Aprazível musicalidade eslava no caloroso inverno carioca

Russian Seasons
Recital

22 de junho de 2024

Sala Cecília Meireles

Ildar Abdrazakov, baixo
Mzia Bakhturidze, piano

A cidade do Rio de Janeiro em pleno inverno de 30°C registrou, além do calor, a primorosa sensação do Russian Seasons na tarde de sábado, 22 de junho, na Sala Cecília Meireles. Na ocasião, dois musicistas estiveram no palco para executarem com brilhantismo um pouco da tradição clássica musical da Rússia: Ildar Abdrazakov e Mzia Bakhturidze. O primeiro nome citado se destaca como um baixo de excelência, com um relevante histórico de apresentações nos maiores teatros de ópera e salas de concerto pelo mundo. O segundo nome faz referência à grande pianista que acompanhou o cantor durante toda a apresentação. Juntos puderam proporcionar ao público carioca um desbunde de qualidade segura como já não se vê por longo tempo na cidade maravilhosa, algo ratificado principalmente pela efetiva presença de uma plateia considerável e ávida à novidade.

De certa maneira, uma apresentação de baixo, acompanhado ao piano, é um tanto rara por algumas questões. No geral, uma extensão vocal desse porte não se torna tão atrativa ao público quando comparada a naipes de soprano, tenor ou barítono. Talvez o inusitado da tarde tenha sido também esse aspecto: uma performance de baixo e piano, cantada em língua russa, possibilitando assim a execução de peças pouco ou raramente presentes em concertos de música clássica. Dentre o público presente no concerto, instrumentistas e cantores profissionais foram vistos, além de acadêmicos da área musical e profissionais ligados à produção.

Diante de impasses bélicos, típicos da intolerância humana, a Rússia vivencia uma experiência desastrosa no cenário europeu, algo que pode se refletir na projeção da sua produção artística. Não há dúvidas de que, se algumas poucas cadeiras estiveram vazias, naturalmente tratou-se de um número vacante contrário aos excessos na guerra contra a Ucrânia. Por outro lado, à medida que a Rússia (des)caminha por uma grande insatisfação mundial, sua arte pode se valer na tentativa de atrair. Talvez essa dialética tenha sido a marca da sua presença no Rio de Janeiro, com algumas apresentações musicais ocorridas na mesma semana.

A seleção do repertório voltou-se, mais uma vez, a uma exaltação da cultura russa. Em primeiro lugar, observa-se o caráter vocal tão cultivado no espaço religioso ortodoxo, ausente de práticas instrumentais em suas igrejas. Com isso, a valorização das vozes se intensifica em uma tentativa de trazer ao culto cristão marcas de um sentimento mais lírico, voltado à expressão de fé. Nesse sentido, as vozes graves se destacam, pois desprovidas do brilhantismo agudo passam a ressoar um caráter mais conformista, ligado à essência contemplativa. Essa tradição ficou conhecida na Rússia como oitavistas, caracterizada por cantores com registro vocal de baixo profundo que entoam graves com grande facilidade no tipo de repertório desejado. Em outras palavras, em solo russo a presença de um baixo nas igrejas cantando melodias sacras é algo recorrente, tornando vulgar tanto a sua execução como o interesse por cantores nessa linha. Com Ildar Abdrazakov, um passo além foi dado, pois trata-se de um cantor que, mesmo embevecido dessa tradição oitavista, buscou um repertório calcado naquilo que a tradição nominalizou por música clássica, sobretudo aquela de expressão operística. E, para tanto, o público foi agraciado com três compositores russos, a saber: Tchaikovsky, Rachmaninoff e Mússorgsky.

As canções interpretadas, partindo dos compositores citados, demarcaram um caráter bastante nacional, talvez por intencionar a relação “ser nacional para ser internacional”. Além da língua russa figurar a todo tempo no evento, seja nas apresentações ou mesmo nas canções, o que se viu no plano musical perpassou o aspecto verbal. Algumas discretas imagens eram projetadas ao fundo do palco, em tentativa de memorizar a plateia sobre visões furtivas da Rússia, ao menos na perspectiva da idealização. Tais imagens, se não auxiliaram em nada, também não atrapalharam. O importante da tarde foi, sem dúvida, a exaltação da linguagem musical.

Do som do piano, notou-se absoluto controle das sonoridades evocadas. Fortes e fracos foram executados com extrema precisão, demonstrando intenso valor interpretativo. O uso do pedal foi primoroso, tornando evidente belas passagens no desenvolvimento sonoro. As texturas propostas pelos compositores foram perfeitamente mostradas, assegurando-se que, diante do exposto, tratou-se de uma pianista de alto gabarito e musicalidade, oferecendo toda a sua técnica à interpretação qualificada.

Sobre a interpretação do cantor podemos resumir em uma única palavra: primor! A plateia foi agraciada com uma afinação incrível, com naturalidade. A presença cênica, ainda que as peças não se voltassem a uma esfera operística, revelou um cantor experiente ao palco, com uma projeção sonora profunda, seja nos graves ou nos agudos. Em mais de uma vez as canções, inseridas em grande parte numa estética romântica, foram valorizadas em suas frases musicais longas, típicas do século XIX. Ao intérprete, coube musicalizar o ponto de partida e o ponto de chegada nas diferentes frases, levando o ouvinte a uma inserção à linguagem musical proposta pelo cânon ocidental.

O fim da apresentação da tarde de sábado não foi outro: aplausos sinceros e enfáticos diante de todo o deslumbre ofertado. Para uma plateia ávida por música de excelência não restou outra demonstração a não ser pedidos de bis, com palmas e pronúncia discreta da palavra “bis”! Imediatamente o cantor nos brindou com a ária La calunnia, do personagem Don Basilio, do Barbeiro de Sevilha, de Rossini. Com a peça, foi ainda mais notória a possibilidade de interpretação a partir de material mais ligeiro, agora tendo a língua italiana presente na execução. Mais um delírio para o público, com outra expressiva demonstração de que a tarde não poderia ser encerrada! Era notório o desejo de muitos no alongamento do programa, como se o desbunde musical não pudesse ser concluído. Em mais um bis, a peça escolhida foi Granada, canção do mexicano Agustín Lara. O que se viu foi uma explosão no palco, arrebatando os ouvintes a uma deliciosa e vibrante sonoridade. A plateia em pé foi ao delírio, sempre desejando mais!

Essa mesma plateia que vibrou em cada peça não passou despercebida pelo cantor da tarde. Pouco antes do fim do programa, antes mesmo do bis, enquanto Abdrazakov se recompunha entre uma peça e outra, não conseguiu disfarçar o incômodo com algo presente em todo o recital: a tosse do público! Às portas do (caloroso) inverno, notou-se, como em tantos outros concertos na cidade, um excessivo quadro de tosse/pigarro. Para não perder a oportunidade de registrar a situação, o cantor também pigarreou de maneira artificial, levando a plateia ao riso! Hilário, se não fosse a triste realidade de um musicista ter de lidar com tanto ruído além da sua própria música!

No fim de tudo, o que poderia ser um ponto negativo passa a se configurar como objeto de desejo: a maior diversidade estilística das peças apresentadas. Com os três compositores elencados no programa, não houve condições para um público ávido conhecer, ao menos pontualmente, a tradição clássica musical na Rússia abarcada em diferentes períodos estéticos. Ainda assim, entretanto, o que foi apresentado valeu em muito, restando-nos a expectativa de outros concertos desse porte, na máxima “com gostinho de quero mais”.


Foto: divulgação (Mzia Bakhturidze e Ildar Abdrazakov).

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