“Candinho” e “La Serva Padrona” no TMRJ: poesia, simplicidade e eficiência

Óperas de João Guilherme Ripper e Giovanni Battista Pergolesi abriram o “II Festival Oficina da Ópera”.

II Festival Oficina da Ópera

13 e 15 setembro de 2024

Theatro Municipal do Rio de Janeiro


Candinho, 2024
Ópera em ato único e 10 quadros

Música e libreto: João Guilherme Ripper (1959-)

Direção musical: Roberto Duarte
Direção cênica: Daniel Salgado
Cenografia: Francisco Ferreira
Figurinos:
Rebecca Cardoso
Iluminação: Isabella Castro e Jonas Bastos
Projeções: Letícia Leão

Elenco:
Candinho: Erika Henriques, mezzosoprano
Branca: Ariel Castilho, soprano
Maria José: Carolina Morel, soprano
Gôndola / Domênica: Andressa Inácio, contralto
Palhaço Beringela / Lavrador: Guilherme Moreira, tenor
Padre Josué / Batista: Fernando Lorenzo, barítono
Candido Portinari (adulto): Ludoviko Vianna, ator

Coro Infantil da UFRJ
Regente do Coro: Maria José Chevitarese

Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal


La Serva Padrona (A Criada Patroa), 1733
Intermezzo buffo em duas partes

Música: Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736)
Libreto: Gennaro Antonio Federico (?-1744)

Direção musical: Jésus Figueiredo
Direção cênica: Ana Vanessa Silva Santos
Cenografia: Taísa Magalhães e Beatriz Fontoura
Figurinos:
Carolina Lima e Karine Amorim
Iluminação: Jonas Soares e Pablo Souza

Elenco:
Serpina: Michele Menezes, soprano
Uberto: Saulo Javan, baixo
Vespone: Ludoviko Vianna, ator

Ensemble OSTM

Desde o dia 12, e até o dia 21 de setembro, acontece no Theatro Municipal do Rio de Janeiro a segunda edição do Festival Oficina da Ópera, uma das melhores iniciativas promovidas pela atual gestão da casa, com o objetivo de dar oportunidades de trabalho a jovens profissionais da área criativa (direção cênica, cenografia, iluminação, etc.).

Neste primeiro fim de semana do evento, foram apresentadas as óperas Candinho, de João Guilherme Ripper, e La Serva Padrona, de Giovanni Battista Pergolesi. A exemplo da primeira edição do Festival, em 2023, estas duas primeiras obras precedem a ópera principal: Le Villi, de Giacomo Puccini, que estreia no dia 19.


Erika Henriques (à frente, agachada) e Coro Infantil da UFRJ

Conforme o seu texto no programa de sala e declarações na palestra que precedeu a apresentação da ópera na sexta-feira, 13/09, o contato do compositor João Guilherme Ripper com a obra de Candido Portinari começou ainda na infância, quando frequentava o ateliê da sua tia-avó (e madrinha), Ignez Maria Luísa, que foi aluna e assistente de um dos maiores artistas brasileiros. Décadas mais tarde, em 2003, Ripper compôs um ciclo de canções sobre poemas do pintor. Em 2019, João Candido, filho de Portinari e amigo de Ripper (presente à récita e participante da palestra pré-ópera), mostrou-lhe cadernos do pai com as suas memórias. Foi a partir desses cadernos que a ópera nasceu, destinada ao público jovem e sob encomenda do Projeto SINOS (Sistema de Orquestras Sociais).

O recorte do libreto (do próprio compositor) posiciona a história na infância de Portinari, mostrando cenas mais ou menos soltas vividas pelo pintor quando criança, até a saída da sua Brodowski natal para estudar no Rio de Janeiro. Daí veio o título da ópera, Candinho, apelido do artista na juventude. Como não é raro acontecer com obras cênicas que homenageiam personalidades, o drama é rarefeito: quase não há conflito.

Guilherme Moreira (Palhaço Beringela) e Erika Henriques (Candinho)

A música de Ripper, como de hábito, é qualificada e fácil de ouvir. Dividida em 10 quadros, a obra tem o seu ponto alto na cena bastante poética entre Candinho e o Palhaço Beringela. O protagonista havia adormecido e perdido a única apresentação do circo na cidade. Triste, ao encontrar na rua o palhaço, este lhe pergunta se ele “sabe imaginar”, e lhe sugere mais adiante “Candinho, você tem o dom de reviver / O que imaginar com os olhos da memória / Desenhe as formas, as cores, as histórias / Desenhe o circo para nunca mais esquecer”. E por fim: “Desenhe o que você quiser! O que quiser”.

O diretor Daniel Salgado preparou para Candinho uma encenação lúdica, ao mesmo tempo simples e eficiente, e realizou um bom trabalho de direção de atores. A ambientação cênica uniu o cenário funcional de Francisco Ferreira às projeções de Letícia Leão (ao fundo do palco, obras de Portinari foram exibidas em uma grande tela). Completaram a encenação os corretos figurinos de época de Rebecca Cardoso e a boa iluminação de Isabella Castro e Jonas Bastos.

O ator Ludoviko Vianna interpretou o Candido Portinari adulto (que também funciona como narrador) com boa presença. O barítono Fernando Lorenzo interpretou o Padre Josué e Batista (pai do protagonista) com correção, enquanto a contralto Andressa Inácio se apresentou bem como Gôndola e como Domênica (mãe do protagonista), apesar de um problema bastante perceptível de afinação quase no fim da ópera.

Ariel Castilho (Branca) e Erika Henriques (Candinho)

A soprano Carolina Morel deu vida à Maria José, “a menina mais bonita da cidade”, sem maiores dificuldades. Também soprano, Ariel Castilho demonstrou como Branca que ainda necessita de aprimoramento técnico. Já o tenor Guilherme Moreira apresentou-se bem como o Lavrador e ofereceu uma ótima performance como o Palhaço Beringela. O principal destaque dentre os solistas foi a mezzosoprano Erika Henriques, que interpretou Candinho com boa voz e excelente atuação cênica, especialmente durante a referida cena com Beringela.

A Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, que não vive os seus melhores dias, até que ofereceu uma récita razoável sob a condução segura de Roberto Duarte. E, para concluir, não seria exagero definir Candinho como uma “ópera coral”, devido à importante participação do coro de crianças ao longo da obra. No TMRJ, as passagens corais foram muito bem defendidas pelo Coro Infantil da UFRJ, preparado por Maria José Chevitarese.


Saulo Javan (Uberto), Ludoviko Vianna (Vespone) e Michele Menezes (Serpina)

La Serva Padrona (A Criada Patroa) foi criada originalmente como um intermezzo: entre os séculos XVII e XVIII, era comum apresentar obras cômicas de pequeno porte entre os atos das óperas sérias (geralmente trágicas), com o objetivo de aliviar a tensão – ou o tédio, como provoca Bruno Furlanetto no programa de sala – do público.

Naquela época, os libretos de modo geral ainda estavam longe de atingir o nível de qualidade dramática que começariam a adquirir algumas décadas depois. Os próprios compositores não eram lá muito exigentes com os seus libretistas e, quase sempre, apenas musicavam o que lhes chegava às mãos. Por vezes, davam sorte. O próprio Mozart, por exemplo, que viveu em uma época em que a qualidade dos textos das óperas já apresentava alguma evolução, musicou tanto grandes libretos (como aqueles escritos por Lorenzo da Ponte) como também outros bem menos qualificados.

Michele Menezes e Saulo Javan

O libreto de La Serva Padrona (de Gennaro Federico) é extremamente simples, mas tem o mérito de apresentar traços de crítica social, ao mostrar uma criada (Serpina) que deseja se tornar patroa, não apenas pelo desejo de ascender socialmente, mas também porque demonstra realmente nutrir sentimentos pelo solteirão Uberto.

Em uma obra com apenas três personagens em cena, sendo um deles mudo, é fundamental concentrar esforços na direção de atores. Foi o que fez no TMRJ a encenadora Ana Vanessa Silva Santos, que preparou com cuidado a atuação e a movimentação dos três artistas. A ambientação pareceu-me atemporal, com o cenário eficiente elaborado a quatro mãos por Taísa Magalhães e Beatriz Fontoura mostrando dois planos na casa de Uberto. Os figurinos de Carolina Lima e Karine Amorim mostraram-se adequados para Uberto e Vespone, mas o de Serpina não combinava muito com a sua condição de “serva”, parecendo já antecipar a “padrona”. A iluminação de Jonas Soares e Pablo Souza mostrou-se regular em uma obra que não exige mesmo muitos esforços do desenho de luz.

Saulo Javan, Ludoviko Vianna e Michele Menezes

Na récita de 15/09, o ator Ludoviko Vianna (que já havia interpretado o Portinari adulto em Candinho) construiu o mudo Vespone com justeza cômica. A soprano Michele Menezes interpretou Serpina com boa desenvoltura cênica, além de apresentar uma voz segura e com boa agilidade. E o baixo Saulo Javan encarnou Uberto com grande competência e excelente agilidade vocal, apesar de certa falta de sofisticação nos acabamentos de algumas frases.

O Ensemble OSTM, formado por músicos da Orquestra Sinfônica do TMRJ mais o cravista Eduardo Antonello Lavigne, esteve bem sob a condução de Jésus Figueiredo.


Os dois espetáculos que passaram pelo TMRJ nos primeiros dias do II Fesival Oficina da Ópera foram simples, mas simples no melhor dos sentidos, além de eficientes e bem realizados. Aguardemos Le Villi.


Fotos: Daniel Ebendinger (na foto principal, a cena final de “Candinho”).

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