West Side Story (1957) |
Música: Leonard Bernstein Musical em 2 atos de Jerome Robbins, libreto de Arthur Laurents e letras de música de Stephen Sondheim Versão em português de Claudio Botelho e Charles Möeller |
Theatro São Pedro, 6 e 16 de julho |
Direção musical: Claudio Cruz Direção artística: Claudio Botelho e Charles Möeller |
Maria: Giulia Nadruz (06/07) e Carol Botelho (16/07) Tony: Beto Sargentelli Anita: Ingrid Gaigher Riff: Andre Torquato Bernardo: Guilherme Logullo Carmen Dos Baralhos: Raquel Paulin |
Orquestra do Theatro São Pedro |
O Theatro São Pedro abraça pela segunda vez a fábula de Romeu e Julieta em sua temporada 2022. Após montar a ópera italiana Os Capuletos e os Montéquios (1830), de Bellini, agora o amado teatrinho da Barra Funda navega os mares do Norte da América, abordando alguns dos temas mais caros do cancioneiro estadunidense: aqueles oriundos de West Side Story, de dois magos do teatro musical daquele país: Leonard Bernstein (música) e Stephen Sondhein (letras).
O musical é a ópera dos Estados Unidos, já deixava claro um Mickey Rooney ainda rapazote no delicioso Strike up the band (1940). Nem maior, nem menor que a ópera, ele sublinhava. Cada sociedade cria a arte que melhor se amolda aos seus contornos. O musical norte-americano, desde ao menos os anos de 1930, deixa claro esse intuito de criação de uma arte própria, em detrimento da apropriação estrita da arte operística, de origem europeia.
West Side Story (1957) é prova clara disso, apropriando-se da celebérrima história dos amantes de Verona, lida por grandes compositores e libretistas europeus, e enquadrando-a aos parâmetros do musical norte-americano e aos anseios daquela sociedade. A Julieta e o Romeu modernos são os jovens Maria e Tony, a porto-riquenha e o americano descendente de poloneses que habitam uma West Side imediatamente anterior à gentrificação que arrasa aquele subúrbio, transformando-o em habitat de gente (muito) rica e no Lincoln Center – em cujo complexo está instalada, dentre outros, a Metropolitan Opera.
O mote não é mais a rixa familiar entre os Capuletos e os Montéquios, mas aquela que separa latinos e “americanos” – todos, ao fim e ao cabo, uns pobres diabos, tratados como cidadãos de segunda categoria pelo Estado (na figura do policial Krupke), como fica claro na versão cinematográfica do musical de 1961 (de Robert Wise e Jerome Robbins), e claríssimo na sua recente e politizada recriação, outra obra-prima (de Spielberg, 2021).
Está alheia da versão teatral de West Side Story a discussão sobre a conjuntura social, a qual emerge com força no filme de Spielberg, em diálogo estrito com o nosso tempo (nas tomadas de tirar o fôlego do conjunto de apartamentos do West Side já meio demolidos, em meio ao qual os Sharks e os Jets trabalham e dançam, já assombrados pelo outdoor do prospecto do sanitizado bairro grã-fino que ali se originaria). Essa discussão já marca presença na versão cinematográfica original da obra (nas tomadas aéreas das plantas modernas da cidade, em contraposição com o bairro que seria destruído, cujos escombros servem de ponto de encontro às duas gangues rivais, tanto quanto a quadra de basquete ou o bar do Doc).
O musical de Robbins, Sondheim, Bernstein e Laurents, que o Theatro São Pedro ora encena, concentra-se na rixa entre as gangues rivais dos Sharks (porto-riquenhos) e dos Jets (nova-iorquinos) e na história de amor entre Maria e Tony, espinhas dorsais que estruturam a apresentação de algumas das canções que permanecem mais indelevelmente no imaginário ocidental: Maria, America, Tonight, I Feel Pretty e Somewhere.
Os cenários estão escoimados dos escombros presentes na versão cinematográfica da obra (a cenografia é de Rogério Falcão). São compostos das fachadas de quatro prédios de tijolinhos à vista que a parede dos fundos do teatro tão bem mimetiza, os quais se abrem, à direita, para o bar de Doc, e à esquerda, para a loja em que trabalha Maria e para o seu quarto.
Esses praticáveis movem-se com agilidade, sendo recuados e aproximados à medida das necessidades da cena, liberando vez por outra o palco cênico para os diversos números musicais da trama – números que Mariana Barros coreografa com talento, mantendo os contornos originais de um balé repleto de movimentos angulosos e secos, acenando a todo tempo à energia daqueles dois grupos e à violência que eles encetam. Tais números são dançados com maestria por um ensemble ao qual cabe, à moda do teatro musical, tanto os números conjuntos de canto quanto de dança.
Outros cenários silhuetados compõem com o principal e são acionados com justeza, a exemplo da difícil transição entre a cena em que Maria experimenta o figurino com que será apresentada à sociedade nova-iorquina, no ateliê em que trabalha, e a cena do baile – transição que consegue, na versão teatral paulistana, recuperar a magia que alcança na versão cinematográfica original da obra, na qual a etérea Natalie Wood gira até metamorfosear-se em um ser de luz, emergindo, graças à fusão, nas portas do ginásio onde se dá o evento, nos braços do anódino e, mais tarde, vilão inesperado Chino. Uma tabela de basquete e bandeirolas sugerem com assertividade, na versão brasileira do musical, o espaço esportivo convertido em espaço social.
Os figurinos de Fábio Namatame e a iluminação de Paulo Cesar Medeiros compõem para a qualidade do conjunto. Não podemos falar propriamente em criatividade num espetáculo que procura recuperar a montagem histórica de West Side Story – está ali o célebre vestido branco de cinto vermelho de Maria, que dosa um tanto de pureza e uma ponta de coquetismo, bem como o contraponto necessário entre ele e as variadas e vivas cores dos trajes das jovens parceiras dos Sharks e dos Jets (porque, hélas, salvo a protagonista e a sua cunhada Anita, todas as demais mulheres só existem enquanto adendos dos namorados – escapando apenas a andrógina Anibodys, que está num entrelugar, conseguindo uma semi-existência individual devido à sua ambiguidade sexual). O sempre perspicaz Namatame, todavia, precisa ser parabenizado pela pesquisa histórica que realiza e pelo brilho que alcança no conjunto. O mesmo no que concerne a Paulo Cesar Medeiros, pela precisão com que cria, com o uso da iluminação, as atmosferas requeridas pela trama.
A montagem paulistana de West Side Story é protagonizada por Giulia Nadruz (Maria) e Beto Sargentelli (Tony). O casal que faz contraponto aos protagonistas é composto por Ingrid Gaigher (Anita) e Guilherme Logullo (Bernardo) – o irmão porto-riquenho de Maria, líder dos Sharks, e a sua namorada. Já Riff, o líder dos Jets e melhor amigo de Tony, é desempenhado por André Torquato.
A qualidade cênica que se observa no que diz respeito ao ensemble reforça-se no que concerne aos cinco intérpretes dos personagens principais da obra. Estamos aqui diante de artistas com larga experiência em musicais. Gaigher tem timing cômico e esbanja sensualidade, marcando um contraponto com Nadruz tão potente quanto aquele que Logullo marca com Sargentelli – em que estão explícitos tanto o afeto que as/os une quanto aquilo que elas/eles têm de diferente uns dos outros.
Giulia Nadruz e Beto Sargentelli têm grande química e dão com maestria corpo e voz a Maria e a Tony. Sargentelli é um cantor excepcional de musical, que equilibra colorido vocal e interpretação cênica. Sua interpretação de Something’s Coming é antológica. A Maria de Nadruz combina a curiosidade e a fragilidade da mocinha que está descobrindo o mundo e a tenacidade da mulher apaixonada. Sua voz e a de Sargentelli harmonizam-se bem na clássica Tonight, outro ponto alto desta montagem – canção traduzida com tanta beleza por Cláudio Botelho, a exemplo das demais canções da obra, que esquecemos que estamos vendo uma versão em português da canção, e não aquela que aprendemos a amar.
Vi a pré-estreia da montagem e, depois, a récita do dia 16/7, em que a personagem de Maria foi cantada por Carol Botelho, não creditada no programa da peça ou no site do teatro como possível substituta da protagonista, algo que precisa ser corrigido para que se faça justiça ao ótimo trabalho de corpo e voz que ela desempenhou nas récitas que protagonizou. Mignon, Botelho tem, ainda, o physique de rôle de Maria. Torquatto e Logullo também estão bastante bem como os líderes das gangues rivais.
Para além deles e do ensemble, há ainda no programa uma relação heterogênea de adultos, dentre os atores responsáveis pelos papéis de Schrank (Romis Ferreira), pelo policial Krupke (Ubiracy Paraná do Brasil) e por Doc (Fernando Patau), atores que desempenharam com correção os seus papéis. Destaco também o luminoso Henrique Moretzsohn como o mestre de cerimônias do baile, papel que ganhou muita graça nesta versão brasileira.
Fecha o elenco a presença sofisticada de Raquel Paulin como Carmen dos Baralhos. A única voz lírica neste elenco de vozes treinadas no âmbito do teatro musical chama a atenção. A ela cabe uma canção que é originalmente cantada pelo casal Maria e Tony, Somewhere, e ela tira o nosso fôlego. A troca funciona bastante bem na economia cênica, dando um tom de fatalismo para o desfecho do par romântico.
Estamos, enfim, diante de uma obra-prima de musical, cuja montagem é orquestrada pela principal dupla produtora de espetáculos do gênero no Brasil, Claudio Botelho e Charles Möeller. O resultado não poderia ser outro senão este que nos é apresentado, ainda mais contando-se com a rigorosa direção musical do maestro Cláudio Cruz e com a execução da talentosa Orquestra do Theatro São Pedro. Como única ressalva, eu sugeriria que o volume das caixas de som fosse reduzido. O São Pedro nasceu como cine-teatro nos tempos do cinema mudo. Sua acústica é historicamente boa, não carecendo de tanta amplificação.
Pós-doutora em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP; graduada, mestre e doutora em Letras pela UNICAMP. Tem artigos e livros publicados nos âmbitos da literatura, do cinema e do teatro, seus três campos de interesse, procurando refletir sobre a sua interrelação.
Magnífica avaliação . Eu, que já assisti o espetáculo 5 vezes e quero ir à final, concordo plenamente que este é um espetáculo do nível da Broadway novaiorquina, que dificilmente tem 40 membros excelentes no fosso da orquestra.