A semana lírica do ano!

Hoje se encerra a melhor semana lírica de 2024 da Sala São Paulo. E isso graças a duas ótimas mezzosoprani, ambas americanas, mas de gerações diferentes: Joyce DiDonato e Isabel Leonard. Na quarta-feira, 07 de agosto, DiDonato e o grupo Il Pomo d’Oro apresentaram, pela TUCCA (Associação para Crianças e Adolescentes com Câncer), o espetáculo Eden. No dia seguinte, foi a vez de Leonard, ao lado do pianista Bryan Wagorn, dar um recital pela Dellarte – que, felizmente, passou a ter uma série de concertos internacionais também em São Paulo, e não só no Rio de Janeiro.

Eden: semeando arte

Sem querer ser piegas, semear é fundamental para a manutenção da vida na Terra. O que a incrível mezzosoprano Joyce DiDonato fez em São Paulo, no espetáculo Eden, ao lado do excelente grupo Il Pomo d’Oro, foi explicitar esse aspecto da vida do artista. Semear a música, semear ideias, aguçar a sensibilidade, provocar a reflexão. Como já é sabido bem antes do Eden, o lado mais prático deste semear é uma atividade particularmente importante para DiDonato, sempre engajada em masterclasses, em trabalhos com jovens e crianças. Foi, pois, um gesto mais simbólico que prático a entrega de sementes de flores silvestres já no interior do programa de sala.

Uma pequena amostra do trabalho com crianças realizado por DiDonato pôde ser visto no final do concerto, quando ela chamou ao palco dois coros infantis, o da Osesp e o de Heliópolis, para que, juntos, apresentassem duas canções, uma em espanhol, outra em português. Na primeira, ela cantou discretamente, ajudando as jovens sopranos a sustentar os agudos. A segunda ela assistiu da lateral do palco. Foi um gesto simbólico, que certamente marcou a vida desses coralistas mirins. Eles ensaiaram com ela e se apresentaram no concerto dela! Quem já participou de algum coral sabe bem o quanto são ricos esses breves momentos.

Eden foi mais sóbrio que Guerra e Paz, apresentado em 2019, também na Sala São Paulo, por DiDonato e Il Pomo d’Oro. Sem dançarinos ou movimentação intensa, sem tantas coloraturas, o espetáculo contou com um sofisticado trabalho de iluminação sobre um ambiente esfumaçado. Não houve luz ambiente, mas apenas intensos focos de luz que se difundiam pelo ambiente com a fumaça. A cada canção, DiDonato ia ligando arcos que acabaram por formar duas circunferências – os ciclos da vida?

Joyce DiDonato

Se visualmente o espetáculo foi belo, musicalmente foi de um notável refinamento. É verdade que a voz da cantora já não é a mesma de 2012, quando veio a São Paulo pela primeira vez, pela Cultura Artística – que na época sabia identificar e trazer os melhores cantores em atividade, e não apenas os mais midiáticos, como hoje em dia. Embora ainda tenha uma voz potente e bem sustentada, um admirável peso nos graves e brilho nos agudos, os médios sumiram, e foram em boa parte encobertos pela orquestra. Isso, contudo, é natural, e foi compensado pela arte e pela técnica da cantora. E nesse ponto é preciso observar que DiDonato fez algo de que, hoje em dia, a maioria dos cantores passa longe: cantou direto, sem a interpolação de cinco ou seis peças instrumentais (como se tornou comum nos concertos e recitais líricos) e até sem intervalo.

A mezzosoprano manteve o mesmo princípio que já a norteou em Guerra e Paz: devemos ouvir o que os compositores têm a nos dizer ao longo de quatro séculos de música. Desse modo, foram, novamente, apresentadas obras desde Piante ombrose, de La Calisto, de Francesco Cavalli, até a contemporânea The First Morning of the World, da inglesa Rachel Portman, composta especialmente para Eden – e lamentavelmente a peça menos interessante da noite.

Juntos, DiDonato e Il Pomo d’Oro são um primor no repertório barroco. Foi um deleite ouvi-los em Toglierò le sponde al mare, da ópera Adamo ed Eva, do tcheco Josef Myslivecek, recentemente notabilizado pelo filme Il Boemo. Isso sem contar, claro, Gluck e Händel, com Misera, dove son… Ah! non son io che parlo, da ópera Ezio – um dos pontos altos da noite! –, e As with rosy steps the morn, do oratório Theodora, além de uma linda Ombra mai fu de bis.

Um belo concerto se torna especial quando, nem que seja apenas por um momento, flerta com o sublime. E isso aconteceu no último número: Ich bin der Welt abhanden gekommen, o terceiro e um dos mais belos Rückert-Lieder, de Mahler. Com um pianíssimo penetrante, daqueles que nos faz prender a respiração, DiDonato concluiu a parte oficial de seu concerto: “Eu estou morto para o tumulto do mundo… Eu vivo sozinho no meu céu, no meu amor, e na minha canção”.

Isabel Leonard: juventude e simpatia

Bryan Wagorn e Isabel Leonard na Sala São Paulo

Quase quinze anos mais jovem que DiDonato, Isabel Leonard está na flor da idade, na plenitude de sua voz. Mesmo tendo se queixado algumas vezes da garganta seca em função do clima seco e do ar-condicionado da sala, Leonard conseguiu dominar a situação. A beleza do timbre e do fraseado foi a marca do recital – além da simpatia: ela estabeleceu uma animada e descontraída comunicação em espanhol com o público, chegando até a pedir perdão por falar demais.

Filha de mãe argentina, o espanhol é um dos idiomas maternos de Leonard. Não à toa, em 2015 ela gravou um CD com canções em espanhol, e dedicou a estas a primeira parte do programa – como já havia feito no ano passado, quando veio pelo Mozarteum. Foi especialmente interessante ouvir La Tarara e Nana de Sevilla, de Frederico Garcia Lorca – que, antes de se tornar o grande escritor, estudou piano clássico. As ritmicamente elaboradas Cinco Canciones Negras, do catalão Xavier Montsalvatge, foram outro destaque da primeira parte.

Após o repertório espanhol, Leonard partiu para o francês. Como já observei no ano passado, é possível compreender cada palavra do seu francês bem pronunciado. Embora com piano – o ótimo acompanhamento de Wagorn, aliás! –, tivemos a preciosa oportunidade de ouvir a bela Shéhérazade, de Maurice Ravel. Após a Seguidilha da Carmen, nos extras Leonard interpretou duas árias da opereta La Périchole, de Offenbach, que ela disse adorar: em março, ela havia cantado o papel-título na Washington National Opera.

Com esses dois recitais, São Paulo viveu uma semana privilegiada. Ficamos, agora, à espera de Leonardo García Alarcón e seus solistas, em dezembro, quando interpretarão com a Osesp a Missa em Si menor, de Bach!

Bryan Wagorn e Isabel Leonard na Sala São Paulo.

Fotos de Joyce DiDonato retiradas das redes sociais da artista.
Fotos de Isabel Leonard: Nadja Kouchi.

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