Barítono brasileiro Paulo Szot se destaca como Don Alfonso na “Così Fan Tutte” da Opéra de Paris.
Così Fan Tutte, ossia La Scuola degli Amanti (1790) Ópera em dois atos |
Música: Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) Libreto: Lorenzo da Ponte (1749-1838) |
Palais Garnier (Opéra national de Paris), 24 de junho de 2024 |
Direção musical: Pablo Heras-Casado Direção cênica e coreografia: Anne Teresa De Keersmaeker |
Cenografia e iluminação: Jan Versweyveld Figurinos: An D’Huys |
Fiordiligi: Vannina Santoni, soprano Dorabella: Angela Brower, mezzosoprano Despina: Hera Hyesang Park, soprano Ferrando: Josh Lovell, tenor Guglielmo: Gordon Bintner, baixo-barítono Don Alfonso: Paulo Szot, barítono |
Orquestra e Coro da Opéra national de Paris Dançarinos da Compagnie Rosas |
Così Fan Tutte, ossia La Scuola degli Amanti é a ópera mais complexa e mais mal compreendida da trilogia Mozart-da Ponte. Não é à toa: o libreto – o único da trilogia baseado em uma história que circulava nos salões vienenses da época, e não em alguma fonte literária – está recheado de ironia, e, tomada ao pé da letra, a trama é tão inverossímil (além de infantil e misógina) quanto as corriqueiras fofocas de salão. Quanto à música, é sofisticada, repleta de citações e de brincadeiras, alternando momentos de opera seria com outros de opera buffa. Em Opera as Drama, Joseph Kerman já alertou que, em Mozart, a apreciação do drama depende da compreensão técnica da dramaturgia, ou seja, do conjunto de convenções usado para a interação entre música e ação. Se isso é verdade para as óperas de Mozart em geral, é ainda mais verdadeiro para Così Fan Tutte em particular.
Na produção que estreou em 2017 no Palais Garnier e voltou à cena em 2024, a diretora cênica e coreógrafa Anne Teresa De Keersmaeker teve a ideia de sublinhar a força dessa dramaturgia musical através da dança. A obra foi representada como um ensaio para um balé. Cada cantor tinha um dançarino da Compagnie Rosas por duplo, e An D’Huys desenhou os figurinos de modo que cada dupla fosse facilmente identificada pelo tom da roupa. Os cantores ficavam parados ou faziam discretos movimentos, enquanto os dançarinos executavam alguns passos de dança. Tudo ocorreu no cenário único de Jan Versweyveld, que nada mais era que uma sala de ensaios retangular, com barras e uma grande porta no fundo.
Essa produção foi filmada em 2017 e está disponível em DVD. A meu ver, a melhor palavra que define esse vídeo é: entediante. Justamente por isso, na noite de 24 de junho entrei um tanto apreensiva no maravilhoso Palais Garnier. Fui buscar ânimo e esperança no plafond de Chagall e na memória de uma genial e inesquecível La Clemenza di Tito, também de Mozart, que vi no mesmo Garnier em 2011, com direção cênica de Willy Decker, e musical de Adam Fischer.
No entanto, sentada em uma das poltronas daquele templo arquitetônico que inspirou tantos teatros (inclusive os brasileiros), quando a ópera começou tive uma grata surpresa. Em primeiro lugar porque, musicalmente, foi um absoluto deleite! Isso graças ao bom elenco e, sobretudo, ao genial Pablo Heras-Casado à frente da Orquestra da Opéra National de Paris. Sem exagerar na velocidade dos tempi, mas também sem permitir que a música perdesse o seu vigor por um segundo sequer, e com uma dinâmica na medida certa, Heras-Casado e a orquestra entregaram todo o brilho, a poesia e a delicadeza da música de Mozart. Além disso, ao vivo a produção se mostrou mais envolvente que por vídeo: sua musicalidade se sobressaiu e os coloridos figurinos, combinando com as cores de Chagall, dispersaram a monotonia, de modo que música e cena formaram um belo conjunto. É verdade que a concepção cênica de De Keersmaeker livrou-a dos vários problemas que o libreto oferece ao encenador. Ou, melhor dizendo, ela soube fazer uso da música de Mozart para vencer as armadilhas preparadas por Da Ponte.
Grosso modo, os personagens de Così podem ser divididos em três categorias: personagens típicos da opera buffa (Don Alfonso e Despina); personagens que pertencem ao mundo aristocrático e heroico da opera seria (Ferrando e Fiordiligi, respectivamente primo uomo e prima donna); e uma categoria intermediária entre essas duas (Guglielmo e Dorabella).
Dentre o elenco feminino, destacou-se, por sua convincente atuação e encarnação da personagem, a Despina de Hera Hyesang Park. Foi, pois, uma pena que a soprano sul-coreana tenha entregado agudos estridentes e até mesmo imprecisos. Em compensação, Angela Brower, com sua bela voz, foi uma memorável Dorabella. No recitativo acompanhado “Ah, scòstati! Paventa il triste effetto” Brower já demonstrou sua capacidade de utilizar as diversas cores de seu timbre para enfatizar o drama do disperato affetto de Dorabella. O “chi mi consola” sentido, pianíssimo, foi seguido por um “per pietà” com voz de peito quase falada. Após a ária “Smanie implacabili” recebeu os merecidos aplausos do comportado público francês.
O maior desafio vocal da noite coube, sem dúvida, à soprano francesa Vannina Santoni, intérprete de Fiordiligi. É sabido que Mozart compunha os papeis sob medida para os seus intérpretes. Quando algum deles possuía alguma limitação e talentos específicos, ele procurava fazer com que esses talentos compensassem, de longe, as limitações, a ponto de compor cenas difíceis de serem cantadas por outros cantores. Isso aconteceu em Idomeneo, quando Mozart compôs a aria di bravura “Fuor del mar” sob medida para o tenor Anton Raaff, e em Così, nas cenas de Fiordiligi.
Segundo as crônicas da época, Adriana Ferrarese, a primeira Fiordiligi, tinha limitações nos agudos, mas sabia fazer ágeis coloraturas e tinha uma poderosa voz de peito. Desse modo, nas duas grandes cenas de Fiordiligi, Temerari… Come scoglio, no primeiro ato, e Ei parte – senti! … Per pietà, bem mio, perdona, no segundo, em geral as frases caminham para a região grave e, não raro, terminam em notas abaixo da pauta, com direito a grandes saltos. São duas cenas de extrema dificuldade, boas para Ferrarese, mas terríveis para a maioria das sopranos. Das três, é Fiordiligi que tem a nota mais grave: um Lá grave – Despina desce até o Dó e Dorabella, a mezzosoprano, cai apenas até o Ré.
Com voz jovial e fraseado seguro, Santoni interpretou uma boa Fiordiligi. Faltaram-lhe, contudo, os graves, sobretudo no rondó Per pietà, quando Fiordiligi tenta resistir ao seu pecaminoso desejo por Ferrando, com saltos e linhas descendentes que parecem acentuar o penar da personagem e dar um caráter introspectivo à cena.
No campo masculino, Don Alfonso, o velho filósofo que tudo maquina, que vive de citações, precisa subornar, manipular e enganar para provar a sua única teoria inédita. Como bom enganador, é simpático, sabe seduzir, mas tem um certo cinismo. Mesmo em uma produção que praticamente desobriga o cantor de encarnar um personagem, Paulo Szot, um ator nato, já entrou no palco com a expressão e a postura desse tipo simpático e cínico, contra quem é inútil qualquer argumentação. A isso se aliaram o seu canto contundente e o seu timbre sedutor. Uma bela apresentação do barítono brasileiro – o único dos cantores que fez parte do elenco da estreia e da gravação dessa produção, em 2017.
A produção optou por escalar um barítono (Szot) para Don Alfonso e, para interpretar Guglielmo, um baixo-barítono: o canadense Gordon Bintner. Isso pode causar certa estranheza, já que é comum que as produções façam o oposto. Essas escolhas, no entanto, se baseiam mais no caráter que se quer transmitir de cada personagem do que no aspecto musical. Enquanto Don Alfonso vai do Lá grave ao Mi agudo, Guglielmo vai do mesmo Lá ao Fá, ou seja, sua nota aguda é apenas meio tom mais alta que a de Alfonso. É claro que esses intervalos informam apenas o limite da atuação de cada voz, e não as regiões predominantes, mas já dão uma ideia da tessitura. Nada impede, portanto, que o senso comum seja invertido, que Guglielmo tenha uma voz um pouco mais pesada que Alfonso. Inclusive porque, como observado acima, trata-se de um personagem intermediário entre a opera seria e a opera buffa, com frases curtas e que caminham em direção ao grave – muito bem conduzidas e sustentadas por Bintner.
Para completar o ótimo trio masculino, Ferrando ganhou vida na voz brilhante, precisa e sustentada de outro canadense: o ótimo e jovem tenor Josh Lovell, em sua estreia na Opéra National de Paris. A única coisa a se lamentar é que a ária Ah, lo veggio: quell’anima bella, do segundo ato, tenha sido cortada.
Fotos: Benolte Fanton / OnP (na foto principal, os pares cantor-dançarino de: Dorabella, Fiordiligi, Don Alfonso, Despina, Ferrando e Guglielmo).
Cofundadora do site Notas Musicais, também colabora com a revista eletrônica mexicana Pro Ópera e com o site italiano L’Ape Musicale. Fez parte do júri das edições 2020 e 2022 a 2024 do Concurso Brasileiro de Canto ‘Maria Callas’ e é membro do conselho de Amigos da Cia. Ópera São Paulo. Em 2017, fez a tradução, para o português, do libreto da ópera Tres Sombreros de Copa, de Ricardo Llorca, para a estreia mundial da obra, em São Paulo. Estudou canto durante vários anos e tem se dedicado ao estudo da história da ópera e do canto lírico.
Mais uma crítica brilhante. Me surpreendo como @fabianacrepaldi tem evoluido em suas análises para cada vez mais precisar o espectro vocal dos cantores.
Senti apenas falta de falar sobre os bailarinos, que certamente tornaram a noite mais completa. Vou comprar o DVD.
Também julgo esta
ópera dentre as da tríade a pior enquanto libreto. Os disfarces são inverossímeis, a mulher é tratada como um ser volúvel e mesmo inferior. O título deveria ser alterado para Cosi Fan Tutti: assim fazem todos.
Texto preciso e instrutivo.
Parabéns e obrigado, Fabiana.