Um Prólogo Para “Pagliacci”

Si può? Si può?
Signore! Signori!

Desculpem-me, mas desta vez não escreverei crítica, farei apenas o prólogo. Não venho para tranquilizá-los, como era usual nas antigas comédias, dizendo que o que verão em cena serão falsas lágrimas, ou para que não se alarmem com as angústias e martírios dos artistas que subirão, em breve, no palco do Teatro Sérgio Cardoso e de outros 14 teatros espalhados pelo interior de São Paulo, em espetáculo produzido pela Cia Ópera São Paulo. Não, não! Dessa vez, Ruggero Leoncavallo, o autor de Pagliacci, decidiu inserir um sopro de vida em sua ópera. Ele tem por máxima que o artista é um homem, e que é para os homens que ele deve escrever. E se inspirou na verdade. Ele escreveu com lágrimas verdadeiras, e seus suspiros marcaram o compasso. Vocês verão, portanto, amar como amam os homens, vocês ouvirão a dor, os espasmos, os gritos de raiva, as risadas cínicas. Considerem, pois, caros leitores, as almas, uma vez que no palco estarão seres humanos de carne e osso, como vocês.

Esse é o espírito do verismo, que surgiu na Itália no final do século XIX como um movimento literário a partir das novelas e peças de Giovanni Verga, que, por sua vez, foi influenciado pelo naturalismo francês. E foi de uma história de Verga que nasceu Cavalleria Rusticana (1890), de Pietro Mascagni, o marco zero do verismo na ópera.

Em um artigo publicado em 1902, Leoncavallo conta que, em meio às dificuldades profissionais que enfrentava, foi motivado pelo sucesso de Cavalleria Rusticana a fazer uma última tentativa. Em cinco meses escreveu o libreto e a música de Pagliacci, que, segundo ele, foi baseada em uma história real, ocorrida na Calábria. É bem verdade que essa conversa veio após ele ter sido acusado de plágio por Catulle Mendès. Segundo Mendès, o compositor havia copiado a trama de sua Le Femme de Tabarin, de 1876, que conta a história de um crime passional ocorrido no teatro dentro do teatro, como em Pagliacci. Leoncavallo alegou nem conhecer a obra. Qualquer que tenha sido sua real inspiração, Pagliacci estreou em maio de 1892, no Teatro dal Verme, em Milão, e tornou-se um sucesso tão grande quanto Cavalleria.  

Pagliacci se inicia com um prólogo, cujo conteúdo, propositadamente, é muito próximo ao do primeiro parágrafo deste pequeno texto. O prólogo tem dupla função. A primeira, evidente, é explicitar os ideais do verismo. A outra foi uma forma de dar maior importância ao papel do barítono, Tonio, que na estreia foi interpretado por ninguém menos que o francês Victor Maurel, o criador de Falstaff e de Iago, em Otello, ambas de Verdi, e o responsável pela produção de Pagliacci. São dele a primeira, mas também a última frase da ópera: La commedia è finita!

A trama, que se passa na festa da Assunção de Maria (15 de agosto), começa com uma trupe de commedia dell’arte anunciando o seu espetáculo para uma hora antes do pôr do sol (ventitré ore). O enredo da peça dentro da peça era o típico enredo de commedia dell’arte: Pagliaccio, interpretado por Canio, o líder da trupe, surpreende sua mulher, a Colombina, por sua vez interpretada por Nedda, mulher de Canio, com o Arlecchino. Acontece que, como diz Canio no início de Pagliacci, “o teatro e a vida são duas coisas diferentes. Se, em cena, Pagliaccio surpreende sua mulher com o galanteador no quarto, ele faz um sermão cômico, depois se acalma e, com uma pancada, se rende à razão! E o público aplaude, rindo alegremente. Mas se Nedda for surpreendida, a história terminará de outra forma”. E, antes do espetáculo, é justamente isso o que acontece: Canio surpreende Nedda com Silvio, um aldeão. Na verdade, os amantes só foram descobertos porque Tonio, o do prólogo, apaixonado por Nedda e por ela rejeitado, os denunciou como forma de vingança. Tonio tem um elemento a mais: é disforme e se sente marginalizado. Atribui, pois, à sua condição física a recusa de Nedda. A trama da vida desses personagens e aquela do espetáculo de commedia dell’arte se confundem e, conforme prometido por Canio, a história termina de outra forma, como Nedda, a Colombina, e Silvio assassinados.

Como boa obra verista, Pagliacci trata da realidade, de conflitos e tensões da vida real sem qualquer idealização, qualquer polimento. Toda sorte de impulsividade e agressividade – violência, ciúmes, traição, ódio, assassinato – povoa a partitura. Isso não quer dizer, contudo, que nas obras veristas não haja poesia, lirismo. É como na vida: momentos de grande beleza, de sensibilidade, existem mesmo em meio à áspera realidade. Um exemplo é o dueto de amor entre Nedda e Silvio, repleto de lirismo. Quando bem interpretado, com sensibilidade, torna-se verdadeiramente memorável. Os que tiveram a felicidade de ver a produção da obra no Theatro Municipal de São Paulo em 2014, época em que aquele palco se dava ao respeito, sabem do que estou falando, e certamente se lembram da magia com que Inva Mula e Davide Luciano, grandes artistas, interpretaram o dueto. Em disco, é incontornável a execução do dueto por Maria Callas e Rolando Panerai, na antológica gravação de 1955, sob a batuta de Tullio Serafin.

Pagliacci tem pontos em comum com a Cavalleria, seu par verista, mas também há importantes diferenças. Ambas as obras se passam em vilarejos e em dias de festas religiosas (Assunção em Pagliacci, e Páscoa na Cavalleria). Em ambas há ciúmes e traição, ambas acabam com um crime passional. O coro está presente em ambas, porém a sua participação ocorre de forma muito diferente: na Cavalleria ele participa da trama, enquanto em Pagliacci não sabe de nada o que está acontecendo, é mero expectador a ser surpreendido, são pessoas da aldeia à qual a trupe não pertence.

Nedda é muito mais próxima de Carmen, da ópera de Bizet, do que de qualquer personagem da Cavalleria. Também Canio tem seu lado Don José: ele trata a esposa com brutalidade, mesmo dizendo amá-la, e usa a linguagem da ameaça quando pressionado, como fez seu antecessor francês. No final da ópera de Bizet, Don José obriga Carmen a segui-lo: “Pour la dernière fois, démon, veux-tu me suivre?”; em Pagliacci, Canio ameaça Nedda a fim de descobrir o nome do amante: “Ah! Tu mi sfidi! E ancor non l’hai capita Ch’io non ti cedo? Il nome, o la tua vita! Il nome!”.

No primeiro ato, após queixar-se da brutalidade de Canio, Nedda olha para o céu e, em sua famosa ária “Oh! Che volo d’augelli, e quante strida!”, celebra a liberdade dos pássaros: “Stridono lassù, liberamente / Lanciati a vol come frecce, gli augel”. Carmen também saiu em busca da liberdade, pela qual entregou a vida: “Et surtout, la chose enivrante: la liberté! la liberté!”. Mais tarde, quando ameaçada por Canio, Nedda não cede: sacrifica a vida, mas não revela o nome do amante, seu amor por Silvio é mais forte que a cólera do marido: “Di quel tuo sdegno è l’amor mio più forte. Non parlerò. No, a costo della morte!”. Fez como Carmen, que preferiu entregar a vida a seguir José e perder a sua liberdade: “Eh bien! frappe-moi donc, ou laisse-moi passer”. A Nedda e a Carmen não é permitido dizer “não” a um homem e continuar com vida. Ambas as óperas culminam em feminicídio. Ambas as óperas escancaram a violência contra a mulher arraigada na sociedade, seja essa sociedade francesa, italiana ou, claro, brasileira.

Silvio, o amante de Nedda, também tem seu par em Carmen. Como Escamillo, Silvio é o elemento externo: ele é um aldeão e não faz parte da trupe, do meio de Nedda. Como Escamillo, é um barítono e não a força a nada, não usa da brutalidade. É uma perspectiva de mudança de vida.

Há, ainda, fazendo jus a Maurel, algum eco de Otello. Antes da célebre ária “Vesti la giubba”, é Tonio que, como Iago, instrui e influencia o atormentado Canio, dizendo pare que se acalme, que é melhor fingir para pegar o amante: “Calmatevi, padrone. È meglio fingere; / Il ganzo tornerà. Di me fidatevi. Io la sorveglio. Ora facciam la recita. Chissà ch’egli non venga allo spettacolo / E si tradisca! Or via! Bisogna fingere / Per riuscir”. Não só a atitude é de Iago, mas também o estilo musical desse trecho é o parlando característico do personagem da ópera de Verdi.

Musicalmente, Pagliacci também é diferente da Cavalleria. Se em ambas está presente um estilo de canto verista, mais enfático, em Pagliacci, conforme acima observado, há momentos líricos e que precisam ser tratados como tal. Além disso, a complexidade musical de Pagliacci é muito maior: mudanças rítmicas bruscas são constantes e fundamentais ao desenrolar da trama, a orquestra participa ativamente dos acontecimentos. No segundo ato, quando a peça de commedia dell’arte e a vida se misturam, os ritmos de dança embalam as partes em que os personagens estão representando seus papeis. Quando as paixões da vida suplantam a commedia, é criado um nítido contraste rítmico e de orquestração.

Pagliacci conta com dois barítonos: Tonio, mais pesado, mais agressivo, ressentido, vingativo, e Silvio, o lírico amante de Nedda, um barítono lírico. É fundamental que haja, na escolha do elenco, uma preocupação com esse contraste. Nesse sentido, promete ser bastante interessante ter, no palco do Teatro Sérgio Cadoso, dois ótimos barítonos que contam com vocalidades distintas: Rodolfo Giugliani como Tonio, e Vinicius Atique no papel de Silvio. Giugliani já apresentou o Prólogo, com grande êxito, em concertos em São Paulo. Ambos são bastante conhecidos e apreciados pelo público paulistano.

Tenores também há dois com vozes diversas: Canio, um típico tenor verista, e Beppe, o Arlecchino, com voz mais leve. A participação de Beppe é pequena, mas não sem importância, sobretudo no segundo ato. É, pois, um luxo ter Anibal Mancini, outro grande conhecido do público paulistano, no papel. Já Canio terá um cantor para cada récita, ambos com sabor de novidade: no sábado, dia 25, Alan Faria; no domingo, 26, Lucas Melo. Alan Faria é de Ribeirão Preto e já cantou em diversas cidades do Estado; Lucas Melo foi premiado na edição 2021 do Concurso Maria Callas. Aliás, ele não é o único premiado a integrar o elenco: Anibal Mancini e Rodolfo Giugliani foram os vencedores em edições passadas.

Nedda, aquela que tem lá seus momentos líricos e outros extremamente fortes, que dá a vida por amor e liberdade, não é um desafio pequeno. Dela são exigidos agudos poderosos, mas também médios e graves consistentes. É ela que, com dignidade, vai expor e denunciar a violência de que tantas mulheres são vítimas, sob os olhos do público, que apenas assiste e exercita a sua catarse. Tal desafio caberá à soprano Thayana Roverso. É a primeira vez que ela se une à equipe da Cia Ópera São Paulo, mas já é conhecida do público do Theatro São Pedro, e já cantou em outras cidades do Estado.

Nenhum desafio, no entanto, será tão grande quanto o do maestro Abel Rocha e da Orquestra Sinfônica de Santo André, sobretudo nessa fase de pandemia, com a temporada afetada nos últimos dois anos. As características da partitura, já apontadas, exigirão, no mínimo, um total entrosamento do grupo.

O que nos reserva a direção cênica de André di Peroli? Ele acumula experiência como assistente de direção e direção de palco, tanto no Theatro São Pedro, em São Paulo, quanto no Festival Amazonas de Ópera, em Manaus, mas será a sua estreia assinando a direção de uma ópera completa.

Não poderia terminar esse prólogo sem citar Paulo Abrão Esper, diretor geral e artístico da Cia Ópera São Paulo. Sem ele, não haveria Pagliacci, e a comédia já seria “finita”. Sem ele, não haveria Cia Ópera São Paulo, nem Amigos da Ópera de Jacareí. Sem ele, o Consulado Geral da Itália em São Paulo e o Centro Italiano di Cultura di San Paolo não teriam a oportunidade de apoiar a realização de uma ópera italiana. Sem ele, não haveria ópera no palco do Teatro Sérgio Cardoso e nem de outras 14 cidades de interior de São Paulo, que só veem uma ópera anualmente porque ele arregaça as mangas e se encarrega de fazer com que a arte lírica viaje pelo Estado. Com a sua personalidade cativante e a sua paixão pela ópera, ele torna o mais improvável não só possível, mas também viável e exitoso.

Il concetto vi dissi. Or ascoltate
Com’egli è svolto.
Andiam. Incominciate!

Pagliacci (1892)
Ópera trágica em dois atos
Libreto e música: Ruggero Leoncavallo (1858-1919) 
Estreia: 21 de maio de 1892, no Teatro dal Verme, Milão (Itália)

Local: Teatro Sérgio Cardoso – Rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista, São Paulo.
Datas e Horários: 25 de junho (sábado), às 20h, e 26 de junho (domingo), às 17h
Ingressos: Gratuitos – pelo site Sympla.

Direção Musical e Regência: Abel Rocha
Direção Cênica: André di Peroli
Direção Geral e Artística: Paulo Abrão Esper

Elenco:
Nedda/Colombina (Soprano) – atriz e mulher de Canio : Thayana Roverso
Canio/Pagliaccio (Tenor) – chefe da cia. de teatro: Alan Faria (25/06) e Lucas Melo (26/06)
Tonio/Taddeo (Barítono) – comediante: Rodolfo Giugliani
Beppe/Arlecchino (Tenor) – comediante: Anibal Mancini
Silvio (Barítono) – um camponês: Vinicius Atique

Orquestra Sinfônica de Santo André
Madrigal Vivace de Jundiaí (regência: Vasti Atique)

Classificação Etária Indicativa: 12 anos.

Realização:
Consulado Geral da Itália em São Paulo,
Istituto Italiano di Cultura di San Paolo,
Cia Ópera São Paulo,
Amigos da Ópera de Jacareí,
Orquestra Sinfônica de Santo André e
Vinicius Atique Produções.

3 comentários

  1. Como sempre, Fabiana Crepaldi nos deleita con su erudição e rende merecida homenagem à Paulo Esper, motor inquestionàvel desta iniciativa. PARABÈNS!

  2. Obrigado Fabiana pelos belos comentários de sempre. Uma pergunta que sempre me ocorre com Il Paliaci: por que 23 ore? Não é muito tarde para início de um espetáculo ? Certamente terminaria depois da meia noite? Era comum ser assim tarde da noite? Obrigado

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