Confesse, caro leitor: todo mundo, inclusive você, já caiu em alguma armadilha para turista. Seja a fitinha que amarraram no seu braço e que depois acabou custando caro, seja o prato com gosto de comida requentada no micro-ondas que você comeu naquele restaurante de frente para a praça mais bonita da cidade estrangeira, é normal entrar em alguma furada. E nem eles, os compositores, se livravam desse tipo de cilada. Quando o norte-americano Aaron Copland (1900-1990) esteve no Rio de Janeiro em 1947, como integrante de uma missão governamental, se decepcionou com a qualidade dos espetáculos de samba aos quais assistiu: “o samba em sua versão ‘Broadway’ está exercendo uma influência destrutiva nos compositores do Rio”, escreveu ele. É significativo notar que anos antes, em 1942, os estúdios de Walt Disney haviam introduzido um novo personagem ao público: um papagaio sambista chamado Zé Carioca, amigo do Pato Donald e que estreara em um filme com o sugestivo título “Saludos Amigos”, cujo cartaz de divulgação trazia a frase “apresentando Joe Carioca”.
Copland, na realidade, sentira falta do samba que ouviu em uma viagem anterior, em 1941, na qual foi ciceroneado por ninguém menos que Heitor Villa-Lobos, o mais famoso compositor brasileiro e profundo conhecedor das noites cariocas. Villa, um sujeito de personalidade expansiva, colocou o gringo em seu carro e o levou até a Mangueira, onde ambos foram recebidos pelo imenso e genial Cartola. Copland ficou tão encantado com a experiência que em seus escritos podemos ler que Villa-Lobos cuidou para que ele ouvisse “the real thing”, algo como a “experiência autêntica”, a cultura raiz: “he took me to an escola de samba” (ele me levou até uma escola de samba – assim mesmo, em português). O fato é que nessas viagens Copland passou por Rio, São Paulo, Belém, Porto Alegre, Salvador, Recife e Fortaleza. Conheceu a música de Camargo Guarnieri, o som do berimbau, ouviu Dorival Caymmi, assistiu a apresentações de frevo. Se tivesse passado por Vitória, certamente teria provado a nossa moqueca – o homem era entusiasta das culturas locais.
Mergulhado nessas influências culturais, Copland começou a escrever, ainda no Rio de Janeiro em 1947, o seu Concerto para Clarineta. A obra foi encomendada por Benny Goodman (1909-1986), um dos maiores expoentes do jazz norte-americano. E será essa composição uma das atrações que serão apresentadas pela Orquestra Camerata Sesi nesta sexta-feira (11/04), em um programa que também trará composições de Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788) e Ernest Bloch (1880-1959). O solista será o clarinetista Cristiano Costa, integrante da Orquestra Sinfônica do Estado do Espírito Santo – OSES, sob a regência do maestro Isaac Gonçalves, titular da Camerata. Ouvimos os dois para trazer algumas das informações mais interessantes acerca do repertório que será executado.
Inicialmente, abordamos com o clarinetista como ele havia encarado o convite para interpretar o concerto citado:
“Fiquei muito entusiasmado. Certamente, é uma daquelas oportunidades raras que devemos agarrar com máxima dedicação. O concerto de Copland está certamente entre os mais belos e difíceis já escritos para o instrumento”.
E quais pontos poderiam ser destacados nesta obra?
“A começar, a partitura demonstra uma estrutura bastante incomum quando comparada a de outros concertos, que tendem a ter três movimentos separados, com aspectos contrastantes. Na obra de Copland, temos uma estrutura inteira, sem divisão de movimentos, porém, internamente, temos duas partes contrastantes, unidas por uma cadência solo extremamente desafiadora. A primeira parte, lenta e bastante lírica, explora os timbres suaves da clarineta, com acompanhamento genial e suave das cordas e da harpa.
Segue-se então a cadência que dura cerca de dois minutos e meio, onde o virtuosismo técnico do solista, em meio as influências jazzísticas, são o grande destaque. Emendada ao final da cadência, temos a terceira parte, onde toda a modernidade e genialidade da escrita de Copland se sobressaem, com destaque para o piano, que toca alguns trechos em repetição à clarineta. Vários temas são apresentados, de diversas formas, com o jazz sempre presente. E, aliado ao jazz, temos mesmo uma melodia brasileira, com características muito próximas às do frevo e das músicas juninas. Como sabemos, Copland visitou o Rio de Janeiro e o Recife enquanto ainda estava escrevendo o concerto”.
Qual o papel de Benny Goodman, responsável por encomendar a obra?
“Benny Goodman, ‘o rei do swing’, pediu expressamente para que a obra fosse escrita como uma peça de concerto, isto é, uma obra erudita. Copland a elaborou desta forma, embora empregando aspectos da música popular americana. Temos então um concerto complexo em estrutura, dificuldade técnica e ritmos. Porém, Copland consegue transformar toda essa complexidade e dificuldade em uma obra de fácil acesso ao público. Dizem que o bom músico é aquele que consegue passar tranquilidade ao ouvinte em meio às dificuldades. Podemos dizer que isto também se aplica aos bons compositores”.
Quanto às demais obras da noite, fizemos os seguintes questionamentos ao maestro:
Essa apresentação da Camerata Sesi tem um título interessante: de Bach à Bloch. Além dessa semelhança entre os nomes, quais seriam os principais elos entre os dois compositores?
“O título ‘De Bach a Bloch’ instiga a busca por conexões mais profundas, além da sonoridade dos nomes. Apesar de separados por quase dois séculos e pertencentes a contextos históricos e estéticos muito diferentes, Carl Philipp Emanuel Bach e Ernest Bloch compartilham alguns elos significativos: a expressividade e a espiritualidade musical, uma vez que C.P.E. Bach foi um dos principais representantes do ‘Sturm und Drang’, movimento artístico que valorizava as emoções intensas, os contrastes e a expressão individual, já em uma ruptura com a rigidez barroca e a busca por um novo ideal de subjetividade, ao passo que Bloch, por sua vez, foi intensamente ligado a uma dimensão espiritual em sua música, especialmente nas obras de inspiração judaica.
Em ambos os compositores, percebemos uma busca pela profundidade expressiva — seja ela emocional ou espiritual — que ultrapassa os limites formais da sua época. Ademais, Bach foi um inovador, uma ponte entre o barroco de seu pai, Johann Sebastian Bach, e o classicismo de Haydn e Mozart. Suas sonatas e sinfonias experimentam formas, articulações e dinâmicas que influenciaram toda uma geração de compositores. Da mesma forma, Bloch pode ser visto como um compositor de transição. Embora ativo no século XX, não se enquadrava plenamente nem nas vanguardas modernas, nem no romantismo tardio. Sua linguagem oscilava entre o tonal e o modal, entre o arcaico e o contemporâneo.
Ele criava pontes entre o antigo e o novo, assim como C.P.E. Bach em seu tempo. Por fim, vale dizer que os dois compositores se destacaram por uma escrita instrumental densa, carregada em emoções, e estilisticamente se mantiveram independentes. C.P.E. Bach não hesitava em contrastar afetos extremos e usar harmonias inesperadas. Bloch, por sua vez, recusou-se a seguir as tendências serialistas ou impressionistas com total adesão, preferindo uma linguagem pessoal profundamente ligada à identidade cultural e à espiritualidade. Ou seja: nenhum dos dois seguia os modismos ou as convenções formais de suas épocas”.
A Camerata tem feito um trabalho muito bem sucedido no repertório mais popular. Sabemos, no entanto, que alguns espectadores ainda têm certo receio de comparecer aos concertos cujo repertório é, digamos, mais clássico. Enquanto maestro, o que você gostaria de dizer para esses espectadores?
“Sabemos que o repertório mais popular tem aproximado muita gente, contudo, quando o programa é mais “clássico”, algumas pessoas ainda hesitam. Acham que não vão entender, ou que aquilo não é pra elas, mas eu quero dizer o seguinte: essa música também é sua! Ela fala de emoções humanas — da alegria, da dor, da fé, da dúvida, da força e da fragilidade. A diferença é que ela é feita com mais profundidade, com tempo, com silêncio. E talvez seja justamente por isso que ela assuste um pouco — porque ela exige uma escuta mais atenta. Mas, quando a gente se permite, a experiência é poderosa. Você não precisa entender tudo. Não precisa saber o nome das peças ou dos compositores: só precisa estar presente. E deixar a música fazer o trabalho dela. Ela sempre encontra um caminho!”
PROGRAMA
Orquestra Camerata Sesi
Entre Séculos: de Bach à Bloch
Isaac Gonçalves, regência
Cristiano Costa, clarineta
Carl Philipp Emanuel Bach
Sinfonia em Si menor, H.661 / Wq. 182/5
Aaron Copland
Concerto para Clarineta, Cordas, Harpa e Piano
Ernest Bloch
Concerto Grosso nº 1
SERVIÇO
Quando: 11 de abril, sexta-feira, às 19:30h
Onde: Teatro do Sesi (Rua Tupinambás, 240, Jardim da Penha, Vitória/ES)
Ingressos: R$ 40,00 inteira / R$ 20,00 meia / R$ 20,00 meia solidária > itens para arrecadação: 1 galão de 5L de água sanitária, ou Kit de 10 frascos de detergente, ou uma caixa de sabão em pó, ou 1 galão de 5L de desinfetante
Classificação: livre
Maiores informações e venda de ingressos: https://sesies.com.br/cultura/
Foto: Thiago Guimarães.

Colaborador do site Movimento.com e de A Gazeta. Frequentador assíduo de espetáculos de música clássica e ópera há mais de 20 anos. Graduado em Odontologia e Direito. Delegado de polícia e pai de gêmeos.
Mais um excelente texto de Érico Mangaravite.
Parabéns à Camerata e sucesso nas apresentações.