Casos de família

Baseada em tragédia grega, ópera “Clitemnestra” convence em sua estreia mundial.

Clitemnestra (2024)
Ópera em dois atos

Música: Marcus Siqueira
Libreto: Livia Sabag e João Luiz Sampaio
Base do libreto: Oresteia, trilogia trágica de Ésquilo

SESC Glória

08 de novembro de 2024

Direção musical: Gabriel Rhein-Schirato
Direção cênica: Menelick de Carvalho
Cenografia: Nicolás Boni
Figurinos: Fabio Namatame
Iluminação: Fábio Retti
Visagismo: David Scardua

Elenco:
Clitemnestra: Gabriella Pace, soprano
Agamemnon / Orestes: Fellipe Oliveira, barítono
Cassandra: Débora Faustino, soprano
Vigia: Daniel Umbelino, tenor
Criada: Priscila Aquino, mezzosoprano

Orquestra Sinfônica do Espírito Santo

Montar ópera contemporânea não é fácil. Até mesmo os ouvintes mais experientes sentem falta de longas e melodiosas árias, duetos e afins, nos quais os personagens levam cinco minutos (e às vezes até mais) apenas para explicar que estão morrendo. Ironias à parte, o fato é que a partir do século XX os compositores enfrentam o desafio de lidar com uma linguagem musical que não se baseia predominantemente em trechos agradáveis ao ouvido e, ao mesmo tempo, precisa entreter o público por algumas horas.

No caso de Marcus Siqueira, este desafio foi superado com méritos na ópera Clitemnestra, com libreto de Livia Sabag e João Luiz Sampaio. Uma peça bastante dinâmica, livremente baseada em uma narrativa de Ésquilo que tem quase 2.500 anos, mas que continua atualíssima. Clitemnestra é casada com Agamemnon, rei de Micenas, que retorna da guerra de Troia após ausência de dez anos.

Há rumores na cidade acerca da infidelidade conjugal da rainha, que arquiteta um plano para matar Agamemnon. Embora possa parecer que Clitemnestra seja uma mulher de moral corrupta e sedenta pelo poder, o fato é que Agamemnon não apenas havia sacrificado aos deuses uma das filhas do casal antes de partir para a guerra, como também possuía um histórico de infidelidade e de violência sexual (ele retorna da guerra com uma concubina, a profetisa troiana Cassandra, mantida como uma escrava).

Por conta do patriarcado já vigente à época – e que está aí até hoje, mostrando a força do texto original de Ésquilo -, a balança sempre pende de forma desfavorável a Clitemnestra, por mais que esta tente explicar os seus atos. Essa visão machista confere um final trágico à ópera, eis que décadas depois Clitemnestra será confrontada por um dos filhos do casal, Orestes, que, mesmo confuso após ouvir os relatos da vida errática do pai (da qual não tinha conhecimento), decidirá pôr fim à vida da mãe, na intenção de vingar a morte de Agamemnon.

Em uma partitura crua, direta ao ponto, com ares sombrios e violentos, que traz reminiscências das óperas de Alban Berg (1885-1935), as quais também lidavam com a violência de gênero – aqui há que se lembrar dos trágicos fins de Marie, personagem de Wozzeck, e de Lulu, da ópera homônima -, Siqueira empregou uma eficiente orquestração, repleta de detalhes sutis como o crepitar das chamas nos arcos da cordas, diálogos marcantes entre a percussão e os cantores, além do uso bem dosado da declamação por membros da orquestra, que a certo momento representavam a voz do povo, a qual muitos interpretariam como sendo a voz de Zeus, mas que não deixa de ser apenas a voz domesticada e bovina dos seguidores do patriarcado. Também há que se destacar o excelente tratamento conferido às vozes dos cantores que atuaram na récita: os papéis parecem escritos sob medida.

Vitória ainda não conta com um teatro adequado para a montagem de óperas. Posto isso, mesmo com todas as limitações do Sesc Glória para esse tipo de espetáculo, surpreendeu positivamente a direção cênica de Menelick de Carvalho, eis que os cantores sabiam a todo o tempo como agir em cena, sem exageros histriônicos. Cenários de Nicolás Boni, figurinos de Fábio Namatame e iluminação de Fábio Retti de acordo com a concepção do diretor, conferindo um ar de tragédia clássica à encenação. De se destacar ainda o visagismo de David Scardua, que conferiu naturalidade ao envelhecimento de Clitemnestra, bem como boa distinção entre os personagens de Agamemnon e Orestes, interpretados pelo mesmo cantor em atos consecutivos.

De alto nível as atuações de todo o elenco. Os comprimários Daniel Umbelino (Vigia) e Priscila Aquino (Criada), com vozes de timbres agradáveis e com boa projeção, apenas eventualmente prejudicadas pela inadequação acústica do teatro, representaram as visões do populacho: o primeiro, a visão masculina, cheia de ressalvas ao comportamento de Clitemnestra e de subserviência ao carismático rei Agamenon; a segunda, em uma performance que se destacou cenicamente, a visão feminina, marcada pelo desespero, opressão e pela falta de esperança no futuro.

Excelente a participação de Débora Faustino: no papel de Cassandra, foi muito convincente ao retratar todo o horror que a personagem vivencia ao longo da ópera, desde o seu arrebatamento por Agamemnon até profetizar as cenas de violência que marcam a história da família real de Micenas. Esse horror constante se materializou no virtuosismo do canto, marcado por uma voz com timbre privilegiado, adequada sustentação e excelente projeção, bem como no desempenho cênico, sempre obediente à qualidade do canto.

Gabriella Pace encarnou com grande maturidade a personagem-título. O papel caiu-lhe muito bem e, se no primeiro ato predominou a mulher de personalidade forte e vingativa, no segundo assistimos à mulher fragilizada, exausta após tantas batalhas, e que ainda precisa convencer o próprio filho, de quem teve que se afastar por tanto tempo, das razões por trás das suas atitudes. Vocalmente, Pace sustentou muito bem o seu desempenho, cantando de forma homogênea até o fim da ópera, sendo justamente a cantora mais aplaudida pelo público.

Fellipe Oliveira desempenhou um verdadeiro “tour de force” para interpretar dois papéis significativos na mesma ópera: Agamemnon no primeiro ato, e seu filho Orestes no segundo. Auxiliado pela eficiência do visagismo, Oliveira convenceu em ambos os papéis com uma voz dotada de grande extensão, com graves seguros e agudos estentóreos, além de um material vocal que pode, se adequadamente trabalhado, render boas interpretações em Wagner em um futuro não muito distante.

Muito segura a atuação da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo – Oses, a qual já vem realizando uma excelente temporada em 2024 e não demonstrou qualquer hesitação ao lidar com uma partitura tão complexa. De se destacar a atuação da percussão, presente no fundo do palco (uma engenhosa forma da direção cênica de lidar com as limitações de espaço), que conversou muito bem com os cantores. Ótima a regência de Gabriel Rhein-Schirato, que manteve o conjunto perfeitamente integrado em uma obra que não concede espaço para qualquer deslize mínimo do regente. Ele soube extrair juntamente com os músicos todo o caráter tétrico da partitura, demonstrando grande sensibilidade teatral.

Por fim, registrem-se aqui os elogios à iniciativa da Companhia de Ópera do Espírito Santo – COES, que organiza o Festival de Música Erudita do Espírito Santo, já em sua 12ª edição, e não se furta à responsabilidade de apresentar títulos desafiadores, como foi o caso dessa Clitemnestra. Vida longa ao Festival, vida longa à ópera contemporânea!

O Festival prossegue ao longo do mês de novembro, com ingressos gratuitos e programação disponível em site próprio: https://www.festivaldemusicaerudita.com.br/.


Assista ao vídeo de Clitemnestra no YouTube:


Fotos: Lorenzo Savergnini (cedidas pela produção do espetáculo).

Um comentário

  1. Parabéns ao governo do estado pela iniciativa pública em proporcionar cultura de qualidade à população capixaba.
    Parabéns pela bela crítica tecida pelo comentarista.

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