos, em sua maioria bastante pequenos, muitas vezes apenas frases, distribuídos em quatro partes. Violinista e soprano dialogam, se completam.

Apenas duas décadas separam as duas obras, em ambas há um único solista e o violino está presente — na sétima canção da primeira peça, o rei toca um violino e, em seguida, quebra-o; a segunda peça é toda ela acompanhada pelo violino. Há, contudo, importantes diferenças: a primeira é um teatro musical, pressupõe uma intensa representação, enquanto a segunda é um ciclo de canções; a primeira é para uma orquestra de câmara, a segunda para voz e violino; a primeira é cantada em inglês, e a segunda, em alemão; a primeira tem uma duração de trinta minutos, e a segunda, de uma hora. Além disso, embora a primeira também seja fragmentada, há uma continuidade, e as canções, todas encadeadas, são um incessante devaneio do rei, enquanto na segunda os fragmentos que se sucedem são bem delimitados.

Isso posto, é natural perguntar se funciona programar as peças em conjunto, sobretudo na ordem em que foram apresentadas. Por mais genial que seja Kafka-Fragmente e por melhores que sejam as intérpretes — e, no caso, a soprano Anna Prohaska e a violinista Patricia Kopatchinskaja são excelentes —, é difícil sustentar a transição de uma peça concisa e que conta com uma performance intensa, envolvente, para outra mais cerebral e com canto e violino, mesmo que tenha havido uma preocupação com a atuação cênica. Os suspiros e ruídos do irrequieto público, durante a segunda peça, confirmaram essa impressão.

Em entrevista durante o Tête-à-Tête, promovido pelo festival e disponível no YouTube, o diretor cênico Barrie Kosky defendeu que sempre é possível fazer uma encenação sem nada, sem cenário algum (como foi o caso), dispondo apenas dos cantores. Para ele, a voz e o corpo são o ritual essencial do teatro musical, da ópera. As duas peças foram uma demonstração da teoria de Kosky. 

Johannes Martin Kränzle em Eigth Songs For a Mad King

Em Eight Songs, o excelente barítono Johannes Martin Kränzle dispôs apenas do seu corpo, da sua voz e da iluminação de Urs Schönebaum, que assumiu, nas duas peças, quase o papel de um segundo personagem. Até o figurino utilizado por Kränzle foi o mínimo possível: uma cueca branca — o rei estava nu. Com unhas de pássaro na mão direita, Kränzle dialogou com os pássaros que brotaram do Ensemble Intercontemporain. Por meio de sons e de frases truncadas, fomos levados não apenas aos limites da linguagem, mas aos limites da consciência. Mesmo tomado pela demência, contudo, o rei estava lúcido o suficiente para constatar: “I am alone” — uma frase cuidadosamente sublinhada por Kränzle.

A peça começa quase com um estrondo, capturando de imediato toda a atenção do público. Esse estrondo, contudo, deu lugar a uma musicalidade colorida, por vezes até pastoral, com ritmos populares e melodias interrompidas — como as frases do rei. Pierre Bleuse e o Enemble Intercontemporain souberam expor toda a variada paleta de cores da obra.

Anna Prohaska e Patricia Kopatchinskaja em Kafka-Fragmente

Em Kafka-Fragmente, Anna Prohaska e Patricia Kopatchinskaja chegaram juntas, com vestidos parecidos (não iguais) feitos do mesmo tecido, cada uma carregando um violino. Kopatchinskaja ficou tocando, no canto direito do palco, enquanto Prohaska cantava e atuava. Durante quase toda a obra, ganharam focos de luz de tonalidades ligeiramente diferentes, quebrando um pouco a ideia de duplo que se teve no início. A atuação de Prohaska foi intensa, mesmo cantando sem ler uma obra cuja dificuldade é evidente. A soprano confirmou, nesta edição do Festival, a ótima impressão que já havia causado, no ano passado, como Zabelle em Picture a Day Like These.

Musicalidade e teatralidade são marcas das produções de Barrie Kosky, e não foi diferente nessas duas peças. Aliás, aqui, na ausência de cenário ou de qualquer elemento cênico que não a luz, a teatralidade e a interação entre música e atuação se intensificaram, o teatro foi levado ao limite, e em meio a uma música complexa.


Fotos: Monika Rittershaus / Festival d’Aix-en-Provence.

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