OS que administra o TMSP expõe as suas deficiências em recente polêmica envolvendo o Coro Lírico Municipal.
Como já é de amplo conhecimento do meio musical brasileiro, há cerca de duas semanas a organização social Sustenidos, que administra o Theatro Municipal de São Paulo, se envolveu em um verdadeiro imbróglio cujo personagem principal é o Coro Lírico Municipal.
Antes de entrar no mérito desse caso (ou descaso) recente, vamos relembrar rapidamente as Organizações Sociais (as chamadas OS) que já passaram pela gestão do TMSP desde que a casa passou a ser administrada por meio dessas instituições. Três delas, incluindo a atual, já deram plantão por lá, e o histórico não é muito animador.
No princípio era a ópera… e desvios financeiros
O Instituto Brasileiro de Gestão Cultural foi a primeira OS selecionada para gerenciar o Municipal paulistano, e foi também a única que soube dar ao teatro um sentido artístico claro e objetivo, e por um motivo simples: o referido Instituto sabia exatamente o que é um teatro de ópera e que tipo de programação este deve ter.
Não por acaso, o diretor artístico do TMSP durante a gestão dessa primeira OS era o maestro John Neschling, um exímio conhecedor de óperas e da arte de regê-las, que acumulava a função de regente titular da Orquestra Sinfônica Municipal (OSM). Um detalhe: além de Neschling, as temporadas líricas da casa contavam com ótimos regentes convidados.
Apesar do sucesso artístico, essa primeira gestão terceirizada acabou se perdendo em meio a desvios financeiros que ganharam bastante repercussão à época. Com o passar do tempo, porém, o caso acabou esfriando, a imprensa de São Paulo deixou para lá, e hoje em dia não se tem mais notícia do andamento das investigações.
Devido às falcatruas descobertas, a secretaria municipal de Cultura interveio na gestão do TMSP e, inicialmente, nomeou o produtor e encenador Cleber Papa e o maestro Roberto Minczuk, respectivamente, como diretor artístico da casa e regente titular da OSM. Esse foi um período de transição, durante o qual caiu de forma bastante acentuada a qualidade das produções líricas do Municipal paulistano. Nesse meio-tempo, a secretaria de Cultura promoveu o distrato com o Instituto Brasileiro de Gestão Cultural, bem como uma seleção pública para escolher um novo administrador para o TMSP.
Programação recheada de penduricalhos
Essa seleção foi vencida pelo Instituto Odeon, que, assim que assumiu, demitiu Cleber Papa. O Odeon sempre deu a impressão de que não sabia o que é e para que serve um teatro de ópera. A OS enrolou (sim, o termo adequado é exatamente esse) um bom tempo para escolher um diretor artístico para o Municipal paulistano e, quando finalmente o fez, indicou Hugo Possolo, um ator sem muita ligação com a vocação precípua do TMSP, que é promover óperas, balés e concertos.
Roberto Minczuk, porém, foi mantido no cargo. O regente praticamente nunca havia trabalhando antes com ópera, e mesmo agora, depois de alguns anos regendo produções líricas, continua dando a impressão de que a ópera passa longe das suas paixões. Um detalhe: desde que Minczuk chegou ao TMSP, as temporadas líricas da casa nunca mais contaram com regentes convidados. Se Neschling não temia comparações, Minczuk parece fugir delas.
Vale dizer que, durante boa parte da “gestão” do Odeon, o Instituto e a secretaria municipal de Cultura (leia-se: André Sturm, o secretário da ocasião) viveram às turras. Resultado: as temporadas de ópera do Theatro Municipal de São Paulo continuaram niveladas por baixo em termos de qualidade artística e, dentro da programação total da casa, perderam relevância. A OS e o seu diretor artístico estavam muito mais preocupados com a elaboração de uma programação “diversificada”, repleta de penduricalhos que pouco ou nada tinham a ver com um teatro de ópera.
No começo de 2020, a secretaria municipal de Cultura, já sob a condução de Alê Youssef (que substituiu Sturm), decidiu rescindir o contrato com o Instituto Odeon depois de um longo processo em que as contas do ano de 2018 foram reprovadas de maneira definitiva. Foi realizado então um novo chamamento público (mais um!), por meio do qual selecionou-se para administrar o TMSP a organização social Sustenidos, que assumiu em maio de 2021, em meio à pandemia de Covid-19.
A troca do Odeon pela Sustenidos, pelo menos até este momento, foi do tipo “seis por meia dúzia”, pois praticamente nada mudou em relação à programação lírica, que continua sendo menor e menos qualificada do que deveria ser no teatro de ópera tido como “o mais rico” do Brasil.
A essa altura, a secretaria de Cultura já havia transferido a função de diretor artístico do TMSP para a Fundação Theatro Municipal, uma fundação pública que, teoricamente, deveria fazer o meio de campo entre a secretaria e a OS da vez, mas que, na prática, obedece cegamente às determinações do governo municipal. A função de direção artística é ocupada atualmente por uma certa Gisa Gabriel, de quem praticamente ninguém no meio lírico nunca ouviu falar. Os penduricalhos de programação e o regente pouco afeito à ópera continuam lá, firmes e fortes.
Orçamento insuficiente
Chegamos então ao episódio citado no primeiro parágrafo deste artigo, no qual a Sustenidos exibiu todo o seu despreparo, a sua falta de transparência e de objetividade na comunicação, o seu desconhecimento sobre as necessidades básicas de um teatro de ópera, além de pura e simples incompetência.
A organização social decidiu adotar duas medidas ao mesmo tempo. A primeira: convocar os integrantes do Coro Lírico Municipal para “provas de reavaliação”, nas quais seriam considerados aptos quem ficasse com média mínima de 7,5 pontos. A segunda: abrir audições para músicos coralistas, “para formação de cadastro para possível aproveitamento em prestação de serviços gerados pela programação artística do Theatro Municipal de São Paulo”.
Da maneira como as duas medidas foram anunciadas, é bastante natural concluir que, juntas, elas só poderiam significar uma coisa: redução de custos. A formação do Coro Lírico Municipal (84 integrantes atualmente) provavelmente seria reduzida, e, quando necessário, profissionais aprovados nas audições seriam contratados temporariamente. Quaisquer outras justificativas que a organização social tenha utilizado para explicar a adoção dessas medidas (como, por exemplo, a “necessidade de realizar uma reavaliação técnica dos integrantes dos Corpos Artísticos”) pareceram apenas marquetagem, uma “capa” bonita para encobrir o verdadeiro objetivo principal: a já mencionada redução de custos.
A repercussão foi grande nas redes sociais e chegou à imprensa. A Folha de São Paulo informou, em matéria do dia 23 de janeiro, que “o teste foi concebido à revelia do regente titular do coro, Mário Zaccaro, que está afastado para tratar uma doença cardíaca”. Boa parte da classe artística se solidarizou com os membros do Coro Lírico. Músicos da OSM afirmaram, com propriedade, que os processos adotados pela Sustenidos tinham por objetivo a “uberização” do TMSP.
À Folha, um funcionário afirmou que “a iniciativa foi tomada para conter despesas e que a Sustenidos não gere bem os recursos”. Outro disse que “os corpos artísticos se incomodam com o investimento em atividades secundárias, tais como as séries ‘Novos Modernistas’ ou ‘Teatro no Theatro’. Na visão do artista, as óperas, os concertos e os balés parecem estar em segundo plano. Segundo ele, a atual programação do Municipal parece a de um circo, e não a de uma casa de ópera”. Essa avaliação, que vem de dentro das paredes do TMSP, apenas confirma que, mesmo depois da substituição do Instituto Odeon pela Sustenidos, os penduricalhos de programação continuam sendo mais importantes para os gestores do que a função precípua da casa.
Em 25 de janeiro, a Folha de São Paulo voltou ao tema, agora citando questionamentos do Balé da Cidade de São Paulo sobre uma “tentativa de esvaziamento e desmonte dos corpos artísticos” do Municipal. Informa a reportagem que o contrato da diretora artística assistente do grupo seria rescindido e que esse cargo seria extinto, sob a justificativa de “uma restruturação de todos os corpos artísticos do Theatro”. A superintendente do TMSP, Andrea Caruso Saturnino, justificou a rescisão “considerando prioridades estratégicas do equipamento (…)”. Essa explicação não diz absolutamente nada, é apenas mais marquetagem, expressada por meio de um palavrório empolado para disfarçar a necessidade de corte de custos.
Estabelecida a celeuma, a Sustenidos decidiu suspender os dois processos, o de reavaliação dos membros do Coro Lírico e o de seleção de cantores para uma espécie de cadastro de reserva. A suspensão ocorreu no mesmo dia da publicação da primeira reportagem da Folha de São Paulo (23/01). Em sua explicação para suspender os processos, a OS informa que irá “focar na negociação com a Fundação Theatro Municipal e Secretaria Municipal de Cultural acerca do necessário ajuste orçamentário, relativo à inflação”.
Como se vê, a própria Sustenidos já reconhecia aqui, ainda que de maneira pouco clara e nada objetiva, que é orçamentário o problema que deu origem às suas ideias “jeniais” em relação ao Coro Lírico. E essa não é a primeira vez que a OS sofre com insuficiência de orçamento: em 2022, o principal motivo que levou ao adiamento da ópera La Fanciulla del West para este ano também foi falta de verba, embora a justificativa oficial, à época, tenha sido de caráter técnico – mais uma marquetagem, pois.
Finalmente, em 25 de janeiro, a Sustenidos publicou uma nota de “Esclarecimento sobre a situação do Theatro Municipal de São Paulo”, por meio da qual procura explicar que a reavaliação dos integrantes do Coro Lírico não estava diretamente ligada à contratação temporária, e afirma que, se houvesse desligamento de profissionais do Coro, seriam realizadas “novas audições para integrantes permanentes do coro (mediante disponibilidade orçamentária)”.
Essa ressalva sobre a necessidade de existência de orçamento apenas ratifica o que já está bastante claro: está faltando verba no TMSP. E por fim, a organização social ofereceu uma explicação plausível para essa falta de orçamento: “A Sustenidos vem sinalizando, desde outubro do ano passado, a previsão de um déficit orçamentário para 2023, decorrente da falta de reajuste nos repasses efetuados pela Fundação Theatro Municipal, cujo valor se mantém linear desde 2021. Ou seja, desde que assumiu a gestão do Complexo Theatro Municipal, a Organização vem recebendo repasses que se demonstraram insuficientes para arcar com os impactos decorrentes da inflação, tais como reajustes salariais previstos por lei somados aos impactos inflacionários em rubricas de fornecedores, terceirizados e concessionárias de energia e água do Complexo Theatro Municipal de São Paulo”.
A Sustenidos afirma ainda que “vem reivindicando o reajuste dos repasses de acordo com índices inflacionários, sem ter sido atendida sequer parcialmente” e que “aguarda um novo posicionamento do poder público com relação à suplementação de recursos para fazer frente ao déficit orçamentário previsto, de forma a recompor minimamente as perdas decorrentes da inflação registrada nos dois últimos anos (10,6% em 2021 e 5,7% em 2022)”. A nota oficial completa pode ser lida aqui.
Ao finalmente reconhecer de forma clara que falta verba, e ao jogar a batata quente nas mãos da Fundação Theatro Municipal (e, por consequência, da secretaria municipal de Cultura), a organização social finalmente fez uma comunicação objetiva e compreensível sobre os problemas que está enfrentando. Será que era tão difícil assim fazer isso desde o começo?
♯Sustenidos♯ desafinados
De toda essa confusão, pode-se tirar com facilidade algumas conclusões:
1- A comunicação da Sustenidos é péssima. A OS apresentou uma explicação convincente para as questões orçamentárias que vem enfrentando somente depois de o caso ganhar grandes proporções, e de receber críticas de todos os lados.
2- Mesmo considerando que o problema orçamentário existe de fato, isso não isenta a Sustenidos de críticas pelas suas decisões questionáveis anteriores em relação ao Coro Lírico Municipal, pois, em um momento de pressão, a organização social optou inicialmente por seguir pelo caminho mais fácil e mais preguiçoso.
3- Ao contrário do que alguns defendem, o modelo de gestão por OS nem sempre é a maravilha que se alardeia – ainda mais quando, entre a OS e a secretaria de Cultura existe uma Fundação que mais atrapalha que ajuda. Esse modelo pode, sim, ser eficiente, mas isso não é uma regra, como bem demonstram as três organizações sociais que já passaram pelo Theatro Municipal de São Paulo: uma era eficiente artisticamente, mas se deixou levar pela tentação de desvios financeiros; outra não sabia para que serve um teatro de ópera e que programação ele deveria ter; e a terceira, tudo indica, não tem voz ativa sobre a escolha de profissionais estratégicos, como o diretor artístico e o regente titular da orquestra.
4- No Theatro Municipal de São Paulo, uma casa em que a música do mais alto nível deveria ser reverenciada, os sustenidos e os bemóis estão desafinados. Há muito tempo.
Foto: Stig de Lavor.
Leonardo Marques nasceu em 1979, é formado em Letras (Português/Italiano e respectivas literaturas) e pós-graduado em Língua Italiana. Participou de cursos particulares sobre ópera e foi colaborador do site Movimento.com entre 2004 e 2021.
Podem acreditar no que escreve o Leonardo Marques. Ele sabe o que diz.
Concordo plenamente com tudo que Leonardo colocou no texto e acrescento:
– A direção geral da Fundação Theatro Municipal foi exercida, desde a posse de Aline Torres na Secretaria de Cultura até 31 de dezembro de 2022, por um auditor do Tribunal de Contas do Município que nunca teve relação nenhuma com produção cultural ou artística, muito menos com ópera ou corpos estáveis. Era apenas um burocrata que também era chefe de gabinete da SMC.
– A direção de formação da Fundação Theatro Municipal (responsável pelos cursos da escola de música e de dança) foi exercida também até 31 de dezembro de 2022 por uma pessoa que nunca teve qualquer contato com arte, formação ou formação artística.
– A diretora artística da Fundação era produtora do Bloco carnavalesco do Baixo Augusta, do Alê Youssef, e foi colocada por ele para exercer funções na Secretaria Municipal de Cultura e posteriormente para ocupar a direção artística da Fundação.
– O modelo de gestão do Theatro Municipal através de OS se mostrou um fiasco gigantesco em todas as tentativas e ainda contou com contrato tampão da Santa Marcelina Cultura.
– A Secretária Aline Torres pretende expandir a contratação de OS para outros equipamentos culturais da cidade, como as Casas de Cultura, mesmo tendo o Theatro Municipal como um grande exemplo de fracasso do modelo.
– Aline Torres também não se manifesta sobre o que está ocorrendo na principal sala de espetáculos da Secretaria de Cultura, como se ela não tivesse nada a ver com isso. Para ela, é muito mais importante participar de eventos que tragam mídia para ela tentar conseguir seguidores no Instagram e dar entrevistas sobre qualquer coisa para todos veículos de imprensa televisiva ou radiofônica que a procuram, bem como fazer sua autopromoção através de eventos bancados pelos cofres públicos, motivo que inclusive motivou uma investigação da Corregedoria Geral do Município, ainda em andamento.
[…] Enquanto o próximo ano não chega, é importante destacar que o 2023 do Municipal paulistano começou com polêmica: ainda em janeiro, a Organização Social de plantão na casa (Sustenidos) anunciou duas medidas ao mesmo tempo: convocar os integrantes do Coro Lírico Municipal para “provas de reavaliação”, e abrir audições para músicos coralistas, “para formação de cadastro para possível aproveitamento em prestação de serviços gerados pela programação artística do Theatro Municipal de São Paulo”. O imbróglio que, no fim das contas, acabou não dando em nada (em mais uma demonstração de como se gasta energia neste país com ideias pouco inteligentes) é analisado neste artigo. […]