Uma belíssima história de fantasma

Encenação inspirada de Pablo Maritano e bons solistas são os destaques da produção de “O Navio Fantasma” no TMSP. Regência é o ponto fraco.

Der Fliegende Holländer (O Holandês Errante, ou O Navio Fantasma), 1843
Ópera em três atos

Música e libreto: Richard Wagner (1813-1883)
Base do libreto: Memórias do Senhor de Schnabelewopski, de Heinrich Heine (1797-1856)

Theatro Municipal de São Paulo

17 de novembro de 2023

Direção musical: Roberto Minczuk
Direção cênica: Pablo Maritano

Elenco:
Holandês: Hernán Iturralde, baixo-barítono
Senta: Carla Filipcic, soprano
Erik: Kristian Benedikt, tenor
Daland: Luiz-Ottavio Faria, baixo
Timoneiro: Giovanni Tristacci, tenor
Mary: Regina Elena Mesquita, mezzosoprano

Coro Lírico Municipal
Orquestra Sinfônica Municipal

Na sexta-feira, 17 de novembro, estreou no Theatro Municipal de São Paulo a ópera que encerra a temporada lírica da casa neste ano: Der Fliegende Holländer (que pode ser traduzido como O Holandês Errante ou O Holandês Voador), ópera em três atos de Wilhelm Richard Wagner sobre libreto do próprio compositor, com base em uma passagem das Memórias do Senhor de Schnabelewopski, de Heinrich Heine, na qual o escritor registra a sua versão para a lenda do Holandês.

Um estilo ainda em formação

Wagner também chegou a afirmar em sua autobiografia que uma difícil viagem marítima de Riga a Londres (realizada em 1839 por ele e sua primeira esposa, Minna, então fugindo dos credores e tendo Paris como destino final) também serviu de inspiração para compor a ópera. Já em Paris, e praticamente na miséria, Wagner esboçou Der Fliegende Holländer e enviou uma sinopse detalhada a Léon Pillet, diretor da Ópera de Paris. Pillet se interessou pelo projeto, mas comprou-lhe apenas a sinopse, não contratando o compositor para a efetiva realização da empreitada. As precárias condições financeiras do jovem Wagner levaram-no a aceitar a oferta.

Há versões divergentes sobre os fatos que se seguiram. Uma dessas versões, do próprio Wagner, afirma que Pillet ofereceu o libreto a um tal Paul Foucher e confiou a música a Louis-Philippe Dietsch. Estes hoje ilustres desconhecidos criaram a ópera Le Vaisseau Fantôme, desaparecida do repertório. Teria sido a partir desse episódio que surgiu o costume de se dar também à ópera de Wagner o título de O Navio Fantasma, empregado principalmente na França e em alguns países de línguas neolatinas.

A versão de Wagner sobre o tema do Holandês somente estrearia, sem muito sucesso, em 02 de janeiro de 1843, em Dresden. É no Navio que aparecem, ainda de forma embrionária, algumas características que marcariam a obra do compositor. Embora não seja exatamente uma obra-prima, a ópera possui grandes qualidades musicais e dramáticas, nas quais se podem vislumbrar os primeiros passos de Wagner em direção aos seus grandes dramas musicais.

Ainda que se encontre no Navio estruturas tradicionais, como árias e duetos, aqui já aparecem também os Leitmotive (motivos condutores, ou seja, temas musicais ligados a personagens, situações, sentimentos ou até mesmo objetos), mesmo que não trabalhados com o requinte que se perceberia mais adiante. Também é possível encontrar uma união mais estreita entre texto e música, que se desenvolveria cada vez mais, assim como a utilização da lenda (e mais adiante, a mitologia) como o meio de expressão mais adequado ao compositor. Por fim, a redenção pelo amor – tema que se tornaria recorrente em sua obra – também já está presente.

Utilizando-se de uma música que ora é expressiva e ora é sugestiva, Wagner constrói muito bem o drama, atento à psicologia de cada personagem: a ambição de Daland, o sofrimento amoroso de Erik, o desejo do Holandês de encontrar finalmente a salvação, e a angústia e o desejo incontrolável de Senta de que a sua fidelidade leve um sofredor à redenção.

Primeiro ato (ao centro e de costas, na plataforma superior, Luiz-Ottavio Faria)

Impacto visual

A encenação concebida pelo diretor argentino Pablo Maritano para o TMSP parece apostar em apresentar a trama da ópera como uma “história de fantasma”, como o próprio encenador sugere em seu texto no programa de sala. Inspirado no universo das graphic novels, Maritano alcança um resultado visual realmente impactante, mas não é somente isso, não é apenas o visual pelo visual.

Tudo faz sentido, tudo está a serviço do drama. Para tanto, o apoio dos profissionais que integram a equipe de criação é fundamental, a começar pelas projeções do também argentino Matías Otálora, que desde a abertura da ópera já apresenta imagens sugestivas sobre a história que será contada. Durante toda a encenação, as projeções apresentadas sempre têm um significado, não há nada vazio ou apelativo. E chegam até ao ponto da sugestão poética: quando, no dueto entre o Holandês e Senta no segundo ato, o protagonista cita exatamente a escuridão da noite, o cenário se transforma, por meio da projeção, em uma grande noite.

Os figurinos e cenários de Desirée Bastos também cumprem muito bem o seu papel, inclusive com a utilização inteligente dos elevadores do palco. E, por último, mas não menos essencial, o excelente desenho de luz de Aline Santini ajuda a valorizar alguns dos momentos mais importantes da obra. A propósito, dentre os seus trabalhos que já pude presenciar, este é, de longe, o melhor.

Uma cena concebida por Maritano, porém, talvez tenha ficado bem resolvida apenas para quem já conhecia a obra: refiro-me àquela em que, no terceiro ato, o coro canta alternando as partes dos marinheiros humanos com as dos marinheiros fantasmas. Imagino que, para “marinheiros” de primeira viagem nessa ópera de Wagner, pode ter restado alguma confusão.

Uma dúvida que ficou no ar: seria um problema técnico ou seria proposital um certo delay que ocorria sempre que imagens em close dos rostos dos solistas eram projetadas ao vivo? O apontamento mais fácil, claro, seria cravar problema técnico. Ao me lembrar de cenas de fantasmas que já vi em filmes e séries, nas quais estes nem sempre conseguem ou podem dizer o que gostariam, no entanto, uma pulga me restou atrás da orelha, porque, nesse sentido, o delay até reforçaria a intenção “fantasmagórica” da direção.

De todo modo, nada do que é citado nesses dois últimos parágrafos prejudica os grandes acertos da encenação – dentre estes, uma ótima direção de atores e, inclusive, uma performance cênica impecável do coro masculino durante a deliciosa passagem que abre o terceiro ato (Steuermann! Laß die Wacht!).

Boas vozes

Segundo ato (ao centro, Regina Elena Mesquita)

Para que esse tipo de encenação funcione, são necessárias também vozes potentes, porque, além de uma tela transparente o tempo inteiro na frente do palco (necessária para as projeções), há por trás dela cenários muito abertos no primeiro e no terceiro atos. Tais cenários eram condizentes com a proposta do diretor, mas a situação poderia desandar com vozes menos privilegiadas. Não foi o caso, pelo menos, na maior parte do tempo da récita de estreia.

A mezzosoprano Regina Elena Mesquita, homenageada no programa de sala e que não cantava uma ópera no TMSP desde 2011, interpretou a pequena parte de Mary com correção e com grande presença. O tenor Giovanni Tristacci foi um coadjuvante de luxo como o Timoneiro. Sua canção do primeiro ato, Mit Gewitter und Sturm, recebeu do artista uma interpretação precisa e expressiva.

O tenor lituano Kristian Benedikt começou muito bem como Erik em seu dueto com Senta no segundo ato (Mein Herz, voll Treue bis zum Sterben), apresentando muito bem o amante desprezado. Quando voltou para o terceiro ato, no entanto, sua voz pareceu apresentar certo cansaço, como se tivesse gastado toda a sua energia no dueto anteriormente citado.

O baixo Luiz-Ottavio Faria interpretou um Daland bastante consistente vocalmente e com ótimo desempenho cênico. O artista demonstrou a ambição do personagem de maneira propositalmente mal disfarçada. Seu dueto com o Holandês (Durch Sturm und bösen Wind) e seu monólogo do segundo ato (Mögst du, mein Kind) receberam ótimas performances.

A soprano argentina Carla Filipcic, que é uma verdadeira artista e já havia interpretado em São Paulo por duas vezes a Marechala de Der Rosenkavalier, de modo geral cantou a parte de Senta com grande qualidade expressiva, desde a balada do segundo ato (Johohohe! Johohohe!), passando pelo já citado dueto com Erik e por aquele com o Holandês (Wie aus der Ferne längst), até chegar à sua participação final no terceiro ato. A lamentar apenas a qualidade de alguns dos seus agudos, que soaram sem muito brilho e pouco wagnerianos. Ainda assim, o seu ótimo desempenho cênico contribuiu bastante para o espetáculo.

Terceiro ato (Coro Lírico Municipal)

E o baixo-barítono argentino Hernán Iturralde – que já havia interpretado a parte do Holândes no Brasil (em Belo Horizonte, 2018) e, no ano passado, foi um excelente Barão Ochs em Der Rosenkavalier – pôde uma vez mais nos brindar com o seu grande talento. Em total sintonia com a proposta da encenação, de contar uma “história de fantasma”, o artista ofereceu uma performance cênica irrepreensível, dando vida a um Holandês verdadeiramente sinistro, fantasmagórico, mas que, ao mesmo tempo, exibia traços da sua humanidade. Todos os sentimentos experimentados pelo personagem estavam lá: primeiro angústia e desesperança, depois esperança e arrebatamento, e, quase no fim, desespero, ao crer que a sua salvação estava perdida, antes do sacrifício de Senta.

Sob o aspecto vocal, sua atuação também foi extremamente positiva, desde a sua ária do primeiro ato, Die Frist ist um, e ao longo de toda a ópera, incluindo os duetos já citados. Sua voz sempre se mostrou potente, expressiva e à serviço da verdadeira gangorra de sentimentos do personagem. Uma grande atuação.

O Coro Lírico Municipal, preparado por Mário Zaccaro e Érica Hindrikson, contribuiu bastante para o espetáculo. É verdade que as vozes femininas foram apenas corretas durante o coro das tecelãs, Summ’ und brumm’, mas as vozes masculinas deram muito boa conta da parte dos marinheiros no primeiro ato (Mit Gewitter und Sturm) e, especialmente, no terceiro ato (Steuermann! Laß die Wacht!), quando ofereceu, como já mencionado, grande performance cênica.

É uma pena que, para variar, o ponto mais fraco da produção esteja no fosso. A Orquestra Sinfônica Municipal poderia ser (como já demonstrou em trabalhos anteriores a 2017, e com vários regentes diferentes) uma ótima orquestra de ópera, mas, sob a costumeira condução de Roberto (sempre ele) Minczuk, pouco evolui. No caso do Navio, foram raras as passagens bem defendidas, como a abertura sinfônica ou o acompanhamento ao dueto entre Senta e Erik no segundo ato.

De resto, faltou quase tudo: o regente parece não dar importância à dinâmica, aposta quase sempre em um som forte, volumoso (o que resulta em uma falta quase que total de maleabilidade ao conjunto), e é raso nas transições, quase sempre abruptas. Quando juntamos tudo isso à informação de que quem prepara os cantores, na verdade, é o maestro assistente, Alessandro Sangiorgi, e o titular só assume os ensaios conjuntos quase no fim da preparação, fica bastante claro porque é sempre desse jeito.

Apesar disso, no fim das contas, os acertos da produção são bem maiores, e uma belíssima história de fantasma está sendo contada no Theatro Municipal de São Paulo.

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Fotos: Stig de Lavor (na foto principal, ao centro, a soprano Carla Filipcic). / Até o momento, o TMSP disponibilizou apenas quatro fotos de cena. Caso disponibilize mais, as fotos serão atualizadas.

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