Um novo espaço para a música em São Paulo

Em recital intimista, com clima de sarau, Gabriella Pace e Giovanni Tristacci protagonizaram o grande momento lírico do ano até aqui.

Artium Concertos – Gala Puccini

17 de maio de 2024

Instituto Artium de Cultura – Palacete Stahl

Gabriella Pace, soprano
Giovanni Tristacci, tenor
Vitor Philomeno, piano

Reunir dois dos principais cantores líricos brasileiros em um recital dedicado à obra de Giacomo Puccini – e que também foi uma homenagem pelos 100 anos da morte do compositor – parecia ser uma excelente iniciativa. E realizar esse recital em um clima intimista, como um sarau, foi ainda mais especial.

Aconteceu na sexta-feira, 17 de maio (com repetição neste sábado, 18), e foi a inauguração de uma série de música de câmara no Palacete Stahl, sede do Instituto Artium de Cultura, em Higienópolis, São Paulo. O Artium, presidido por Carlos Cavalcanti, destaca-se por oferecer Cultura (especialmente exposições) gratuitamente. E não será diferente com a música de câmara, que poderá contar com uma ou duas salas (dependendo da afluência do público), com até 120 lugares. Os interessados devem apenas reservar on-line a sua presença.

A série Artium Concertos tem curadoria artística de Vitor Philomeno, um dos principais preparadores vocais e gerentes artísticos brasileiros. Neste primeiro ano, estão previstos quatro programas, cada um com duas apresentações. O primeiro, Gala Puccini, reuniu a soprano Gabriella Pace e o tenor Giovanni Tristacci, acompanhados ao piano pelo próprio Philomeno. O segundo programa, Noite Cigana, reunirá a soprano Claudia Riccitelli e o pianista Pablo Rossi em 19 e 20 de julho, para interpretar um repertório com obras de Dvořák, Brahms e Bartók.

Em setembro, nos dias 20 e 21, será a vez de o baixo Saulo Javan, acompanhado por Vitor Philomeno, apresentar Deuses e Demônios. E encerrando a programação de 2024, nos dias 15 e 16 de novembro, Gabriella Pace volta ao Palacete Stahl para interpretar a ópera A Voz Humana, de Poulenc, na versão original com piano, ao lado do pianista e regente norte-americano Ira Levin.

O primeiro recital

Tão logo a apresentação começou, com o dueto Bimba, dagli occhi pieni di malia, do primeiro ato da ópera Madama Buttefly, pôde-se notar a acústica “generosa” da sala. Com dois solistas de vozes poderosas, bem projetadas, a primeira impressão era a de ouvir música em casa, em algum aparelho no último volume! Apesar disso, as vozes se entrelaçaram belamente, com brilho, e o resultado eficiente acendeu o público. Com o desenvolvimento do programa, o ouvido foi se acostumando, as próprias vozes também pareceram se ajustar mais ao ambiente, e tudo melhorou.

Na peça seguinte, a canção Sole e amore – cuja música foi reaproveitada por Puccini no quarteto do terceiro ato de La Bohème, a voz de Giovanni Tristacci apresentou-se segura e expressiva. O tenor interpretaria ainda três árias ao longo do recital. Em E lucevan le stelle, do terceiro ato de Tosca, sua interpretação mostrou-se bastante convincente, com a emoção contida, aos poucos, dando lugar ao extravasamento. Já Dimmi che vuoi seguirmi, do terceiro ato de La Rondine, sem dúvida a peça vocal menos conhecida da noite, e também não exatamente a melhor inspiração do compositor, mereceu interpretação apenas regular. Para compensar, em Addio, fiorito asil, do ato final da Butterfly, Tristacci foi impecável, cantando com riqueza de nuances. Durante toda a performance, sua voz se manteve equilibrada e com agudos generosos.

Gabriella Pace e Giovanni Tristacci

Já o primeiro solo de Gabriella Pace foi um magnífico cartão de visitas: com Signore, ascolta, do primeiro ato de Turandot, o refinamento do seu fraseado, ao abordar a linha melódica com grande sensibilidade, proporcionou um momento de arte verdadeiramente elevada. Tanto aqui quanto na ária seguinte, a celebérrima O mio babbino caro, de Gianni Schicchi, a soprano apresentou uma encantadora riqueza de coloridos, com a sua voz “passeando” entre os registros com aparente facilidade. E, quando precisou recorrer à voz de peito, a transição se deu naturalmente, como as grandes sabem fazer. Depois, com Un bel dì vedremo, novamente da Butterfly, a Pace expressou, mais uma vez com sensibilidade, toda a esperança que Cio-Cio-San depositava no regresso do marido.

Vitor Philomeno acompanhou os cantores não sem alguma oscilação, com a presença de algumas imprecisões típicas de quem sabe tocar, mas não exerce exclusivamente a profissão de pianista. Ele interpretou duas peças para piano: Foglio d’album, SC 812, bastante dissonante, e Piccolo Valzer, SC 66, que recebeu interpretação mais caprichada. Puccini, a propósito, reaproveitou essa peça como a chamada Valsa de Musetta, de La Bohème. Foi Philomeno também quem introduziu cada peça do programa com breves palavras, o que colaborou para a contextualização do público e para o clima de sarau.

E foi justamente La Bohème que encerrou a noite. Juntos, Giovanni Tristacci e Gabriella Pace emendaram as árias de Rodolfo e Mimì no primeiro ato, Che gelida manina e Sì, mi chiamano Mimì, com o dueto O soave fanciulla, fechando o recital com precisão vocal e expressividade dramática.

Em conclusão, a abertura da série Artium Concertos mostrou que a sua criação foi um grande acerto. E, de quebra – e depois de algumas decepções líricas nas estreias das produções de ópera paulistanas –, ainda proporcionou ao público presente aquele que talvez tenha sido, pelo menos até aqui, o melhor momento lírico do ano.


Fotos: cedidas pela organização.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *