Nos dias 20 e 21 de setembro, Magdalena Kožená e a Venice Baroque Orchestra trouxeram a heroína trágica da ópera Alcina, de Händel, ao palco da Sala São Paulo
Diz a sabedoria popular que o feitiço sempre pode se voltar contra o feiticeiro. Foi o que aconteceu com Alcina, a feiticeira protagonista da ópera homônima de Händel, a terceira e última do compositor baseada em temas de Orlando Furioso, de Ariosto. Verdadeira obra-prima, teve o libreto adaptado de um libreto italiano, de autor desconhecido, musicado por Riccardo Broschi em Roma, em 1728. Ironicamente, Broschi era irmão do famoso castrato Farinelli, que na época da estreia de Alcina, em 1735, era a grande estrela da Opera of the Nobility, a concorrente da companhia de Händel, instalada no Covent.
Alcina, que dura aproximadamente três horas e meia, conta com recitativos bastante compactos, nada menos que 28 árias, um trio, quatro coros e três balés. O maior número de árias (o que não implica maior duração) fica com Ruggiero, o guerreiro encantado por Alcina: ele canta oito árias, incluindo cavatinas (geralmente mais curtas, quando o cantor permanece no palco, em vez de sair ao término de sua ária). Depois vem Alcina, com o único recitativo acompanhado da ópera e seis árias, todas literalmente encantadoras, densas musical e dramaticamente. Das seis árias, uma, conforme já observamos, é parte de uma cena completa (recitativo acompanhado e ária). Quanto à forma, quatro são árias da capo, forma predominante ao longo da ópera, quando, ao término da segunda parte (B), há a indicação de voltar ao início e repetir a primeira parte (A), com ornamentação a ser acrescentada pelo intérprete; e duas são dal segno – ao término da parte B, a indicação não é de que se retorne ao início, mas para um ponto assinalado (geralmente não muito distante do início).
Segundo Winton Dean, autor incontornável quando o assunto é ópera de Händel, “Alcina is the most fully developed of Handel’s sorceresses and one of opera’s great tragic heroines. Her character, drawn with marvellous subtlety, develops radically during the course of the action”. E foi Alcina, essa grande heroína trágica, com as suas seis árias, com seus dramas, com a sua evolução psicológica, que a mezzosoprano tcheca Magdalena Kozená, acompanhada pela Venice Baroque Orchestra (VBO), trouxe ao palco da Sala São Paulo nos dias 20 e 21 de setembro, pela temporada 2022 da Cultura Artística.
Passemos, brevemente, pelas árias.
Do deserto, Alcina fez sua ilha encantada, uma ilha de ilusões, onde vivia com o cavaleiro Ruggiero, que havia encantado. Seus amantes anteriores? Ela os transforma em rochas, feras, árvores… Bradamante, a esposa de Ruggiero (ou noiva, isso não fica claro), disfarçada como homem, e Melisso, que portava um anel encantado, foram resgatá-lo. Em sua primeira ária, Dì, cor mio, quanto t’amai, Alcina pede a Ruggiero que mostre a ilha aos visitantes (“mostra il bosco, il fonte, il rio”), onde suspiram e vivem os seus amores. Para Alcina, os encantos da ilha se confundem com o amor recíproco que ela e Ruggiero vivem.
Morgana, a irmã de Alcina, se apaixona por Ricciardo, que não é ninguém menos que Bradamante disfarçada de homem, o que desperta os ciúmes de Oronte, general de Alcina. A estratégia de Oronte é transformar Ruggiero em seu aliado. Para isso, mente: diz-lhe que Alcina estava apaixonada por Ricciardo. Ruggiero se zanga com Alcina, que se lamenta em sua segunda ária, Sì, son quella, onde diz que ainda é a mesma, apesar de, para ele, não ser mais bela nem amada. E conclui: se você não quer mais me amar, pelo menos não me odeie. O ambiente é de intimidade, marcada pelo acompanhamento do violoncelo, e ansiedade, denunciando a vulnerabilidade de Alcina.
No segundo ato, Melisso, também ele feiticeiro, coloca o anel encantado em Ruggiero e faz com que o feitiço se quebre. Ruggiero se lembra de Bradamante e deixa de amar Alcina – mas, claro, nada diz a ela, apenas pede permissão para pegar armas e ir caçar. Ela consente, mas implorando que volte logo. Após a partida de Ruggiero, Oronte informa Alcina de que os visitantes e Ruggiero estavam planejando fuga. Ela, então, entende a razão das armas e canta a sua grande ária, seu grande lamento Ah, mio cor! Schernito sei!, no qual diz que o seu coração foi insultado, invoca os deuses do amor, chama Ruggiero de traidor (“Traditore! T’amo tanto”) e pergunta como pôde deixá-la só, em pranto, e questiona: “Perché”?
Na segunda parte da ária, que contrasta fortemente com a primeira, Alcina tenta se reerguer, lembrando que é rainha, mas é em vão, e ela volta à primeira parte, mais sentida, mais lamentosa. Uma grande ária. Grande em todos os sentidos: duração, intensidade e qualidade musical. Para Winton Dean, “‘Ah! mio cor’ is a superb depiction of a woman torn between grief, love, injured pride and vengeful fury, all within the confines of a da capo/dal segno aria”. No caso, é uma ária dal segno. Na primeira parte, nas linhas dos violinos e das violas, cada um dos três tempos do compasso é dividido entre uma nota e uma pausa, dando a ideia de pulsação, de suspense, de tragédia. Enquanto isso, o canto é constituído por pequenas frases, entre os suspiros de Alcina, mas frases com canto legato. Um exemplo da genialidade de Händel.
Ruggiero despede-se dos verdes prados da ilha encantada; Alcina vê os seus poderes se esvaindo. Tem início a única cena da ópera, com recitativo acompanhado e ária. E que cena! “Ah, Ruggiero crudel, tu no mi amasti!”, brada Alcina no recitativo, e invoca os espíritos que habitam o Aqueronte. Na ária, Ombre pallide, pergunta mais uma vez: “Perché“?
Se alguém ainda poderia ter dúvidas quanto à vulnerabilidade de Alcina, de quanto era ela a prisioneira do próprio feitiço, a ária seguinte, já parte do terceiro e último ato, é esclarecedora: em Ma quando tornerai, Alcina diz a Ruggiero para esperar dela apenas rigor e crueldade quando voltar – mas só quando voltar, porque, como ela o havia amado, no momento ainda tinha piedade dele.
A última ária (a outra dal segno), Mi restano le lagrime, que Alcina canta quando não lhe resta nada além de suas lágrimas, é uma bela siciliana – um tipo de ária muito utilizado por Händel, com um ritmo 12/8 que até faz lembrar uma barcarolle, com estilo pastoral, com pouco contraste entre as duas partes. Alcina deseja transformar a si mesma em uma pedra para pôr fim ao seu sofrimento. Ela aproxima-se do seu fim.
Alcina começa, pois, sedutora, radiante, expansiva, orgulhosa da sua ilha e do seu amor recíproco, e termina sem poderes, sem amor, introspectiva, apenas com a sua dor e as suas lágrimas. No trajeto, passa por uma ária monumental e por uma forte cena.
Magdalena Kožená é, sem dúvida, uma grande cantora e conta com boa experiência no repertório barroco. Com a Venice Baroque Orchestra, já gravou três discos dedicados a Händel, Vivaldi e Monteverdi. Seu CD com obras de Händel, de 2007, aliás, tem como título e ária inicial, Ah, mio cor! (que pode ser ouvida em serviços de streaming, como o Spotify). Ela nunca viveu Alcina no palco, no entanto: sua estreia está programada para acontecer em fevereiro de 2023, em Paris, com Marc Minkowski e Les Musiciens du Louvre. Na turnê latino-americana, Kožená está trazendo ao público de São Paulo, Bogotá, Santiago e Buenos Aires uma leitura dramática da sua futura personagem. Leitura no sentido literal do termo: Kožená leu o tempo todo, sobretudo nos retornos da capo / dal segno, indicando que ainda não havia assimilado todas as ornamentações. Na segunda noite paulistana, a primeira coisa que a diva fez, ao entrar, foi se atrapalhar com a estante, que estava um pouco baixa para ela. A leitura foi, realmente, dramática: Kožená sabe interpretar as suas árias, tem consistência dramática.
Em todas as árias, a sua voz foi limpa, precisa, segura, inclusive na região mais aguda, que chega até um lá. Em raros momentos, mas apenas na primeira noite, os agudos soaram um pouco abertos. Sem usar voz de peito, Kožená foi econômica na sonoridade dos graves. Dona de sólida técnica, seus pianos, seu legato e suas coloraturas chamaram a atenção.
Nos dois dias, a primeira ária, Di, cor mio, quanto t’amai, foi a que pareceu menos resolvida para Kozená. É, conforme já exposto, a ária mais radiante e sensual, quando Alcina ainda é uma rainha vivendo o seu amor recíproco ilusório. Se é verdade que Kožená cantou muito bem esta sua ária inicial, com bela ornamentação na repetição da capo, ainda estava longe de incorporar Alcina.
A interpretação da mezzosoprano tornou-se mais convincente na segunda ária, Si, son quella, quando contou com o violoncelo de Irene Liebal, uma das grandes estrelas da noite. Foi, contudo, em “Ah, mio cor!” que Alcina pareceu, realmente, chegar à Sala São Paulo, principalmente na segunda noite, quando a personagem começou a se construir melhor dentro da intérprete. Musicalmente, foi o ponto alto. Variações de dinâmica por parte de Kožená e da VBO somaram-se às variações harmônicas da peça, levando a um resultado rico musical e teatralmente. Os belos pianos de Kožená materializaram a dor de Alcina. A opção por utilizar mais os graves nas variações da repetição dal segno foi, em geral, interessante, acentuando a dor da personagem, trazendo à música as trevas que começavam a envolvê-la. Não obteve tanto êxito, no entanto, ao dar um salto descendente de duas oitavas ao cantar “sola”, o que a levou até um fá grave, que ela fez com uma sonoridade um tanto comprometida.
Vigor, coloratura e belo legato combinado com precisos pianos marcaram, respectivamente, Ah, Ruggiero crudel, tu no mi amasti! / Ombre pallide; Ma quando tornerai; e a siciliana Mi restano le lagrime.
Em um programa muito bem construído, as árias de Alcina foram intercaladas por peças instrumentais, como o Concerto para Flauta Doce Soprano, Rv. 146, de Vivaldi, que recebeu o nome de “Il Gardellino”. No solo de flauta, brilhou a flautista e violoncelista Irene Liebau. Outro concerto de Vivaldi que enriqueceu a noite foi o virtuosístico Rv. 212a, para violino, que teve como solista o spalla Gianpiero Zanocco. Foram os momentos de maior entusiasmo por parte do público.
Nas duas noites, Kožená e a VBO deram dois extras. O primeiro foi Solo quella guancia bella, de Vivaldi, que gravaram juntos em 2009, no disco com árias do compositor. O grand finale veio com a popular Lascia ch’io pianga, da ópera Rinaldo, que cantora e orquestra também gravaram, em 2007, no CD dedicado a Händel. Além da bela e cativante melodia, Lascia ch’io pianga contou com uma interpretação sensível, inspirada, e foi o momento em que Kožená mais se entregou ao público: foi a única ária que cantou de cor, na qual interagiu com seus atentos ouvintes, e não com a partitura, foi o único momento em que saiu de trás da dura estante de madeira.
Pena que boa parte do público já havia saído antes dos extras e perdeu essa inspirada Lascia ch’io pianga. E a fuga não foi à toa: os concertos da Cultura Artística começam às 21h. Se isso, durante a semana, já é por si só um desestímulo para ir, ou um estímulo para sair antes do término (como fazem muitos assinantes), a situação é agravada pelo entorno da Sala São Paulo, que além de perigoso, violento, está com várias vias fechadas em razão de obras, dificultando ainda mais a saída. Um concerto rico, como esse, acaba quase às 23:30h.
Fazendo um balanço geral, é bem verdade que a personagem não está pronta: Kožená ainda não é Alcina. Provavelmente, ao fim da temporada, em Buenos Aires, estará mais à vontade, menos presa à leitura. Certamente, em fevereiro encarnará a sua Alcina em grande estilo. Isso posto, foi um concerto de altíssimo nível, um dos pontos altos da temporada paulistana em 2022: uma orquestra barroca de grande qualidade, que tem como membros excelentes solistas, e uma ótima cantora, que além de ter uma técnica sólida e boa dicção, canta bem, é sensível, tem profundidade e valoriza a interpretação. Um espetáculo lírico de grande requinte. Em São Paulo, somos gratos à Cultura Artística por nos proporcionar concertos e recitais de música barroca, bem como momentos de deleite lírico, coisas que simplesmente não existiriam sem a sua valorosa temporada de concertos.
Para encerrar, gostaria de convidar os leitores, tenham eles visto ou não o concerto, a assistir à ópera Alcina. Recomendo a belíssima versão filmada em 2011, na ópera de Viena, com a inigualável Anja Harteros no papel-título, e com Minkowski e Les Musiciens du Louvre (que, conforme já informamos, também farão parte da Alcina de Kožená). O vídeo está disponível, legendado, na Medici.tv e no canal do Euro Arts no YouTube.
Cofundadora do site Notas Musicais, também colabora com a revista eletrônica mexicana Pro Ópera e com o site italiano L’Ape Musicale. Fez parte do júri das edições 2020 e 2022 a 2024 do Concurso Brasileiro de Canto ‘Maria Callas’ e é membro do conselho de Amigos da Cia. Ópera São Paulo. Em 2017, fez a tradução, para o português, do libreto da ópera Tres Sombreros de Copa, de Ricardo Llorca, para a estreia mundial da obra, em São Paulo. Estudou canto durante vários anos e tem se dedicado ao estudo da história da ópera e do canto lírico.