Uma dobradinha bem heterogênea

No Theatro São Pedro-SP, um belo “Gianni Schicchi” divide atenções com uma “Turandot” (de Busoni) irregular.

Turandot, 1917
Ópera em dois atos

Música e libreto: Ferruccio Busoni (1866-1924)
Base do libreto: Turandot, comédia de Carlo Gozzi (1720-1806)

Gianni Schicchi, 1918
Ópera em ato único

Música: Giacomo Puccini (1858-1924)
Libreto: Giovacchino Forzano (1883-1970)
Base do libreto: Canto XXX, do Cântico do Inferno, da Divina Commedia, de Dante Alighieri (1265-1321)

Theatro São Pedro-SP

02 de agosto de 2024

Direção musical: Ira Levin
Direção cênica: Alexandre Dal farra
Cenografia: Duda Arruk
Figurinos:
Fábio Namatame
Iluminação: Mirella Brandi

Elenco principal:
Rodrigo Esteves, barítono: Barak e Gianni Schicchi
Marly Montoni, soprano: Turandot e Nella
Giovanni Tristacci, tenor: Calaf e Gherardo
Daniel Umbelino, tenor: Truffaldino e Rinuccio
Raquel Paulin, soprano: Rainha-Mãe de Samarcanda e Lauretta
Saulo Javan, baixo: Altoum e Simone
Nathalia Serrano: Cantora e Zitta

Elenco secundário: Juliana Taino, Gustavo Lassen, Douglas Hahn, Ádamo, Andrey Mira, Isaque Oliveira, Pedro Côrtes e Barbara Blasques (cantores); e Ney Piacentini (ator)

Orquestra do Theatro São Pedro

Neste ano em que o centenário de morte de Giacomo Puccini é lembrado em todo o planeta, o Theatro São Pedro, de São Paulo, observou que outro compositor italiano, menos conhecido, também morreu em 1924: Ferruccio Busoni. Apesar de italiano, Busoni tinha ascendência alemã por parte de mãe, e teve a vida profissional muito ligada à Alemanha, tendo sido, inclusive, sepultado em Berlim. Assim, a casa de ópera da Barra Funda decidiu prestar uma homenagem dupla, promovendo uma dobradinha bem heterogênea, que reúne até o dia 11 de agosto as óperas Turandot, de Busoni, e Gianni Schicchi, de Puccini. A primeira dessas óperas, inclusive e de certa forma, liga os dois compositores, uma vez que Puccini também viria a compor a sua Turandot, deixando-a, no entanto, inacabada.

A Turandot de Busoni e a de Puccini

Ney Piacentini e coro em Turandot

É impossível não comparar as duas “Turandots”. Com libreto original em alemão escrito pelo próprio compositor (no São Pedro foi utilizada a versão italiana, com os diálogos falados em português), a Turandot de Busoni estreou primeiro, em 1917, com uma trama básica muito próxima da versão mais conhecida de Puccini: um príncipe estrangeiro e desconhecido (Calaf) encontra-se em Pequim, onde se encanta com a beleza irresistível da princesa local (Turandot). Ele decide então enfrentar os três enigmas que ela impõe aos seus pretendentes como forma de afastá-los, já que não deseja se casar com ninguém. Calaf decifra os enigmas e, diante da reação de Turandot, oferece-lhe apenas um enigma: descobrir o seu nome. No final, ela revela em uma cerimônia o nome do príncipe, mas acaba aceitando se casar com ele, já que também se apaixonou.

Há, porém, diferenças consideráveis em termos de construção dramática: a princesa de Puccini, que subiu ao palco pela primeira vez apenas em 1926 (um ano e meio depois da morte do compositor e com música complementar de Franco Alfano), somente se rende ao amor no fim da ópera, enquanto a de Busoni já demonstra interesse por Calaf tão logo o conhece. Não há em Busoni as figuras de Liù e Timur (este, pai do príncipe, é apenas citado). No lugar deles, comparecem em cena dois servos, Barak e Adelma, e o imperador Altoum tem mais destaque.

Outra diferença relevante se dá entre as chamadas três máscaras que remetem à Commedia dell’Arte: Puccini e seus libretistas (Giuseppe Adami e Renato Simoni) constroem as figuras de Ping, Pang e Pong com uma dose cirúrgica de humor e ironia, sem dispensar uma pitada filosófica quando eles comentam a situação da China sob o jugo de Turantot. Já na ópera de Busoni, temos os personagens Truffaldino, Pantalone e Tartaglia, que, apesar de reforçados na ironia, não alcançam a mesma graça dos seus semelhantes puccinianos.

A Turandot de Busoni é mais curta, mais direta, com cerca de 1:20h de duração, enquanto a de Puccini conta com 2h de música. Se, por um lado, a primeira é mais concisa, por outro, a segunda alcança uma construção psicológica mais completa dos personagens. E, claro, temos a música. Puccini era um homem de teatro até a medula, e compunha para a cena lírica com a precisão absoluta de um talentoso artesão. Por isso mesmo, a qualidade musical da sua versão de Turandot cai bastante a partir do momento em que a música passa a ser de Franco Alfano (logo após a morte de Liù).

Busoni, apesar da sua relevância para o pensamento musical no começo do século XX, não estava no nível de Puccini enquanto compositor de música dramática, mas a textura musical da sua Turandot guarda lá o seu interesse, ainda que passe longe da exuberância pucciniana, e parece caber muito bem em um palco como o do Theatro São Pedro.


Turandot de Busoni – realização irregular

Juliana Taino e Marly Montoni em Turandot

Na produção do Theatro São Pedro, o encenador Alexandre dal Farra apresenta uma ideia inteligente para unir as duas obras do programa: a primeira delas, Turandot, acontece como se fosse um sonho (ou pesadelo) do moribundo Buoso Donati, que morre mais tarde para que a trama de Gianni Schicchi possa se desenvolver. Em seu sonho, Donati é o carrasco da ópera de Busoni, que é um personagem mudo.

Daí em diante, há um desfile de questões cênicas, a começar pela apresentação, em alguns momentos, de vídeos de Buoso Donati em um painel na parte superior direita do palco, expediente que acaba desviando a atenção do espectador do que acontece em cena – que é o que realmente interessa.

Em sua concepção, a julgar por um texto apresentado nas legendas antes da cena final da ópera e pelos figurinos pouco inspirados de Fábio Namatame, o diretor parece posicionar a sua encenação na época da Primeira Guerra Mundial (ou seja, na mesma época em que a obra foi composta), o que deixa tudo muito estranho.

A ópera de Busoni, assim como a base original de Gozzi, retrata uma espécie de fábula, ocorrida em um mundo fantástico e distante. Ainda que esse mundo possua as suas cruezas, trazê-lo para próximo da realidade é sempre perigoso, pois a artificialidade de alguns personagens – natural em um ambiente de fantasia – acaba correndo um risco grande de parecer desprovida de sentido. Some-se a isso uma direção de atores bastante irregular, sobretudo nas passagens em que os personagens recitam textos falados, e chegamos a um nível de artificialidade bem vazia.

O cenário de Duda Arruk foi pensado para as duas óperas do programa. Formado por módulos, cada um destes possuem uma “face” utilizada em Turandot, e outra utilizada em Gianni Schicchi. Funcionam mais na segunda ópera da noite, e menos na primeira. Um agravante é que, em ambas, tais módulos precisam da presença de técnicos para movimentá-los para lá e para cá a todo momento, poluindo a cena. A luz de Mirella Brandi é o que há de melhor nas duas óperas da noite em termos cênicos.

Na récita de estreia, em 02 de agosto, o ator Ney Piacentini (Buoso Donati/Carrasco) ofereceu uma atuação excelente dentro da proposta cênica. A contralto Nathalia Serrano (uma cantora) não encontrou meios para se destacar e apresentou agudos com problemas de afinação. A soprano Raquel Paulin também não se mostrou muito à vontade vocalmente como a Rainha-Mãe de Samarkanda. E o barítono Rodrigo Esteves foi um Barak discreto.

Dentre os intérpretes do trio de máscaras, o barítono Douglas Hahn (Tartaglia) e o baixo Gustavo Lassen (Pantalone) apresentaram-se bem, enquanto o tenor Daniel Umbelino foi um Truffaldino no limite – e, neste caso, parece-me que as escritas de Busoni para a voz e para a orquestra são um tanto contrastantes. O baixo Saulo Javan cantou com segurança a parte do imperador Altoum.

Giovanni Tristacci e coro em Turandot

A soprano Marly Montoni teve uma noite pouco inspirada: sua Turandot foi cenicamente pobre, e vocalmente irregular, com afinação bastante oscilante nos agudos. Apesar das suas poucas intervenções ao longo da ópera, a mezzosoprano Juliana Taino foi vocalmente perfeita como Adelma. E o principal destaque desta primeira parte do programa foi o tenor Giovanni Tristacci, que construiu um Calaf vocalmente sólido.

A Orquestra do Theatro São Pedro, conduzida por Ira Levin, ofereceu um bom rendimento, enquanto o coro formado para a ocasião, preparado por Bruno Costa, apresentou-se muito bem.


Gianni Schicchi – ótimo elenco e um excelente protagonista

Cena da falsificação do testamento, em Gianni Schicchi

Depois do intervalo chegou a vez de Gianni Schicchi – a mais famosa das óperas que integram Il Trittico (O Tríptico), de Puccini –, que se mostrou um espetáculo mais bem resolvido, sobretudo porque esta ópera foi, em geral, muito bem cantada. E aqui é impossível não comparar a montagem do São Pedro com a recente apresentação da mesma ópera no Theatro Municipal do Rio de Janeiro (onde integrou uma produção completa de Il Trittico): a encenação do Rio foi mais divertida, mais movimentada, mas deixou a desejar em termos de desempenho musical, enquanto a do São Pedro se destacou exatamente por um elenco que rendeu muito bem praticamente o tempo todo.

Utilizando, como já mencionado, a outra face dos mesmos módulos que compuseram a ambientação de Turandot, o cenário de Duda Arruk vai sendo reduzido ao longo da ópera, deixando o quarto de Buoso Donati cada vez mais apertado, claustrofóbico. Os técnicos que movimentam os módulos estão novamente lá, onipresentes. Os figurinos que parecem ter saído da loja mais próxima não condizem com a categoria habitual de Fábio Namatame.

Há falhas evidentes por parte da direção do espetáculo: Zitta e Simone, por exemplo, não são caracterizados como personagens mais velhos, na casa dos 60 e 70 anos. Quando Schicchi, por exemplo, chama Zitta de “velha”, beira o ridículo. A direção de atores de Alexandre dal Farra, se não chega a se destacar, pelo menos não atrapalha muito.

O maior acerto deste Schicchi, como já adiantei, foi a performance vocal dos solistas. Até as partes menores foram muito bem defendidas pela soprano Barbara Blasques (Gherardino em versão feminina), pelo barítono Isaque Oliveira (Amantio di Nicolao) e pelos baixos Pedro Côrtes (Guccio), Andrey Mira (Pinellino) e Ádamo (Maestro Spinelloccio).

Os casais – Nella e Gherardo (Marly Montoni e Giovanni Tristacci); Ciesca e Marco (Juliana Taino e Douglas Hahn) – e mais Betto di Signa (Gustavo Lassen) receberam interpretações competentes. Nathalia Serrano apresentou-se bem como Zitta, mas os agudos mal calibrados, já observados em sua personagem de Turandot, mostraram-se insistentes. Saulo Javan foi um Simone de luxo, de bela voz e presença marcante.

Daniel Umbelino, Raquel Paulin e Rodrigo Esteves em Gianni Schicchi

Outro casal – na ópera e na vida real – ofereceu uma excelente récita: Raquel Paulin mostrou-se uma Lauretta qualificada, exibindo desenvoltura cênica e sabendo aproveitar a sua pequena grande ária, O mio babbino caro, muito bem cantada; e Daniel Umbelino foi um ótimo Rinuccio, destacando-se ao interpretar essa maravilha pucciniana que é a ária Firenze è come un albero fiorito.

Gianni Schicchi, em certa medida, parece ter bebido na fonte de Falstaff: nas duas óperas, o protagonista interpretado por um barítono parece duelar com o restante do elenco. Quando Schicchi é entregue a um cantor experiente, dotado de voz poderosa, mas ao mesmo tempo maleável, geralmente o resultado é amplamente satisfatório.

Rodrigo Esteves na cena final de Gianni Schicchi

Não deu outra no São Pedro. Rodrigo Esteves foi um Schicchi vocalmente impecável, e ainda eloquente, irônico, sarcástico. Se a direção de cena não ajudava muito, ele se virava com a experiência acumulada. O artista utilizou as cores do seu instrumento com inteligência e habilidade, inclusive ao imitar, perfeitamente, a voz de um idoso. O resultado final foi uma belíssima performance.

Ira Levin empregou alguns andamentos lentos ao longo da ópera, que a mim não incomodaram, recebendo boa resposta da Orquestra do Theatro São Pedro, que exibiu boa sonoridade.

Em resumo, a produção é positiva, ao oferecer ao público uma obra rara (Turandot), que sempre viveu à sombra da sua irmã mais célebre, e, na segunda parte, uma pequena joia de Puccini, que no Theatro São Pedro teve o mérito de contar com um elenco qualificado.


Fotos: Íris Zanetti (na foto principal, da esquerda para a direita: Saulo Javan, ao fundo, Nathalia Serrano, de costas, Daniel Umbelino, Rodrigo Esteves e Raquel Paulin).

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