O Canto do Cisne (2022)
Música: Leonardo Martinelli (1978-)
Libreto: Livia Sabag, com base na peça homônima de Anton Tchékhov
A Water Bird Talk (Palestra sobre Pássaros Aquáticos, 1977)
Música e libreto: Dominick Argento (1927-2019) – libreto com base na peça Os Males do Tabaco, de Anton Tchékhov, e no tratado ornitológico Os Pássaros da América (1827-1839), do naturalista norte-americano John James Audubon (1785-1851)
Theatro São Pedro-SP, 19 de agosto de 2022
Direção musical: Gabriel Rhein-Schirato
Direção cênica: Livia Sabag
Elenco:
A Atriz (Olga): Eliane Coelho, soprano
O Velho Ponto (Nikítuchka): Mauro Wrona, tenor
Palestrante: Licio Bruno, barítono
Orquestra do Theatro São Pedro
No princípio era a música. Por mais que os criadores da ópera como a conhecemos hoje tivessem a intenção de unir várias artes na então nova manifestação artística que nasceu na Itália no fim do século XVI, a verdade é que a música, durante muito tempo, teve primazia sobre o texto (libreto) e também sobre as encenações.
Com o passar das décadas e dos séculos, essa equação foi se equilibrando. A partir da segunda metade do século XVIII, libretistas como os italianos Ranieri de’ Calzabigi e Lorenzo da Ponte modernizaram os libretos operísticos, criando dramas mais consistentes e aumentando a relevância do texto em relação à música. No século XIX, compositores como o italiano Giuseppe Verdi sabiam da importância dos libretos para o sucesso das suas óperas, eram extremamente exigentes com os seus libretistas e, não raro, solicitavam alterações ou revisões completas nos textos que lhes eram apresentados. Também italiano, Giacomo Puccini, no fim do mesmo século, seria ainda mais exigente com os seus libretistas. O alemão Richard Wagner valorizava tanto o libreto, que escrevia ele próprio os seus, não delegando a tarefa a terceiros.
A partir do século XX, além de parcerias profícuas como aquela entre os alemães Richard Strauss (compositor) e Hugo von Hofmannsthal (libretista), emergiu também a figura do encenador, e, assim, as concepções cênicas das óperas, bem como as atuações dos cantores enquanto atores passaram a ter uma relevância cada vez maior. Dessa forma, com a evolução da ópera ao longo dos séculos, o teatro, ou a arte teatral, seja pela qualidade dos libretos (dramas) ou pela relevância da encenação, requereu o seu quinhão dentro da complexa equação que forma uma obra lírica e a sua efetiva realização no palco.
Todo este preâmbulo foi necessário para chegarmos à dobradinha A Water Bird Talk (Palestra sobre Pássaros Aquáticos) e O Canto do Cisne, óperas de Dominick Argento e Leonardo Martinelli, respectivamente. Ambas baseadas em obras do grande escritor e dramaturgo russo Anton Tchékhov, foram apresentadas entre quinta e domingo no Theatro São Pedro, em São Paulo.
Interpretações marcantes
Em Palestra sobre Pássaros Aquáticos, que tem libreto do próprio Argento, o Palestrante é um homem com uma vida comum, casado há 33 anos, pai de sete filhas, dominado por uma esposa controladora e que, aparentemente, encontra uma válvula de escape da sua vida medíocre na observação de pássaros. Em dado momento, ele diz: “Ah, como eu amo a música! Houve uma época em que eu queria ser músico”.
E, mais adiante: “Por alguma razão eu sempre penso na minha juventude. E então esse desejo avassalador de ir embora. Jogar tudo para o alto e ir embora sem nunca olhar para trás. Ir embora desta existência vulgar e barata que me transformou num tolo digno de pena. (…) Certa vez, quando eu era jovem, quando eu era ambicioso, eu devo ter sido um… eu planejava, eu tinha esperanças, eu sonhava… como eu sonhava! Mas agora: nada. Eu só quero descansar. E a escolha se vai para sempre: Entre a luz e a escuridão”.
Já em O Canto do Cisne, com um libreto de Livia Sabag que segue de perto a peça original, uma atriz (Olga) de 68 anos havia participado de uma homenagem pelos seus 50 anos de carreira, bebeu bastante após a apresentação e acabou pegando no sono no camarim. Quando acorda, encontra o teatro vazio, e começa a refletir sobre a vida que escolheu: “Você se faz de esperta, de valente e a vida já passou. Sessenta e oito anos já se foram, adeus. Não há como voltar. Assim é que as coisas são, Olga. Queira ou não queira, já está na hora de ensaiar o papel de morta”.
Pouco depois, ao encontrar o amigo Nikítuchka (o Ponto – função exercida por alguém que “sopra” o texto para os atores no teatro: antigamente, em lugares estrategicamente escondidos no palco; hoje em dia, por meio eletrônico), ela lhe diz que não quer voltar para casa porque lá ficaria sozinha, e se lembra de um antigo amor: “Na época em que eu era uma jovem atriz, que começava a me entusiasmar pela profissão, um rapaz me amou apenas pela minha arte… Elegante, forte como um touro, jovem, fogoso como um amanhecer de verão! Não havia noite que pudesse resistir ao seu olhar, ao seu sorriso maravilhoso. (…) Enlevada, feliz, entregue em seus braços, peço a ele: Me faça feliz… Mas ele…ele diz: Abandone o palco! Está entendendo? Ele podia amar uma atriz, mas casar-se com ela – isso nunca!”
Depois de se lembrar de trechos de importantes peças teatrais em que atuou e recitá-los, Olga recupera o entusiasmo, pela arte e pela vida: “Ah, quem falou em velhice? Não há velhice alguma, é tudo disparate, tolice. O vigor que corre em minhas veias, isto é juventude, vitalidade! Onde há talento, Nikítuchka, não há velhice!”
Quando observamos as duas obras em conjunto, forma-se um interessantíssimo arco dramático. Os dois protagonistas fizeram escolhas de vida, e cada um seguiu por um caminho diferente: o Palestrante queria ser músico, mas acabou optando por uma vida comum; enquanto a atriz Olga flertou com o amor na juventude e chegou a pensar em casamento, mas dedicou a vida ao teatro. Ele chega ao final da obra sem encontrar uma solução para as suas angústias; ela, ao contrário, acha conforto na sua própria arte.
Em seu monólogo, o barítono Licio Bruno construiu com perfeição esse homem que começa a sua palestra de maneira formal e, aos poucos, vai se revelando angustiado, passa a questionar algumas escolhas que fez e a vida que leva, mas, ao mesmo tempo, não encontra forças para fugir da sua quase proverbial banalidade. Ao posicionar a sua interpretação em uma espécie de “limbo” entre o que o Palestrante gostaria de fazer e a sua evidente falta de atitude diante da vida, o artista ofereceu uma atuação marcante.
Por sua vez, não menos marcante foi a maneira como a soprano Eliane Coelho criou a parte de Olga nessa estreia mundial: ela começou acertadamente meio perdida, tentando lembrar (efeito da bebida) o que mesmo estava fazendo ali naquele teatro fechado. Em seguida, apresentou com o nível exato de hesitação os questionamentos que Olga se faz sobre a vida que teve e também sobre a que não teve. Depois, nos trechos em que recitou passagens de peças clássicas (como Fedra; Ricardo III; Hamlet; Mary Stuart, dentre outras), a soprano se mostrou como a grande atriz que é, para além da cantora lírica consagrada, levando até o final uma Olga revitalizada pela força da arte.
Eliane Coelho contou com um coadjuvante de luxo: o Nikítuchka do tenor Mauro Wrona, que interpretou com sensibilidade o velho homem de teatro. Durante a evolução natural da performance da protagonista, Wrona construiu com delicadeza o amigo que se emociona com o relato de Olga e os trechos de peças que ela recita.
Em termos vocais, quem se saiu melhor foi Licio Bruno, apresentando uma voz segura e expressiva. Eliane Coelho e Mauro Wrona deixaram transparecer os efeitos naturais que a idade causa na voz, mas ambos se mantiveram igualmente expressivos – e, além do mais, não faria qualquer sentido dramatúrgico confiar as suas partes a cantores mais jovens, pois, da mesma forma que a peça de Tchékhov, a ópera O Canto do Cisne funciona como uma ode a quem dedicou a vida à arte. A própria libretista afirma, em declaração que consta do programa de sala, que o texto, incialmente pensado para homenagear o seu tio Fábio Sabag (falecido em 2008), “ganhou um novo impulso no ano passado com a ideia de escrever um libreto para Eliane Coelho. Hoje o texto é praticamente todo voltado para ela. Aliás, o processo de escrita foi bastante colaborativo e eu considero que a Eliane é, de certo modo, coautora do libreto”.
Direção sensível e focada nos atores/cantores
Como afirmei no começo desta resenha, a arte teatral reivindicou a partir do século XX a sua importância na complexa equação que forma uma ópera e a sua respectiva performance no palco. E a interpretação cênica em alto nível foi condição fundamental para o triunfo das duas óperas apresentadas no Theatro São Pedro.
Nas mãos de encenadores mais personalistas, tudo poderia ter ido por água abaixo. Sob os cuidados de uma diretora meticulosa, detalhista e sensível como Livia Sabag, o foco esteve totalmente centrado no trabalho dos atores/cantores, sem distrações, sem nada mais que não fosse a valorização do texto e do seu significado. Foi uma aula de direção cênica, emoldurada pelos corretíssimos cenários e figurinos de, respectivamente, Renato Theobaldo e Marcelo Marques. A iluminação de Valéria Lovato, correta em Pássaros Aquáticos, atingiu ares poéticos em O Canto do Cisne.
No princípio, eu dizia, era a música; e, em nossos dias, tanto a música de Dominick Argento quanto a de Leonardo Martinelli se mostraram totalmente a serviço do texto, do drama, do palco enfim. Suas respectivas criações musicais não buscam a primazia, mas simplesmente se somam organicamente às obras de arte nas quais estão inseridas, deixando a arte teatral em evidência.
A música de Martinelli, inclusive, transita entre uma linguagem mais operística, por assim dizer, e o caráter incidental que assume durante as declamações de Olga. Para dar forma musical a tudo isso, contribuiu bastante a leitura dinâmica atenta (e também voltada para o palco) do regente Gabriel Rhein-Schirato, que conduziu com segurança a Orquestra do Theatro São Pedro.
Na récita a que assisti, em 19 de agosto, o teatro não estava muito cheio – talvez o público estivesse fugindo do frio de 9° que caiu sobre a tarde e a noite paulistanas. Não sei como foi a lotação das demais récitas, mas sei que quem não foi perdeu um dos mais belos espetáculos líricos realizados neste ano.
Fotos: Heloísa Bortz.
Leonardo Marques nasceu em 1979, é formado em Letras (Português/Italiano e respectivas literaturas) e pós-graduado em Língua Italiana. Participou de cursos particulares sobre ópera e foi colaborador do site Movimento.com entre 2004 e 2021.