Uma “Carmen” que não se sustenta dramaticamente

Em meio a um desempenho musical de altos e baixos, encenação de Jorge Takla não convence no TMSP.

Carmen (1875)
Ópera em quatro atos

Música: Georges Bizet (1838-1875)
Libreto: Henri Meilhac (1830-1897) e Ludovic Halévy (1834-1908)
Base do libreto: Carmen, novela de Prosper Mérimée (1803-1870)

Theatro Municipal de São Paulo

03 de maio de 2024

Direção musical: Roberto Minczuk
Direção cênica: Jorge Takla / Ronaldo Zero
Cenografia: Nicolás Boni
Figurinos: Pablo Ramírez
Iluminação: Mirella Brandi
Coreografia: Katia Barros

Elenco:
Carmen: Annalisa Stroppa, mezzosoprano
Don José: Max Jota, tenor
Micaëla: Camila Provenzale, soprano
Escamillo: Fabián Veloz, barítono
Frasquita: Raquel Paulin, soprano
Mercédès: Andreia Souza, mezzosoprano
Remendado: Jean William, tenor
Dancaïre: Johnny França, barítono
Zuniga: Sérgio Righini, baixo
Moralès: Guilherme Rosa, barítono
Lillas Pastia: Marcio Louzada, ator

Coro Lírico Municipal (Érica Hindrikson)
Coro Infantojuvenil da Escola Municipal de Música (Regina Kinjo)
Orquestra Sinfônica Municipal

Segundo título levado à cena lírica na presente temporada do Theatro Municipal de São Paulo, com récitas até 11 de maio, Carmen, ópera em quatro atos de Georges Bizet sobre libreto de Meilhac e Halévy (detalhes no quadro acima), estreou mundialmente em 03 de março de 1875, na Opéra-Comique de Paris.

Naquela ocasião, o acolhimento frio do público e a péssima recepção da crítica levaram o teatro a distribuir ingressos gratuitamente para as últimas récitas daquela primeira temporada francesa. Bizet tinha convicção de que havia composto uma obra-prima, e o insucesso, especula-se, colocou o compositor em profunda depressão. Ele já sofria de problemas cardíacos e, certamente, a depressão agravou a sua doença, levando-o prematuramente à morte por infarto, aos 36 anos, em 03 de junho de 1875 – exatamente três meses após a estreia de Carmen.

Esse fracasso inicial da ópera não chega a surpreender. O seu tema – no qual a mocinha (Micaëla) é rebaixada a personagem secundária, e uma cigana amoral é alçada ao posto de protagonista, enquanto o suposto herói vai se transformando em vilão ao longo da encenação – nada tinha a ver com o gosto da época. A ópera contém ainda traços do Realismo (especialmente a exposição de mulheres que trabalham em uma fábrica) e coloca no palco uma mulher que defende a sua própria liberdade em cena aberta (algo ainda impensável naqueles tempos), chegando a cantar versos como “eu penso, não é proibido pensar” ou “Carmen nasceu livre, livre morrerá”, jamais se submetendo ao controle do “macho” de plantão (Don José). Some-se a isso o fato de que os burgueses que frequentavam a Opéra-Comique também estavam acostumados a espetáculos “de família”, sem morte no final, aos quais levavam as suas esposas e filhas, e o que Carmen representou em 1875 foi uma verdadeira afronta à hipócrita moral burguesa parisiense.

Pouco tempo depois da morte de Bizet, no entanto, quando a ópera foi levada em Viena em outubro do mesmo ano (com recitativos compostos por Ernest Guiraud substituindo os diálogos falados típicos da opéra-comique), crítica e público austríacos decretaram um sucesso que se mantém inabalável até os nossos dias. Isso se deve, claro, à música magistral de Bizet, que desde a abertura prende e encanta o ouvido do espectador.

Falando na abertura, o prelúdio de Carmen é uma peça extremamente atraente, mas muitas vezes deixado para segundo plano em muitas análises. Ele se divide em duas partes: o primeiro movimento, um allegro giocoso em lá maior, é formado por dois temas, o da tourada e o do toureiro; enquanto o segundo movimento, um andante moderato em ré menor, apresenta o chamado “tema do destino”. Esses três temas são retomados oportunamente ao longo da ópera.

Uma leitura comum reportará que os temas do primeiro movimento servem para situar a ação no tempo e no espaço (a Espanha, na época das grandes touradas), enquanto o segundo movimento dá o tom do drama que começa a ser contado. Em outra interpretação, talvez mais interessante, o prelúdio de Carmen já parece resumir brilhantemente a tragédia: assim como o touro só é verdadeiramente domado quando o toureiro o abate na arena, somente a morte poderia impedir a cigana indomável de ser livre. Carmen é, metaforicamente, o “touro” de Don José. No final da ópera, enquanto Escamillo toureia dentro da arena, Don José “toureia” do lado de fora. Tudo já estava brilhantemente resumido no prelúdio; o feminicídio da protagonista já estava selado.

Grandes momentos musicais e dramáticos – as duas primeiras árias da protagonista, o maravilhoso dueto para soprano e tenor, a canção cigana, a canção do toureador, a grande ária do tenor, o quinteto dos contrabandistas, o noturno de Micaëla, a cena da corrida de Sevilha e o tenso dueto final – fazem desta uma partitura única, que arrebata multidões há 149 anos.

Fabián Veloz (ao centro), como Escamillo

Para a presente produção de Carmen no TMSP, o encenador Jorge Takla concebeu, ao lado do diretor associado Ronaldo Zero, uma encenação que se passa na Espanha franquista (ou seja, durante a ditadura de Francisco Franco, que vigorou entre 1939 e 1975), e mais especificamente no chamado “mundo da alta costura”. Se há algo de interessante, ou ao menos de curioso, nessa ideia, o que se vê no palco é uma série de equívocos que vão se acumulando ao longo da apresentação, resultando em um todo que não se sustenta.

Uma das primeiras decisões a se tomar, quando um teatro resolve apresentar Carmen ao público, é se a versão oferecida será a original (ou seja, com diálogos falados entre os números musicais) ou aquela com recitativos. A direção do espetáculo optou pela versão original, que entendo ser realmente a melhor versão, mas o problema é que quase todos os diálogos falados foram suprimidos, gerando momentos sem muita explicação ou lógica dramática. E talvez o melhor – ou pior – exemplo desse problema seja quando Micaëla entra em cena no terceiro ato, procurando Don José no refúgio dos contrabandistas: como ela vai parar ali? Entrou por onde? Como ela descobriu que eles se escondiam ali? A personagem aparece do nada, canta a sua ária, e sai. Sem mais nem menos.

Voltemos ao início. O primeiro ato original da ópera se passa em uma praça pública, mas, na versão de Takla, o que vemos é um ateliê que, logo na primeira cena, está repleto de guardas e seguranças privados. Seria impossível saber o que esses profissionais fazem ali sem ler a sinopse adaptada que é apresentada no programa de sala, segundo a qual eles “aguardam a visita de autoridades para um desfile privado”. Ora, se não é possível entender o que acontece no palco apenas olhando para a cena, temos mais um problema, já que nem todos os expectadores compram o programa (e nem todos aqueles que compram fazem esse tipo de leitura antes da récita).

Em uma salinha à direita, ora modelos são fotografadas, ora homens aparecem sentados, e depois voltam as modelos, talvez esperando alguma coisa. É uma sala sem muito sentido à primeira vista. A protagonista é apresentada como uma modelo famosa, e quando acontece a cena da briga, o desentendimento inicial não ocorre entre duas operárias (costureiras nesta versão), mas entre duas modelos, ou seja, entre profissionais de uma classe superior à das costureiras. Diante do que é mostrado em cena, é até difícil identificar Carmen como uma cigana: o que ouvimos ser cantado não condiz muito com o que vemos. Aqui e nos atos seguintes, a propósito, Carmen será representada de maneira muito europeizada. Afinal, se está no mundo fashion, isso indica que ela absorveu a cultura europeia.

O segundo ato não se passa em uma taberna, mas em um estúdio fotográfico. Ainda assim, o espaço continua contando com mesas em seu interior. A justificativa para o toureiro Escamillo aparecer por lá é que também ele vai ser fotografado. Já no terceiro ato, em vez das montanhas, vemos um grande galpão, descrito na sinopse adaptada como “um depósito secreto dos contrabandistas, próximo da fronteira”. Se o local é “secreto”, como uma personagem como Micaëla consegue encontrá-lo sem grande esforço? O quarto ato, por fim, se passa novamente no ateliê, onde acontece um desfile de alta-costura. Escamillo está por lá, claro, e a justificativa para isso é que a “coleção” do grande estilista (representado por um ator) é claramente inspirada no universo das touradas.

Em termos de direção de atores, também há problemas. Micaëla, que deveria parecer uma estranha em meio aos demais personagens apenas no terceiro ato, aparenta estar totalmente deslocada já no primeiro ato. A atração entre Don José e Carmen tem ares muito artificiais, e, pelo menos na estreia do dia 03 de maio, não houve muita “química” entre os personagens.

No último ato, Carmen diz que ama o toureiro sem sequer olhar para ele, e, no dueto final, o punhal de Don José passa por algumas mãos (inclusive as de Carmen) antes de voltar para as dele, em marcações bastante artificiais. A presença de alguns(mas) dos(as) modelos que participaram do desfile ali tão próximo dos protagonistas, como se estivessem assistindo àquela discussão derradeira entre eles, também não se sustenta.

Quando José apunhala as costas de Carmen, ninguém parece se importar, nem mesmo Escamillo, todos parecem congelados (como se estivessem em uma foto), e o coro se limita a aplaudir a coleção do estilista. Talvez a intenção da direção, aqui, tenha sido ressaltar a pouca importância que a sociedade da época dava (e ainda hoje dá) a um feminicídio, mas mesmo isso resultou banhado no artificialismo.

Para colocar esse “mundo” de pé, foram essenciais os cenários de Nicolás Boni. O trabalho do cenógrafo argentino é sempre muito qualificado, até mesmo quando parte de um conceito problemático. O cenário possui uma base geral, que circunda o palco em forma de ferradura durante os quatro atos, e recebe algumas alterações de acordo com as necessidades de ambientação de cada ato da ópera.

Os figurinos de Pablo Ramírez vestem a maioria dos personagens no estilo dos anos 50 do século XX. Para as/os modelos que participam do desfile no último ato, o figurinista abusa de um exagero proposital que não possui muito sentido dramático. A iluminação de Mirella Brandi, se não contribui muito com o drama, funciona bem. E as coreografias de Katia Barros atendem o que certamente foi pedido à coreógrafa, mas é preciso dizer que as cenas criadas e apresentadas sem acompanhamento musical, antes dos prelúdios do segundo e do quarto atos, também não acrescentam nada ao drama.

Max Jota (Don José) e Annalisa Stroppa (Carmen)

A Orquestra Sinfônica Municipal apresentou boa sonoridade sob a regência de Roberto Minczuk, que desta vez se esforçou mais para segurar o volume do conjunto. Os prelúdios do segundo, do terceiro e do quarto atos foram muito bem interpretados. O primeiro movimento da abertura, no entanto, me pareceu acelerado além da conta. Não houve grandes desencontros, e, se a direção musical era carente de ideias, o simples fato de o regente não atrapalhar, como em inúmeras ocasiões anteriores, já ajudou bastante. Parece ter havido um trabalho de preparação mais cuidadoso, com ensaios mais eficientes. Pequenos cortes musicais, porém, como o da retomada do coro das crianças, não se justificaram.

O Coro Lírico Municipal, preparado por Érica Hindrikson, ofereceu uma boa récita, da mesma forma que o Coro Infantojuvenil da Escola Municipal de Música, preparado por Regina Kinjo.

O ator Marcio Louzada interpretou com correção um Lillas Pastia fotógrafo de moda (em vez de taberneiro) e que teve a sua parte bem reduzida. Como o cabo Moralès, o barítono Guilherme Rosa não decepcionou, da mesma forma que o baixo Sérgio Righini interpretou o oficial Zuniga com segurança.

Como as ciganas/modelos (que não pareciam lá muito ciganas), a soprano Raquel Paulin (Frasquita) e a mezzosoprano Andreia Souza (Mercédès) apresentaram bom desempenho cênico dentro do que lhes foi pedido pela direção. Paulin apresentou belos agudos, necessitando cuidar mais da projeção nas regiões média e grave da sua voz. Souza exibiu um belíssimo timbre, mas a ausência de um melhor controle técnico prejudica por vezes a sua emissão.

Como os contrabandistas, o tenor Jean William foi um Remendado apenas correto, enquanto o barítono Johnny França foi um Dancaïre perfeito, de voz segura e bem projetada, e atuação cênica bastante convincente. O quinteto dos contrabandistas no segundo ato, reunindo França, William, e ainda Raquel Paulin, Andreia Souza e a intérprete da personagem-título (leia sobre ela abaixo), foi dos momentos musicais mais agradáveis da noite, com a voz do barítono se sobressaindo, e com uma movimentação que lembrou muito o jogo cênico do teatro musical.

A soprano Camila Provenzale (que antes se apresentava como Camila Titinger) viveu uma Micaëla insatisfatória. Sua voz sem brilho, de emissão vacilante, projeção curta e timbre pouco atraente não convenceu em momento algum, talvez porque pautada em uma técnica questionável. Sua ária, Je dis que rien ne m’épouvante, foi carente em qualidade interpretativa.

O barítono argentino Fabián Veloz, que havia interpretado um bom Rigoletto no mesmo TMSP há alguns anos, apresentou dificuldades como Escamillo ao abordar a canção do toureador, Votre toast, na qual a sua voz se mostrou pouco à vontade nas passagens mais graves. Apresentou-se mais à vontade nos terceiro e quarto atos.

O tenor brasileiro Max Jota, que faz carreira na Europa, interpretou um Don José de altos e baixos, com agudos generosos e uma boa interpretação da ária La fleur que tu m’avais jetée. Sua voz, no entanto, nem sempre se mostrou linear, e a região mais grave, especialmente, necessita de maior cuidado. Cenicamente, seu Don José deixou a desejar, e a sua declamação nos diálogos falados que sobreviveram aos cortes não convenceu.

A mezzosoprano italiana Annalisa Stroppa interpretou Carmen com honestidade. Sua voz corre bem na região média, onde o seu timbre alcança um brilho quente muito agradável e o seu fraseado é requintado. Nas regiões aguda e grave, no entanto, houve oscilações, e nem sempre aquele belíssimo equilíbrio da região média se manteve. A sua projeção não chega a ser generosa, o que afetou a interpretação da canção cigana (Les tringles des sistres tintaient) no segundo ato, mas suas habanera (L’amour est un oiseau rebelle) e seguidilha (Près des remparts de Séville), no primeiro ato, soaram bem. Em termos cênicos, Stroppa deu vida a uma Carmen mais cerebral e pouco passional, repetindo várias vezes um mesmo gesto característico com a mãos, e ainda declamando partes faladas de maneira pouco convincente.

Em conclusão, a estreia de Carmen foi cenicamente bastante problemática, mas, mesmo considerando os seus altos e baixos musicais, foi também musicalmente superior à estreia de Madama Butterfly, em março. Alguma evolução há, portanto.


Fotos: Larissa Paz (na foto principal, Annalisa Stroppa e atores/bailarinos).
O TMSP disponibilizou até o momento poucas fotos da montagem. Caso disponibilize mais fotos, atualizaremos esta publicação.

Um comentário

  1. Texto crítico como deve ser: de uma precisão cirúrgica e enorme percepção estética.
    Concordo com tudo que foi dito.
    Parabéns!

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