“A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimários. Há coros numerosos, muitos bailados, e a orquestração é excelente…”.
Esta metáfora um tanto cética, colocada por Machado de Assis nos lábios de um velho e desiludido personagem – por acaso, um tenor desempregado – de seu delicioso romance Don Casmurro, além de servir às intenções literárias do maior de nossos escritores de novelas psicológicas, expressa também, com muita propriedade, o padrão de associação imposto pelo romantismo entre tipos de personagens e registros vocais na ópera ocidental do século XIX.
A classificação definitiva das vozes para o canto foi estabelecida quando o professor de canto e laringologista Manoel Garcia Jr. publicou, em 1847, seu Traité Complet de L’Art du Chant, propondo a divisão em seis grandes grupos, três femininos e três masculinos, que são, indo do mais agudo para o mais grave: soprano, mezzo-soprano e contralto; tenor, barítono e baixo.
Em finais da década de 1820, quando o romantismo se consolida nos palcos líricos italianos e franceses, e matar ou morrer por amor em cena aberta ou na coxia entra na moda, o par romântico, na maioria esmagadora das óperas, passa a ser constituído pelo soprano e pelo tenor. Hoje, fica difícil imaginar que nem sempre foi assim.
Durante todo o barroco e também no classicismo, períodos que antecedem o romantismo, os grandes astros do palco lírico eram os castrati, cantores masculinos que, na infância, haviam sofrido uma intervenção cirúrgica para atrofiar ou remover os testículos. A castração impedia a produção de testosterona, hormônio ao qual se deve o crescimento da laringe. Como resultado, a voz não “virava” na puberdade, e o castrado – que podia ser sopranista ou contraltista, conforme seu timbre fosse mais agudo ou mais grave – mantinha por toda vida uma voz infantil dentro de um corpo masculino imberbe. A fantasia do barroco usou este tipo de voz incomum para representar deuses do Olimpo ou grandes personagens históricos, diferentes dos mortais comuns, protagonistas centrais de amores divinos, feitos memoráveis e nobres atitudes. Enquanto isso, um casal romântico de jovens pastores poderia perfeitamente ser representado por duas mulheres, ao mesmo tempo em que tenores faziam o papel de amas-de-leite ou velhas criadas, e sopranos encarnavam valentes generais sem que ninguém do público levantasse sequer uma sobrancelha em desaprovação.
Tudo mudou, porém, com o advento do romantismo. Com a chegada do século XIX, após duzentos anos de hegemonia, os castrati começaram a sair de moda, e a nova burguesia frequentadora dos teatros passou a exigir que o sexo do personagem fosse o mesmo do intérprete. Personagem masculino tinha de cantar com voz de homem. É nesse momento que o tenor, que embora tivesse desfrutado de certa importância nos primórdios da ópera andava meio abandonado nesses dois séculos fazendo apenas papéis secundários, volta com toda a força. Seu timbre claro, mas indiscutivelmente masculino, passa imediatamente a representar o herói, ardente, apaixonado, cheio de juventude, que luta por seu amor e pela justiça. A princípio, à época de Vincenzo Bellini, vamos distinguir apenas dois tipos de tenor: o tenore di forza, de canto forte, robusto, e o tenore di grazia, com um canto mais suave, mais leve, cheio de filigranas.
Com Giuseppe Verdi, cujas exigências teatrais variam de ópera para ópera, exigindo para cada uma delas um determinado timbre de voz com peso e cor exatos para dar verossimilhança ao personagem na enunciação do texto, do discurso musical e também em seu diálogo com a orquestra, é que irão se consolidar os vários subtipos de tenor aos quais nos referimos comumente hoje em dia.
São eles: leggero, (Fenton, em Falstaff); lirico (Alfredo, em La Traviata); lirico-spinto ou lirico-drammatico (Rodolfo, em Luisa Miller); eroico (Manrico, em Il Trovatore) e drammatico (Otello), todos eles personagens verdianos.
Também os sopranos irão se subdividir em vários tipos. Do mais leve para o mais encorpado, o primeiro é o leggero, também conhecido como di coloratura, (Elvira, em I Puritani de Bellini); seguem-se o soprano lírico (Nedda, em Pagliacci de Leoncavallo); lirico-spinto (Elisabetta em Don Carlode Verdi); drammatico d’agilità, voz encorpada mas com agilidade para coloraturas (Norma, de Bellini) e drammatico (Turandot, de Puccini).
Mas como bem lembrou o nosso Machado de Assis no começo destas notas, ópera que é ópera de verdade só funciona se tiver triângulo amoroso. E o terceiro vértice é garantido, normalmente, pelas vozes intermediárias do barítono e do mezzo-soprano, cuja função, num lapso, o nosso cronista carioca atribuiu ao contralto, o mais grave registro feminino, que após Rossini, foi praticamente abandonado pelos compositores do século XIX, depois de seu grande momento de glória no século anterior. Ao mesmo tempo, os compositores começaram a elevar a tonalidade dos sopranos. Neste vácuo, surgiu o mezzo-soprano, capaz de notas de peito graves, mas de certos agudos que às vezes invadem o território dos sopranos dramáticos causando alguma confusão entre aqueles que tentam classificar vozes com extrema precisão. O mezzo-soprano é sempre o rival do soprano na disputa pelo tenor – vide Aida de Verdi e Edgar de Puccini – e seus tons escuros são excelentes para representar a luxúria e a sensualidade, como a cigana Carmen ou a bíblica sedutora Dalila.
O barítono, assim como o mezzo, é um produto típico do século XIX. Ambas as classificações não existiam ainda à época de Rossini, que classificou seu Figaro como baixo, embora esse seja o primeiro grande papel de barítono na história da ópera italiana, embora tivesse já sido precedido por Papageno em A Flauta Mágica de Mozart. Os barítonos, além de rivais históricos dos tenores, encarnam também, personagens mais velhos que os tenores – afinal, sua voz é mais grave, indício seguro de maior idade –, são frequentemente os maridos enganados, e, principalmente em Verdi, os pais dos sopranos sufocantemente defensores da honra das filhas.
Os baixos, talvez pela gravidade com que se expressam, resistiram incólumes através de toda a história da ópera, encarnando sempre personagens de grande autoridade. Anciãos, sacerdotes, líderes religiosos, reis. Mas cuidado: os demônios, tanto na França (Faust, de Gounod) como na Itália (Mefistofele, de Boito) também fazem parte da turma do mais grave dos registros masculinos.
Não é fácil achar a informação correta. Mesmo sendo na
internet precisa analisar antes se está correto. Obrigado e
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