2º Encontro de Ópera Brasileira: “O que quer dizer ‘livre’?”

No próximo final de semana (07 e 08 de junho), a Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo, através da APAA (Associação Paulista dos Amigos da Arte), realiza o 2º Encontro de Ópera Brasileira, com direção artística de Paulo Esper, idealizador do Encontro. A sede do evento será a mesma da primeira edição, no ano passado: o Teatro Estadual de Araras. O formato, contudo, será um pouco diferente: se o 1º Encontro teve a apresentação de uma ópera e um recital, mas o foco esteve nos debates, o será focado na reapresentação de duas óperas contemporâneas com a presença dos respectivos compositores e libretistas. Desse modo, além de conhecer as novas composições líricas brasileiras, o público também terá a oportunidade de interagir com os autores. Antes de cada espetáculo, os compositores farão uma breve exposição das suas obras.

Quando o assunto é a encomenda e a composição de novas óperas, Paulo Esper sempre pondera que não basta encomendar e estrear uma ópera, para depois arquivar a partitura: a obra precisa sobreviver, ser levada novamente à cena, passar por outros teatros, por outras cidades. É justamente isso que ele está pondo em prática nesse 2º Encontro de Ópera Brasileira.

Cintia Cunha, Fulvio Sousa e Fernando Portari em Navalha na Carne (foto: Leo Lama)

O Encontro será aberto no sábado, 07 de junho, às 18h, com a apresentação de Navalha na Carne, composta por Leonardo Martinelli a partir do texto de Plínio Marcos (1935-1999), que estaria completando 90 anos. No domingo, no mesmo horário, será a vez de O Menino e a Liberdade, com música de Ronaldo Miranda e libreto de Jorge Coli baseado na crônica homônima de Paulo Bomfim (1926-2019), cujo centenário será celebrado no ano que vem.

Navalha estreou no Theatro Municipal de São Paulo em abril de 2022. O que veremos no sábado em Araras, e posteriormente em São Paulo (na segunda-feira, 09 de junho, às 20h, no Teatro Sérgio Cardoso, com ingressos esgotados), não é uma remontagem, mas a estreia da versão pocket. Com direção do dramaturgo, poeta, diretor, escritor e roteirista (e fotógrafo?) Leo Lama, filho de Plínio Marcos e Walderez de Barros, a versão pocket é para solistas, ator e piano. No palco, estarão Cintia Cunha (Neusa Sueli, soprano), Fulvio Souza (Veludo, barítono), Fernando Portari (tenor, criador do papel de Vado em 2022, em participação especial), Rogério Bandeira (ator) e Karin Uzun ao piano. A apresentação lembra os 90 anos do nascimento de Plínio Marcos.

O Menino subiu ao palco do Theatro São Pedro pela primeira vez em 2013 e, no ano seguinte, retornou ao mesmo teatro. Nesta semana, viajará para Araras após passar por Indaiatuba na sexta-feira, dia 06, e levará consigo a Orquestra Sinfônica de Indaiatuba. A direção musical ficará por conta de Paulo de Paula, a direção cênica é de Caio Bichaff, e a concepção cênica, de Daniel Pereira. No elenco, Benjamin Brasílio (menino), Gabriela Bueno (mãe, mezzosoprano), Mauricio Etchebehere (rapaz, tenor), Calebe Faria (chofer, barítono), Cristiane Mesquita (moça, soprano), Marcello Mesquita (senhor distinto, tenor).    

Elenco de O Menino e a Liberdade

O que quer dizer ‘livre’?

Em 1957, período em que o Brasil era uma democracia, Paulo Bomfim publicou, nos Diários Associados, a crônica O Menino e a Liberdade. Nela, por meio da espontaneidade de uma criança que estava aprendendo a ler e descobrindo a vida, o escritor nos propôs a complexa questão: “o que quer dizer ‘livre’?”. Na crônica, um adulto que ouviu a pergunta do menino pensou, pensou e, vencido, sem conseguir chegar a uma conclusão, censurou o rapazinho ousado: “Que Deus o abençoe e o livre da tentação de coisas inexistentes”.

Dez anos mais tarde, em 1967, às vésperas do famigerado AI-5, a democracia já havia dado lugar à ditadura militar. “Livre” era uma “coisa” bem mais distante e inexistente do que nos tempos do Menino de Bomfim. Foi quando a peça Navalha na Carne, de Plínio Marcos, subiu aos palcos de São Paulo e do Rio de Janeiro para, em seguida, ser parcialmente censurada e só voltar a ser encenada na íntegra treze anos mais tarde, quando começaram a soprar os primeiros ventos da redemocratização.

A liberdade que faltava no contexto político em que a peça estreou também não estava presente na trama. Ao contrário: o ambiente em que a ação se passa é claustrofóbico (e assim é o ambiente da montagem de Lama), e os três personagens da peça — a prostituta Neusa Sueli, o cafetão Vado e o travesti Veludo — são prisioneiros da pobreza, da degradação, da marginalidade, da violência…

A parte mais impactante da peça, e principalmente da ópera, é o monólogo em que Neusa Sueli narra as mazelas de seu dia como prostituta. Ela é obrigada a aceitar os clientes mais repugnantes e a eles se sujeitar. Para completar o dia, ao chegar à casa, é insultada e agredida por Vado, seu cafetão, que só quer saber do dinheiro que ela vai lhe entregar. E ela se pergunta: “será que eu sou gente?”

A composição de Martinelli segue a linha de Wozzeck, de Alban Berg, que estreou exatamente um século antes da sua Navalha. Extremamente realistas (sobretudo a Navalha), espécie de verismo atualizado para a linguagem dos séculos XX e XXI, ambas tratam de pessoas marginalizadas, no limite da dignidade humana. Em Wozzeck, o final é trágico; em Navalha, patético. Na ópera de Berg, a trágica história é baseada em um caso real; no caso de Plínio Marcos, sabemos que ele tinha um forte lado jornalístico.

De grande complexidade rítmica e harmônica, a música de Navalha retrata um ambiente opressivo. É predominantemente percussiva nos momentos de violência, mas há momentos de um doloroso e instável lirismo que só a música atonal pode criar. As linhas de canto são governadas por uma intensa interpretação do texto, contando com momentos de recitativo e outros até de fala ou grito. Resvala no canto a sensação que temos de que os personagens são privados de qualquer sentimento que não o ódio e a dor.

A escrita de Ronaldo Miranda, por sua vez, nos remete ao ambiente musical da São Paulo de meados do século passado. Sem dispensar as dissonâncias, há árias e momentos de lirismo. O colorido orquestral nos transmite a sensação de uma liberdade da qual, como disse (na ópera) a mãe do menino, apenas as crianças podem gozar.

Cintia Cunha, Fulvio Sousa, Fernando Portari e Karin Uzun em Navalha na Carne (foto: Leo Lama)

O que quer dizer ‘livre’ na ópera?

Quando se fazem novas produções das óperas, até onde vai a liberdade dos diretores musicais e cênicos? Essa é uma eterna discussão. Há quem defenda que a concepção cênica é livre, desde que a música seja respeitada; há quem defenda que a produção deve ser totalmente presa ao libreto e à época da ação.

Ao se fazer esse tipo de questionamento, logo se pensa na releitura de uma obra por parte do encenador para transmitir algum conceito que nem sempre coincide com o sentido original da obra. Há também, no entanto, alterações de ordem prática. Às vezes a obra precisa ser adaptada para ser apresentada em condições diferentes daquelas de sua criação. Uma formação orquestral diferente, um teatro menor, ou os solistas da nova produção podem demandar algumas modificações. Na história da ópera, era comum que um compositor (nem sempre o mesmo que compôs a obra!) fizesse alterações em uma ária para torná-la mais adequada às características vocais de outro cantor. Modificações na orquestração também não eram raras, principalmente quando o regente também era compositor.

No caso de óperas de compositores vivos, a adaptação às novas condições fica fácil: são realizadas pelos próprios compositores ou por eles supervisionadas. É o caso da versão pocket de Navalha na Carne, feita por Leonardo Martinelli em parceria com a pianista Karin Uzun e com Leo Lama.

De Lama veio a ideia do prólogo, retirado do episódio dos vinte e cinco homens encarcerados em um cubículo (nada livres, pois), alguns dos anjos caídos do livro de contos Inútil Canto e Inútil Pranto pelos Anjos Caídos, de Plínio Marcos. Quanto à parte musical, Martinelli conta que teve como ponto de partida a redução para piano utilizada pela própria pianista quando ensaiou os cantores para a estreia da obra em 2022. Durante a preparação da versão pocket, sob os olhos e ouvidos de Martinelli, Karin Uzun foi construindo uma sonoridade de piano que se sustentasse como música de acompanhamento de uma apresentação. “Ficou dificílima”, revela Martinelli.

Eventuais alterações não são a única vantagem de se ter um compositor vivo e atuante por perto. Durante os ensaios, cantores e instrumentistas têm a oportunidade de trabalhar com o próprio autor da obra. No caso de Navalha, Leonardo Martinelli dividiu a coordenação dos ensaios com Leo Lama. Em Araras, a dupla falará com o público antes da apresentação.

Passado, Presente, Futuro

No ano passado, o encontro foi aberto com uma obra resgatada do passado, A Noite de São João, de Elias Álvares Lobo (1834-1901), com libreto de José de Alencar (1829-1877), e encerrado com um recital com trechos de óperas brasileiras contemporâneas. Neste ano, são duas óperas brasileiras contemporâneas compostas a partir de textos que remetem a meados do século XX.

Embora O Menino e a Liberdade e Navalha na Carne abordem dilemas humanos atemporais, elas trazem ecos do passado paulista. Se sempre nos perguntaremos o que é ser livre, não falamos mais, por exemplo, em lotação (o táxi onde se passa a história do Menino); se a marginalidade, a agressão, o machismo, o preconceito são temas que ainda fazem parte de nossa sociedade, a linguagem direta do realismo de Plínio Marcos nos remete a um período em que o teatro estava buscando romper paradigmas.    

Temos, pois, nos dois casos, uma saudável e atual releitura de textos de um passado cujos efeitos ainda se fazem presentes. Esperamos que isso estimule futuras composições e, sobretudo, futuras produções das óperas compostas nesse início de século.

Cena de O Menino e a Liberdade

Teatro Estadual de Araras

07 de junho, às 18h – Navalha na Carne
08 de junho, às 18h – O Menino e a Liberdade

Teatro Sérgio Cardoso – Sala Paschoal Carlos Magno

09 de junho, às 20h – Navalha na Carne

Ingressos: todos os espetáculos são gratuitos (para a apresentação no Teatro Sérgio Cardoso, os ingressos devem ser reservados por meio da plataforma Sympla)

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