Barítono e soprano se destacam na remontagem de “O Guarani” no TMSP

Récita de reestreia da produção de 2023 teve também uma ótima atuação do Coro Lírico Municipal, além de uma inusitada falha na iluminação do fosso da orquestra.

Il Guarany (O Guarani), 1870
Ópera em quatro atos

Música: Antônio Carlos Gomes (1836-1896)
Libreto: Antonio Scalvini (1835-1881) e Carlo D’Ormeville (1840-1924)
Base do libreto: O Guarani, romance de José de Alencar (1829-1877)

Theatro Municipal de São Paulo

15 de fevereiro de 2025

Direção musical: Roberto Minczuk
Concepção: Ailton Krenak
Direção cênica: Cibele Forjaz
Codireção artística e cenografia: Denilson Baniwa
Codireção artística, cenografia e figurinos: Simone Mina
Iluminação: Aline Santini
Design de vídeo: Vic von Poser

Elenco:
Peri: Enrique Bravo, tenor
Cecilia: Laura Pisani, soprano
Gonzales: Bongani Justice Kubheka, barítono
Cacique: Licio Bruno, baixo-barítono
Don Alvaro: Guilherme Moreira, tenor
Don Antonio de Mariz: Andrey Mira, baixo-barítono
Ruy-Bento: Carlos Eduardo Santos, tenor
Alonso: Gustavo Lassen, baixo
Pedro: Orlando Marcos, baixo
David Vera Popygua Ju, ator
Zahỳ Tentehar, atriz
Araju Ara Poty, atriz

Coro Lírico Municipal (regente: Hernán Sánchez Arteaga)
Orquestra Sinfônica Municipal
Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá Kyre’y Kuery

O Theatro Municipal de São Paulo abriu a sua temporada lírica de 2025 neste sábado, 15 de fevereiro, com a reestreia da produção de 2023 da ópera Il Guarany (O Guarani), de Antônio Carlos Gomes. Há quase dois anos, na época da montagem original, uma grande celeuma antecipada se formou, para se mostrar, no fim das contas, desnecessária, já que o que se viu em cena era apenas uma montagem comum, como outras quaisquer, com erros e com acertos.

Seguindo a concepção decolonial de Ailton Krenak, a diretora Cibele Forjaz criou na ocasião uma encenação que tinha por objetivo contrapor o indígena idealizado da ópera de Carlos Gomes (e do romance original de José de Alencar) ao indígena real. Em diversas passagens, no entanto, havia tantas informações em cena que era difícil encontrar organicidade.

Dentre os acertos da encenação, encontravam-se a utilização de um duplo para Peri (interpretado pelo ator David Vera Popygua Ju) e os figurinos que Simone Mina concebeu para os indígenas – os demais figurinos, no entanto, formavam uma miscelânea.

Laura Pisani, David Vera Popygua Ju, Araju Ara Poty (deitada), Zahỳ Tentehar e Henrique Bravo

Neste retorno ao palco (em cartaz até o dia 25/02), além da manutenção dos acertos mencionados, a primeira coisa que chama a atenção é a preocupação da direção do espetáculo de corrigir pelo menos alguns dos muitos excessos da montagem original. As intervenções da Orquestra e do Coro Guarani do Jaraguá Kyre’y Kuery parecem-me agora mais concisas. E a intervenção final, logo depois do encerramento da ópera de Carlos Gomes, também conta com uma amplificação mais bem equalizada (em 2023, essa amplificação estava tão excessiva que incomodava os ouvidos).

Ainda nesse sentido, outro destaque é a exclusão de legendas das projeções de vídeos durante a ária da personagem Cecilia no segundo ato, corrigindo assim um problema da montagem original: na época, o resultado era um grande desvio da atenção do público para os vídeos enquanto a soprano cantava. Isso não acontece mais.

A personagem da atriz Zahỳ Tentehar deixa de ser um duplo de Cecilia e passa a representar uma Onça Pajé, que seria o espírito da indígena aimoré (personagem presente apenas no romance de Alencar, mas não na ópera de Gomes) morta por um português e motivo da revolta do seu povo contra os colonizadores. A também atriz Araju Ara Poty interpreta a Onça Corifeia, que lidera mulheres-onças. Suas atuações, assim como a do já citado David Vera Popygua Ju, mostram-se eficientes dentro da proposta da encenação, especialmente aquela de Tentehar, que tem presença muito carismática.

Os acertos, porém, param por aqui. Há várias cenas com marcações questionáveis. A maneira como Peri percebe a conspiração de Gonzáles no primeiro ato, por exemplo, gera estranhamento, já que o tenor está longe do barítono em cena. Já Cecilia apresenta na maior parte do tempo uma movimentação estereotipada; e o seu caminhar por entre os aimorés no terceiro ato, quando é prisioneira deles, não encontra razão lógica à primeira vista. No fim do mesmo ato, o resgate de Cecilia e Peri por Don Antonio e seus homens resta muito artificial.

Nada, porém, é mais estranho (desde 2023) que a figura do antropólogo (explicado em texto da encenadora no programa de sala como “um branco aceito pela comunidade e que tem um papel na sociedade em questão, participa dos ritos e é um mediador ou tradutor entre mundos”). O personagem, que deveria ser o Cacique dos aimorés, em momento algum se justifica dramaticamente.

O cenário de Denilson Baniwa e Simone Mina é mais uma instalação, em que os adereços de cena vão sendo trocados e ajustados, que propriamente um cenário. Sobre isso, caro leitor, pode anotar aí: quando cenotécnicos são vistos várias vezes sobre o palco em cena aberta, é um sinal claro de que o cenário – se é que existe – passa bem longe de ser grande coisa. Baniwa é também o responsável pelos desenhos e imagens animadas do espetáculo.

Completam a equipe criativa principal Vic von Poser, responsável pela projeção de vídeos, e Aline Santini, que assina a iluminação – ora mais e ora menos inspirada.

Laura Pisani e Zahỳ Tentehar, em destaque, em meio ao Coro Lírico Municipal

Ao contrário da temporada lírica passada, que começou com um desempenho musical decepcionante em Madama Butterfly, a temporada deste ano foi aberta de maneira mais animadora. O elenco secundário desta produção de O Guarani, se não chegou a empolgar muito, também não fez feio.

Na reestreia do dia 15, o baixo Orlando Marcos teve discreta participação como Pedro, empregado de Don Antonio. O tenor Carlos Eduardo Santos e o baixo Gustavo Lassen ofereceram performances razoáveis como os aventureiros espanhóis Ruy Bento e Alonso. E o tenor Guilherme Moreira interpretou Don Alvaro com segurança.

O baixo-barítono Andrey Mira ofereceu uma boa performance como o fidalgo português Don Antonio. Comparando a sua atuação vocal de agora com aquela de 2023, nota-se que o artista ajustou mais os graves, mas os agudos ainda carecem de atenção.

O Cacique dos aimorés foi novamente defendido por um dos cantores líricos brasileiros que mais se destacam pelos seus dotes de ator. E, mesmo sendo um grande ator, o baixo-barítono Licio Bruno fez o que pôde para interpretar este personagem que se torna estranho, quase deslocado, na versão de Krenak/Forjaz. Ao contrário de 2023, quando cantou a estreia adoentado, agora Licio Bruno ofereceu uma performance vocal consistente, com destaque para a sua competente condução da invocação O Dio degli Aimorè.

O tenor Enrique Bravo interpretou Peri com voz potente e agudos generosos. O artista, no entanto, parece ter centralizado a sua preparação apenas nessas duas qualidades. Faltaram cores, nuances – o entendimento, enfim, do que é interpretar um personagem. As notas estavam lá, mas foi só isso.

Já a soprano argentina Laura Pisani deu vida a uma Cecilia vocalmente convincente e expressiva. Dotada de técnica precisa, com um legato primoroso, Pisani enfrentou as coloraturas da parte com desenvoltura, valorizando passagens como a ária Gentile di cuore, o dueto Sento una forza indomita e a balada C’era una volta un principe. Pena que a direção cênica não lhe tenha sido nada favorável.

O barítono sul-africano Bongani Justice Kubheka foi um Gonzáles exemplar: dono de uma voz poderosa, expressiva e baseada em excelente técnica, o artista exibiu ainda presença e carisma. Merece destaque a sua participação durante toda a récita, com menção especial para as cenas com Peri e com Cecilia, e para a interpretação da Canção do Aventureiro, Senza tetto, senza cuna.

Kubheka já havia cantado no ano passado a parte de Escamillo no elenco alternante da produção de Carmen do TMSP. Na época, eu só assisti ao elenco da estreia, mas ouvi muitos elogios à sua performance. Agora pude conferir por mim mesmo as suas qualidades. Vale ainda destacar que o barítono certamente está cantando a parte de Gonzáles pela primeira vez, e o está fazendo com profissionalismo, claramente tendo-a estudado muito bem, respeitando o público e a instituição que o contratou.

A Orquestra Sinfônica Municipal apresentou uma boa récita sob a regência de Roberto Minczuk. A célebre Abertura da ópera foi bem defendida, e, apesar de algumas derrapadas, como a das trompas logo no início do primeiro ato, a sonoridade do conjunto esteve sempre em bom nível. Apesar dos desencontros de sempre se fazerem presentes, Roberto Minczuk desta vez controlou bem o volume da orquestra.

E, por fim, uma performance que merece destaque foi a do Coro Lírico Municipal, apresentando a sua primeira ópera sob a preparação do seu novo regente titular, o maestro argentino Hernán Sánchez Arteaga. O conjunto esteve sempre muito bem, com destaque para passagens como L’oro è un ente sì giocondo (do segundo ato), Aspra, crudel e a sua participação na invocação O Dio degli Aimorè (ambas no terceiro ato). Pôde-se notar em alguns momentos capricho na equalização e na dinâmica das vozes do coro. Pareceu-me, pois, um belo começo de trabalho.

Assim foi a reestreia de O Guarani no Theatro Municipal de São Paulo. A encenação tem os seus problemas, como se sabe desde 2023, mas pelo menos passou um pouco mais “limpa” nesta nova oportunidade, e o desempenho musical geral pode ser considerado bom. Aguardemos o que vem pela frente ao longo do ano.

Andrey Mira (na escada) e, à frente do palco, em destaque, Laura Pisani, David Vera Popygua Ju e Bongani Justice Kubheka (à frente do grupo do lado direito)

No sábado, ainda no primeiro ato, uma falha técnica deixou o fosso do TMSP às escuras. Com os músicos e o regente impedidos de enxergar as suas partituras, a récita simplesmente parou. Após alguns segundos sem que a equipe técnica da casa tomasse providências, Roberto Minczuk pediu do seu posto, em alto e bom som: “Precisamos de luz”. Mais alguns segundos e as luzes do fosso voltaram. Minczuk teve jogo de cintura para reorganizar a casa, e tudo recomeçou normalmente do ponto em que havia parado.

Ao todo, a interrupção deve ter demorado cerca de um minuto. É o tipo de coisa que não deveria acontecer, mas também é o tipo de coisa que acontece. Vida que segue.

Quem estava inicialmente escalado para interpretar a parte de Peri no elenco de estreia de O Guarani era o tenor italiano Ivan Magri. Ao contrário do ano passado, quando o TMSP não divulgou qualquer comunicado sobre o cancelamento da participação da soprano Maria José Siri em Nabucco, desta vez a casa demonstrou mais respeito pelos seus assinantes.

Em comunicado enviado por e-mail, informou que Magri, “(…) por motivos musicais, optou por não permanecer na produção de ‘O Guarani’ (…)”. Ainda segundo o comunicado, durante a sua preparação, “o artista se deu conta de que a parte musical, que inicialmente pensou apropriada para sua vocalidade, era mais pesada do que o adequado para sua voz atual”.

O TMSP fez o que lhe cabia. Difícil é levar a sério a justificativa do tenor, que na última temporada cantou as partes de Radamès (Aida) e de Calaf (Turandot) em mais de uma oportunidade.


Fotos: Larissa Paz (fotos cedidas pelo TMSP).

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