Uma discussão sobre o canto em português

No último sábado, dia 29 de junho, o Theatro Municipal de São Paulo acolheu, em seu Salão Nobre, mais um evento da série Ópera Presente | Futuro. Denominado O Cantar Brasileiro, consistiu em duas mesas voltadas à discussão sobre o canto em português brasileiro, usando como mote a encenação da ópera O Contractador de Diamantes, de Francisco Braga, cujo libreto, escrito em italiano por Gerolamo Bottoni, recebeu uma tradução em português para a série de récitas ocorridas no TMSP, entre os dias 28 de junho e 2 de julho. A curadoria foi de Flávia Toni, do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, e de Ligiana Costa, tradutora do libreto e dramaturgista da montagem.

A primeira mesa teve como título Cantar brasileiro: histórias, poética e experiências, e foi composta por Flávia Toni (IEB/USP), Maria Alice Volpe (UFRJ) e Juliana Starling (Unesp e TMSP), mediadas por Camila Fresca. A segunda, intitulada O Contractador de Diamantes como processo de criação e práxis, contou com a participação de Ligiana Costa, do protagonista do espetáculo, Licio Bruno (Fames – Faculdade de Música do Espírito Santo), e do maestro que rege a produção, Alessandro Sangiorgi, tendo mediação de Ana Lucia Lopes, gerente da Gerência de Formação, Acervo e Memória do TMSP.

A curadoria cuidadosa abriu um espaço de debate interessante, que uniu a teoria à prática. Embora a primeira mesa tenha se voltado sobretudo às reflexões teóricas sobre o assunto, e a segunda se concentrado num estudo de caso – a tradução e a encenação de O Contractador de Diamantes –, os dois âmbitos se cruzaram nas contribuições de diversos palestrantes, que estabeleceram ressonâncias entre si.

Prova de que a prática é enriquecida ao ser aliada ao fôlego arquivístico é oferecida por esta ópera, resultado dos esforços de pesquisa da Academia Brasileira de Música, na pessoa de Roberto Duarte, cujo trabalho minucioso foi explicitado por Maria Alice Volpe, já que porção considerável da ópera, então perdida, foi reestruturada depois de minuciosa pesquisa. Duarte foi ainda lembrado por Licio Bruno enquanto o maestro que o regeu em sua primeira experiência como cantor lírico, quando ainda era estudante de Engenharia na PUC, e começou a cantar no coral da instituição.

Volpe e Starling dedicaram as suas apresentações a análises históricas voltadas aos momentos em que se investiu, no país, no canto em português. Volpe apresentou um cronograma temporal que remeteu a três períodos importantes: meados do século XIX, época do Movimento de Ópera Nacional, voltada à produção de óperas em português; década de 1890, quando esses esforços recebem o incremento de um homem como o célebre compositor Alberto Nepomuceno, formado na Europa; e a década de 1930, com o apoio de folcloristas e artistas modernistas.

Concentrando-se neste último recorte temporal, Volpe abordou o Arquivo da Palavra, de Mário de Andrade, polígrafo de extrema relevância na produção cultural brasileira a partir dos anos de 1920, cujo nome esteve presente nas falas de vários palestrantes do evento. Ela destacou a relevância que Mário atribuiu aos cantores populares (considerando a afro-brasileira Elsie Houston a cantora que melhor representava a língua nacional). Segundo Andrade, a língua atrelava-se à diversidade étnico-racial, e os cantores populares representavam o seu povo, daí a sua importância.

Juliana Starling – pesquisadora com mestrado e doutorado sobre o canto em português brasileiro, professora de canto e membro do Coro Lírico – enfatizou as relações entre a teoria e a prática. Trazendo para debate o Congresso da Língua Nacional Cantada, organizado por Mário de Andrade em 1937, sublinhou que a língua falada carioca foi ali tomada como a variante mais musical e elegante do português brasileiro (podemos considerar que a escolha procurava escamotear o papel político da língua, segundo o qual valorizam-se as variantes linguísticas faladas em espaços de poder – lembremo-nos que o Rio de Janeiro era, então, a capital do país). Segundo ela, a justificativa dos membros do Congresso recaía no fato de que, por ser capital, o Rio contava com uma grande diversidade humana, e, portanto, o “carioquês” seria fruto de uma colaboração nacional. Respondendo a uma intervenção do público a respeito do caráter impositivo desta seleção, Flávia Toni lembrou os presentes que Mário de Andrade ocupou a cadeira de Dicção da Escola Nacional de Música, daí a dar especial valor à normatização no que concernia à prosódia.

A contribuição de Toni veio no sentido de complementar as informações valiosas fornecidas por ela no programa do espetáculo, disponível em https://theatromunicipal.org.br/pt-br/evento/ocontractadordediamantes/.

Recapitulando, O Contractador de Diamantes surgiu primeiramente como conto e, em seguida, como peça de teatro de intuito nacionalista claro, exibida também no Theatro Municipal de São Paulo em 1919. Pouco tempo depois disso, Francisco Mignone, que participou do espetáculo como regente de uma orquestra que fazia parte da diegese cênica, viaja com fomento público para estudar na Itália. Toni destacou a formação italiana de todos os professores do compositor, tanto do Conservatório Paulista, onde ocorreu a sua formação primeira, quanto de Milão. Sublinhou, ademais, o peso que teve para ele uma figura como Carlos Gomes, que se celebrizou por óperas como Il Guarany¸ escritas em italiano.

Toni observou, no entanto, um choque entre essas influências exógenas e o ímpeto nacionalista do compositor (que compõe esta ópera contemporaneamente aos festejos em comemoração ao Centenário da Independência do país) – o que a produção original da ópera explicita, já que, nela, parte dos cantares populares acontecem em variantes do português, enquanto que os membros da aristocracia cantam em italiano. A tradução ao português, ocorrida em 2024, vem, segundo Toni, no intuito de repatriar a obra.

Abrindo a segunda mesa, Ligiana Costa tomou este gancho, constatando que a prosódia da linha vocal do Contractador… é em português, mesmo nos trechos em italiano. Tal constatação foi endossada pelo maestro Alessandro Sangiorgi em sua comunicação. Segundo ele, por exemplo, diversas notas mais longas foram colocadas pelo compositor na última sílaba, coisa que praticamente inexiste em italiano, mas que é comum no português.

No que concerne à sua contribuição como dramaturgista, Costa ressaltou o seu esforço de introduzir na obra um conjunto de “paratextos” que visaram não condecorar Felisberto Caldeira Brandt mais do que a ópera já o faz. Daí a sua decisão de colocar na boca de um homem negro, que também representa, no espetáculo, o papel de um mestre de latim, a “dúvida sobre a realidade da figura do Contratador de Diamantes como herói” – algo que a ópera, no seu mais candente esforço nacionalista, procura ressaltar. Para legitimar este trabalho de apropriação do passado e de sua recriação, Costa fez uso, ainda, de uma bela citação de Homi K. Bhabha, publicada em O Local da Cultura, segundo a qual, quando retomado no presente, o passado emerge num entre-lugar: “O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’, que não seja parte do ‘continuum’ de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e interrompe a atuação do presente”.

Licio Bruno e Alessandro Sangiorgi apresentaram as colaborações derradeiras do evento, voltadas sobretudo a aspectos práticos. Bruno – que, diga-se de passagem, realiza um trabalho notável em cena –, relatou o seu encontro com o texto da ópera, primeiro em italiano, e um mês antes do início dos ensaios, em português. Explicitou igualmente as suas contribuições à tradução, que levaram em consideração o lugar ambivalente desse personagem, homem da elite que procurava flertar com o seu povo.

Já Sangiorgi destacou que, de saída, rejeitou a ideia da produção de uma versão em português do libreto, dada a maior facilidade na abordagem do canto em italiano – segundo ele, a articulação do português é mais lenta que a do italiano, língua em que se emenda uma vogal na outra. O maestro sublinhou, no entanto, que foi convencido ao fazer um estudo mais minucioso da ópera, quando observou que a sua linha vocal acenava ao português. Assim, o seu esforço caminhou no sentido de buscar uma inteligibilidade, que considerasse a audibilidade por parte de toda a plateia.

O evento Ópera Presente | Futuro: O Cantar Brasileiro foi filmado e, em breve, estará disponível na página do YouTube do Theatro Municipal de São Paulo.


Foto: a autora (a partir da esquerda, Licio Bruno, Ligiana Costa, Alessandro Sangiorgi e Ana Lucia Lopes).

Um comentário

  1. É uma pena que tenha sido esquecido, nesse debate, os profundos estudos e o simpósio a respeito do canto lírico em português organizados pela saudosa Profa. Dra. Martha Herr.

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