A Cia Ópera São Paulo iniciará a sua 35ª temporada acrescentando mais um nome em sua seleta lista de Grandes Vozes: o do baixo-barítono brasileiro Licio Bruno.
A Série Grandes Vozes
Desde 1997, Paulo Esper, fundador e diretor artístico da Cia Ópera São Paulo e do Concurso Brasileiro de Canto ‘Maria Callas’, tem sido o responsável pela vinda de importantes nomes da cena lírica nacional e internacional para participar de recitais, concertos e óperas, bem como para ministrar masterclasses para jovens cantores.
Em São Paulo para os ensaios da ópera Il Guarany, de Carlos Gomes, que estreará no sábado (15/02) no Theatro Municipal de São Paulo, Licio Bruno ministrou duas tardes de masterclasses na cúpula do próprio teatro — um espaço de ensaio que exala história. Participaram nove jovens. Cada um levou duas árias, dentre as quais foi escolhida uma para ser trabalhada e apresentada no sarau musical que ocorrerá no dia 14 de fevereiro, sexta-feira, às 19h, no Teatro Sérgio Cardoso, com entrada gratuita.
O leitor que acompanha a cena cultural paulistana já deve ter reparado, ao ler o parágrafo anterior, que Paulo Esper deu um passo além da promoção da interação de artistas experientes e consagrados com jovens cantores: está construindo parcerias entre a Cia Ópera São Paulo e as diferentes organizações sociais que geram os teatros. A Sustenidos, responsável pelo TMSP e que tem procurado “arrumar a casa”, estruturar o funcionamento do teatro — algo fundamental e que as outras OSs sempre adiaram —, é aberta a parcerias frutíferas e consciente da importância de receber grandes vozes e de promover novos talentos (o Ópera Studio do TMSP é um dos projetos da Sustenidos para este ano). Já a Associação Paulista dos Amigos da Arte (APAA), que gere o Sérgio Cardoso, é exatamente o que o próprio nome diz e está sempre aberta a abraçar a arte e a receber recitais e saraus musicais. No mundo lírico, sempre se fala da necessidade de união, de cooperação, para vencer as dificuldades. O Grandes Vozes com Licio Bruno é um exemplo disso.
A lista de Grandes Vozes, na qual Licio Bruno está entrando nesta semana, já conta com:
- Grandes Vozes Brasileiras
Alfredo Colosimo, Glória Queiroz, Amauri Rene, Andrea Ramus, Benito Maresca, Niza de Castro Tank, Rodrigo Esteves, Rosana Lamosa, Fernando Portari, Laura de Souza, Eliane Coelho, Paulo Szot, Atalla Ayan e Luiz Ottavio Faria. - Grandes Vozes Internacionais
Magda Olivero, Vicente Sardinero, Virginia Zeani, Adelaida Negri, Sylvia Sass, Viorica Cortez, Rita Contino, Fiorenza Cossotto, Fedora Barbieri, Luigi Alva, Jaime Aragall, Enzo Dara, Evgeny Nesterenko , Mariola Cantarero, Elena Obraztsova, Raul Gimenez, Mara Zampieri, Bruna Baglioni, Gabriella Tucci, Maria Pia Piscitelli, Laura Rizzo, Luis Gaeta, Teresa Berganza, Juan Pons, Bruno Praticò, Graciela Alperyn, Luis Lima, Alícia Nafé, Giovanna Casolla, Maria Bayo, Giuseppe Sabbatini, Roberto Servile, Nancy Fabíola Herrera, Renato Bruson, Daniela Dessì, Fabio Armiliato, Carlo Colombara, Graciela Araya, José Bros, Annick Massis, Fiorenza Cedolins, Eiko Senda, Dimitra Theodossiou, Kaludi Kaludov, Mariella Devia, Cristina Gallardo-Dômas, Maria Luigia Borsi, Roberto Scandiuzzi, June Anderson, Katia Ricciarelli, Sophie Koch, Ernesto Palacio, Chris Merrit, Verónica Villaroel, Cecília Diaz, Marco Berti, Carmen Giannattasio, Celso Albelo, Patrizia Ciofi, Alberto Gazale e Annalisa Stroppa.
Licio Bruno
Antes da primeira masterclass, tive o privilégio de conversar com Licio Bruno. Pessoa amável, artista compenetrado e com alma profundamente religiosa, Licio contou-me um pouco sobre como descobriu a música e sobre o desenvolvimento da sua carreira.
Formação
“A história da arte na minha família vem desde o período em que eu era criança”, contou Licio, relembrando a sua infância no Rio de Janeiro, onde nasceu. Seu pai, diretor da Rádio Guanabara, cuja programação até então era predominantemente musical, comprava fitas de rolo e pedia que fizessem, para ele, cópias de algumas das fitas do acervo da rádio com gravações de orquestras de jazz e dos grandes cantores da Rádio Nacional. “Eu ouvi muita coisa, eu ouvi de tudo”, lembrou Licio.
O contato com esses verdadeiros tesouros, no entanto, não foi tudo. Licio tinha um tio que era cantor lírico, um barítono. Foi ele quem começou a levar alguns discos de ópera e música clássica em geral a Licio. “Aí eu comecei a ouvir Beethoven, Rossini, Verdi, Bellini… e comecei a me musicalizar”. Esse tio entrou no coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e dos três aos oito anos, Licio começou a frequentar o teatro com o tio: tanto os ensaios quanto as óperas. “Naquele primeiro momento, o teatro de ópera tomou um lugar meio que recôndito dentro de mim, e aquilo ficou amortecido”.
Quando cursava o ensino médio, Licio fez um teste vocacional. “Quando saiu o resultado deste teste, a orientadora pedagógica falou: ‘o seu teste vocacional deu área artística, só que arte não dá dinheiro, então vamos para a segunda opção, vamos para as exatas’”. Licio acabou fazendo engenharia na PUC do Rio. Quando estava no segundo ano, meio desanimado com o curso — apesar das boas notas —, andando pela PUC, viu uma porta com uma placa: “Cante conosco. Coral da PUC”. Licio entrou por aquela porta e, daquele dia em diante, sua vida se transformou: “Eu não sabia, mas eu estava atravessando um portal”.
“O coral foi uma vivência muito especial porque eu conheci o maestro Roberto Duarte, que era, naquela ocasião, o regente do Coral da PUC. Roberto Duarte é um grande músico, e quando eu o vi ensaiando o coral, descobri que era aquilo que eu queria fazer: música — não ser regente, mas que o meu mundo era aquele”. Licio contou que logo começou a fazer aulas de canto com o tenor chileno Victor Olivares, que morava no Rio de Janeiro e já havia sido professor da sua mãe — que era fonoaudióloga e queria aprender um pouco mais sobre técnica vocal. Ele estudou com Olivares por 14 anos.
Olivares dava aula na Academia de Música Lorenzo Fernandez, onde Licio ingressou no curso técnico de música. Por indicação do professor, foi estudar interpretação com a soprano Leda Coelho de Freitas, uma grande soprano spinto carioca, cuja formação se deu no Conservatório de Paris: ela teve aula com Francis Poulenc e foi colega de Jessye Norman. Com ela, Licio aprendeu os Lieder de Schubert e Schumann, Fauré, Poulenc, Duparc e música brasileira.
Licio logo sentiu a necessidade de se aprofundar na interpretação cênica. Passou a frequentar os cursos de Fernando Peixoto no Instituto Nacional de Artes Cênicas (INACEN), no Rio. Além dos cursos, trabalhou e conviveu com nomes como Amir Haddad e Sérgio Britto.

A carreira
Em 1995, após ter sido premiado em diversos concursos de canto no Brasil, Licio Bruno ganhou a bolsa da Fundação Vitae para ir para a Academia Franz Liszt, em Budapeste. A bolsa era para nove meses, mas Licio ficou quatro anos morando em Budapeste e, depois desse tempo, mais oito trabalhando na ópera da cidade: no primeiro ano, como artista do elenco estável da casa — ainda com bolsa da Vitae e fazendo curso no opera studio da Ópera de Budapeste —; nos demais anos, quando já morava em Milão, continuou a ser contratado como solista. Lá ele cantou em La Bohème, Don Pasquale, Rigoletto, Così fan Tutte (na estreia da ópera em italiano), Tannhäuser e Pagliacci.
A carreira de Licio, no entanto, já havia começado antes da sua partida para a Europa. Em 1988, seis anos após ter iniciado os seus estudos, estreou no Municipal do Rio como Alcindoro em La Bohème. No mês seguinte, sob a regência de Roberto Duarte, foi Don Basilio em O Barbeiro de Sevilha, “que foi um estrondo. Eu tenho uma crítica da Tribuna da Imprensa, da Maria Teresa dal Moro, que disse que eu botei abaixo o Theatro Municipal”. Até hoje Licio se lembra da reação do público quando ele terminou de cantar a ária da calúnia.
Licio estreou no Theatro Municipal de São Paulo em 1989 como Roucher, em Andrea Chénier. Em 1991 foi Papageno na versão em português de A Flauta Mágica, de Mozart, com o teatro de bonecos do grupo Giramundo. A partir daí, seguiram-se diversas apresentações em papéis importantes.
Durante o período em que esteve na Europa, Licio não deixou de vir ao Brasil para participar de diversas produções no Rio e em São Paulo. São desse período Les Contes de Hoffmann nos dois teatros de São Paulo: no São Pedro (1999) e no Municipal (2003, que lhe rendeu o Prêmio Carlos Gomes daquele ano). Ainda: Roméo et Juliette (TMSP, 2004), Lohengrin (TMSP, 2004) e Fidelio em forma de concerto com a Osesp (2005).
“A partir de 2005 eu comecei a afrontar os papéis de barítono dramático. Porque até então eu procurava fazer uma carreira nos papéis de Mozart, Rossini, Gounod…”. Foi quando entraram em seu repertório Gérard, da ópera Andrea Chénier, Iago, em Otello, Barnaba, em La Gioconda, e Falstaff. “O Iago, em especial, é um papel que soma as nuances do cantor camerista (…) com o drama do ‘Credo’ e da cena do dueto com o Otello”, explica Licio.
“Se eu devo a alguém a transição para esse repertório, é para o [maestro Luiz Fernando] Malheiro, porque foi o Malheiro que me colocou nesse repertório de baixo-barítono e de barítono dramático, quando ele me chamou para fazer ‘Os Contos de Hoffmann’ em 1999 no Theatro São Pedro”.
Em 2002, em Manaus, mais uma vez sob a regência de Malheiro, Licio interpretou Wotan pela primeira vez. Foi na ópera A Valquíria, como parte do Festival Amazonas de Ópera. Nos anos seguintes, também em Manaus, vieram Siegfried, O Crepúsculo dos Deuses e O Ouro do Reno, até culminar, em 2006, na tetralogia wagneriana completa. Foi quando Licio Bruno se tornou o primeiro (e, até agora, o único) barítono brasileiro a interpretar Wotan em um ciclo completo de O Anel do Nibelungo.
Recentemente, Licio tem sido presença constante nos Municipais de São Paulo e do Rio de Janeiro. No teatro carioca, participou de duas produções que mereceram destaque em Notas Musicais, ambas com direção musical de Luiz Fernando Malheiro e direção cênica de André Heller-Lopes: La Traviata (leia as críticas de Leonardo Marques e Fabiana Crepaldi) e Rusalka (leia as críticas de Leonardo Marques e Fabiana Crepaldi), respectivamente em 2023 e 2024. Em São Paulo, em 2023, foi o Cacique na estreia da atual produção de Il Guarany, e Jack Rance em La Fancioulla del West, na qual contracenou com Martina Serafin. No ano passado, deu vida a Felisberto Caldeira Brant em O Contractador de Diamantes, a ópera da juventude de Francisco Mignone que retornava ao teatro após pouco mais de um século.


Diretor cênico e produtor
“Uma coisa é muito especial para mim (…): a ópera brasileira tem ocupado um espaço cada vez maior na minha vida”. E isso não apenas como cantor, mas também como produtor e diretor cênico. Após ter produzido, ao lado de sua esposa, a cantora e produtora Adalgisa Rosa, O Caixeiro da Taverna e Serafim e o Lugar Onde Não se Morre, ambas de Guilherme Bernstein, neste ano será a vez de produzir Peão Mansador, de Elomar Figueira.
Em 2015, Licio e Adalgisa fundaram em Vila Velha, no Espírito Santo, onde residem, o Coletivo das Artes. Trata-se de um espaço cultural que envolve a formação de jovens — tanto por meio do Opera Studio quanto por programas de pós-graduação e formação artística —, a produção de óperas brasileiras como as acima citadas e, ainda, memória e acervo de figurinos e documentos históricos.
Educador
Além do canto, da direção cênica e da produção, o ensino do canto lírico também tem sido uma importante atividade de Licio. Dentre os seus alunos, tem se destacado a soprano Lorena Pires, vencedora do Concurso Joaquina Lapinha em 2023 e que, em 2024, interpretou Anna, em Nabucco, no TMSP, e Lauretta, em Gianni Schicchi (Il Trittico) apresentado no TMRJ — recebendo elogios na crítica de Leonardo Marques. Atualmente, Lorena está na Opéra de Paris, participando de um programa de formação proporcionado por uma parceria França-Brasil.
Licio lembra, também, do tenor Samuel Wallace, segundo lugar masculino no Concurso Joaquina Lapinha de 2024.
Desde 2020, Licio é professor na Faculdade de Música do Espírito Santo (FAMES).
No masterclass, sem perder a seriedade, Licio esbanjou simpatia e delicadeza. “É como um fruto bonito que está na árvore, mas ainda não está pronto para ser colhido”, explicou a uma cantora que interpretou uma ária para a qual ela ainda não tinha maturidade.
Sempre perguntava aos jovens cantores se sabiam o que estavam cantando, o que a ária estava dizendo, qual era a situação do personagem. “Você tem namorada? Já teve?”, perguntou ao jovem intérprete de Alfredo (La Traviata). “Quando você está sofrendo, qual ponto dói? É daí que tem que vir o canto”, ensinou para outro. E, desse modo, Licio partiu da interpretação, da colocação da voz e da dicção para resolver, de forma quase natural, problemas de respiração e afinação. Mesmo dispondo de pouco tempo para cada cantor, conseguiu operar mudanças perfeitamente perceptíveis. Na sexta-feira, no Teatro Sérgio Cardoso, o público poderá conferir o resultado desse trabalho que, certamente, representou um passo na vida artística desses jovens cantores.
O sarau musical

No sarau musical, além das nove árias preparadas na masterclass, também seremos brindados com piano solo e poesia. Tudo isso porque a noite também marcará a inauguração do piano que pertenceu a Edith Lúcia Miklos Vogel, falecida em julho do ano passado. Mais que assídua frequentadora de concertos e óperas, Edith era uma verdadeira melômana, e isso já veio no DNA: segundo ela contava, seu pai, também melômano, ouvia música praticamente o dia inteiro e possuía uma coleção com cerca de vinte mil LPs. Amante e incentivadora da ópera, Edith era membro do conselho de amigos da Cia Ópera São Paulo, e os seus filhos tiveram a sensibilidade de doar o seu piano ao Teatro Sérgio Cardoso, que abriga boa parte dos eventos da Cia Ópera São Paulo.
A noite terá, pois, todos os ingredientes para ser uma noite de música, poesia, homenagens e emoção.

O sarau ocorrerá amanhã (sexta-feira, 14 de fevereiro), às 19h, no Teatro Sérgio Cardoso (Sala Paschoal Carlos Magno). A entrada é gratuita e os ingressos podem ser retirados meia hora antes.
Foto principal: divulgação.

Cofundadora do site Notas Musicais, também colabora com a revista eletrônica mexicana Pro Ópera e com o site italiano L’Ape Musicale. Fez parte do júri das edições 2020 e 2022 a 2024 do Concurso Brasileiro de Canto ‘Maria Callas’ e é membro do conselho de Amigos da Cia. Ópera São Paulo. Em 2017, fez a tradução, para o português, do libreto da ópera Tres Sombreros de Copa, de Ricardo Llorca, para a estreia mundial da obra, em São Paulo. Estudou canto durante vários anos e tem se dedicado ao estudo da história da ópera e do canto lírico.
Bela introdução a Lício Bruno, barítono excelente. Eu sou particularmente fã deste naipe, negligenciado a coadjuvante na ópera da Europa Ocidental. Assisti ao ciclo do Anel em Manaus: Lício se destacava tanto vocal quanto cenicamente, voz potente num corpo que exala poder, tal qual se espera de Wotan.
Irei ao Sarau, será um momento ímpar para a cena operística brasileira este ano.